MarioSabino

Pegue o dinheiro e corra

01.10.21

O artista dinamarquês Jens Haaning ganhou espaço no noticiário por ter entregado duas telas em branco a um museu de arte moderna do seu país. O museu lhe havia emprestado notas que totalizavam o equivalente a 70 mil euros, para que reconstituísse uma obra de 2007 que representava um ano de salário médio na Dinamarca e Holanda. Dois dias antes da data da entrega da encomenda, o artista avisou o museu de que não enviaria o que havia sido acordado. Para surpresa de todos, mandou entregar duas telas em branco, encaixotadas em vidro e intituladas Pegue o Dinheiro e Corra. O diretor do museu decidiu expô-las, por oferecer, nas palavras dele, uma visão bem-humorada de como o trabalho é valorizado atualmente, mas acrescentou que cobrará do artista a devolução das notas, como previsto no contrato. Jens Haaning, por sua vez, afirmou que não acha que tenha roubado o dinheiro. “Criei uma obra de arte que provavelmente é 10 ou 100 vezes melhor do que havia sido combinado”, disse o artista. O seu objetivo, explicou, é questionar as estruturas vigentes no mercado de arte. Provocativo, ele questiona as estruturas vigentes de onde quer que seja desde os anos 1990. Na Holanda, por exemplo, Jens Haaning conseguiu transferir temporariamente uma fábrica que empregava trabalhadores imigrantes para um espaço de exposição na cidade de Middelburg. O título da obra era Verão de Middelburg 1996. Uma forma didática de mostrar como o bem-estar nos países ricos depende em boa parte da mão-de-obra barata proveniente dos países pobres.

Em 1918 — há mais de um século, portanto —, o russo Kasimir Malevich pintou um óleo intitulado Branco sobre Branco, no qual apresentava um quadrado branco, inclinado para a direita, sobre fundo branco. É a expressão mais completa do suprematismo, uma vertente da arte abstrata que utilizava formas geométricas puras e cores básicas, para distanciar-se radicalmente da arte figurativa. A tela está no Museu de Arte Moderna de Nova York, e certamente o paralelo teria enriquecido de alguma forma a notícia sobre Jens Haaning, se jornalistas ainda cultivassem o hábito de ir a museus.

O paralelo é que uma tela branca, no caso, não é tão diferente de uma tela em branco. Há pigmentos, trabalho manual, técnica pictórica e currículo na tela branca de Kasimir Malevich, embora pareça coisa de preguiçoso; não há pigmentos, trabalho manual ou técnica pictórica nas telas em branco de Jens Haaning, obviamente, o que parece coisa de espertalhão. Mas há nelas currículo e um comentário sagaz sobre o mundo do trabalho em geral, no qual as trocas não parecem ser equilibradas também do ponto de vista existencial. Desse ponto de vista, as telas em branco de Jens Haaning estão inseridas na tradição da arte como crítica histórica, sociológica e também de um artista em relação ao outro. Mas elas são um passo além.

Explico: para se fazer eficiente, já não bastaria a crítica dentro dos limites da representação impostos pelas três dimensões de uma obra. Eles não seriam mais suficientes para dar conta do aspecto a ser comentado. Representar o salário médio anual de um trabalhador por meio de notas verdadeiras apenas ilustraria de maneira banalmente material o fato de que, seja na Dinamarca, na Holanda ou no Brasil, quase todo mundo acha que ganha muito menos do que realmente merece. Era preciso revelar, ainda, o sentimento de perda de tempo de vida que o trabalho causa. Era preciso mostrar conceitualmente que, no mais das vezes, o que se quer mesmo é pegar o dinheiro e correr para ter uma existência que vá além da mera sobrevivência. E a melhor forma que Jens Haaning encontrou foi não trabalhando como o esperado. Ele pegou o dinheiro e correu.

Torço para que o diretor do museu conclua que Jens Haaning merece ficar com os 70 mil euros. Arte é subversão. O seu em branco não é sobre um fundo branco. É sobre um mundo cada vez mais cinza, e as suas telas apontam admiravelmente para essa realidade.

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