Extremos rejeitados
As negociações para a formação de uma nova coalizão de governo na Alemanha deverão se arrastar por semanas ou meses. Ao final, elas serão formalizadas em um tratado de mais de 100 páginas, que selará a saída de Angela Merkel. Após 16 anos no poder, a chanceler do partido União Democrata Cristã, o CDU, de centro-direita, provavelmente será substituída por Olaf Scholz, o líder do Partido Social-Democrata, SPD, de centro-esquerda, vencedor da eleição do domingo, 26. Scholz já disse que pretende se unir com o Partido Verde e com os liberais para formar um novo governo, mas outras combinações são possíveis.
Apesar de as possibilidades permanecerem abertas, a futura composição do Parlamento, o Bundestag, já indica tendências ao consolidar sentimentos compartilhados também por eleitores de outros países. Com novos temas ganhando peso no noticiário do pós-pandemia, os alemães buscaram políticos pragmáticos e com experiência em resolver problemas. Ao fazer isso, muitos abandonaram os partidos populistas radicais.
Os dois partidos radicais que perderam força são o de extrema-esquerda Die Linke e o de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, o AfD. O Die Linke, fundado em 2007, abriga comunistas nostálgicos em relação à Alemanha Oriental, rejeita o capitalismo e defende a saída da Alemanha da Organização do Tratado Atlântico Norte, a Otan, e sua substituição por um pacto com a Rússia de Vladimir Putin. Em 2017, o Die Linke teve 9,2% dos votos. Neste ano caiu para 4,9%, o que é abaixo do patamar mínimo para entrar no Parlamento. O Die Linke só terá direito a estar no Bundestag porque venceu em três distritos. A outra agremiação extremista que perdeu espaço, o AfD, caiu de 12,6% para 10,3% dos votos. Com isso, o AfD passou de terceiro maior partido para o quinto lugar.
O Die Linke e o AfD receberam mais votos na antiga Alemanha Oriental, onde existe um ressentimento em relação ao resto do país, mais rico e desenvolvido. Nas cidades da Alemanha Oriental, as duas siglas radicais apresentam-se como as vozes do “leste prejudicado”. Nos anos 1990, essa narrativa rendeu votos aos grupos de esquerda. Nos últimos anos, muitos dos seus eleitores migraram para o Alternativa para a Alemanha, indiferentes à acrobacia ideológica. Foi isso que levou o partido de extrema-direita a vencer as últimas eleições em dois estados, a Saxônia e a Turíngia, com 24% dos votos em cada um. No restante do país, contudo, o AfD perdeu espaço.
À procura de slogans capazes de mobilizar o eleitorado, o Alternativa para a Alemanha colecionou mais erros que acertos. Quando foi fundado, em 2013, sua bandeira era atacar o socorro financeiro à Grécia, que integra a zona do euro. Quando o assunto saiu do radar, o partido ficou sem palanque. Em 2015, a entrada na União Europeia de 1 milhão de refugiados sírios e de outras nacionalidades deu à sigla a sua principal razão de existir. O AfD, então, passou a criticar os imigrantes e a pedir a saída da chanceler Angela Merkel, para quem a Europa tinha uma obrigação moral em recebê-los. Só que o sucesso do país em receber centenas de milhares de pessoas nos anos seguintes e a queda no fluxo fez com que a imigração perdesse relevância e passasse a ser uma prioridade apenas para 20% da população. Isso exigiu que o partido, em março de 2020, começo da pandemia, abraçasse outra causa: passou a exigir do governo fortes medidas para conter o vírus. Durou pouco. Ao ver que um movimento chamado Querdenken ganhava visibilidade pedindo o fim dos lockdowns, o AfD deu outro cavalo de pau e se juntou aos manifestantes nas ruas. A guinada, porém, afastou seguidores. “Enquanto a posição anti-imigração unificava o partido, isso não aconteceu com a questão sanitária. Alguns são contra o lockdown e contra a vacinação, mas outros preferiram se imunizar”, diz a cientista política alemã Anne Kuppers, da Universidade de Jena, na Turíngia.
Caso o social-democrata Olaf Scholz, de 63 anos, consiga se firmar como o próximo chanceler, não se deve esperar uma grande mudança de rumo. O SPD integra a atual coalizão de governo, em que Scholz é o atual ministro das finanças e vice-primeiro-ministro. Assim, a propensão a elevar os gastos públicos, algo que desafia o caráter austero da Alemanha, deverá ser mantida. Em abril, Scholz anunciou um plano de 28 bilhões de euros para recuperar a economia. O projeto é baseado em dois eixos: mudança climática e transformação digital. Com a pandemia, a necessidade de ampliar os investimentos em tecnologia ficou evidente. Em um ranking europeu de serviços públicos digitais, a rica Alemanha está em 21º lugar em uma lista de 28 países. No início da crise sanitária, os 16 estados do país estavam recorrendo a antiquados equipamentos de fax para compartilhar suas estatísticas de Covid. Formulários para solicitar ajuda governamental tinham de ser impressos, assinados e levados até um órgão público.
Scholz também é tido como um moderado no interior do partido de centro-esquerda. “Scholz conversa com todos os grupos ao mesmo tempo. Nesse ponto, ele é muito parecido com o presidente americano Joe Biden. Eles não têm discursos ideológicos, que estimulam a polarização e criam rusgas entre as pessoas”, diz Kai Enno Lehmann, professor de relações internacionais na Universidade de São Paulo. Sua carreira política deslanchou como prefeito de Hamburgo, em 2011. Nessa cidade, ele conduziu um projeto para revitalizar a região do porto, fez diversos acordos com a iniciativa privada para fomentar a construção de moradias baratas e ainda equilibrou as finanças da cidade. Em 2015, Scholz conseguiu se reeleger e ficou no cargo até 2018, quando se tornou o líder do Partido Social-Democrata. Agora, deve virar chanceler da Alemanha pós-Angela Merkel.
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