O fim da farsa
A folha de papel-ofício com a pauta do julgamento pendurada na porta do suntuoso plenário vermelho do Tribunal Superior Eleitoral denunciava o improviso da sessão. Eram 12h59 desta sexta-feira quando o documento foi impresso. Uma hora e meia, portanto, antes da hora marcada para o início da reunião. Ali constavam apenas os nomes e os números dos processos que seriam julgados. Entre eles, a impugnação ao registro de candidatura 0600903-50, o caso mais importante da história da corte eleitoral. Era a senha para decidir se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado e preso por corrupção e lavagem de dinheiro, poderia disputar o Palácio do Planalto nas eleições deste ano.
Até a pauta ser afixada na porta do plenário, foi necessária uma costura política que durou mais de 48 horas e foi liderada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator das 16 impugnações de candidatura apresentadas contra Lula no TSE. Sob o argumento de que era preciso definir a situação de Lula antes do início do horário eleitoral gratuito para candidatos a presidente, neste sábado, Barroso primeiro articulou com a presidente do TSE, Rosa Weber, a realização de uma audiência extraordinária nesta sexta. Conseguiu.
Depois, o ministro precisava convencê-la a já julgar o registro do petista naquela mesma sessão. Para tanto, ele decidiu adentrar a madrugada de quinta para sexta para analisar a defesa de Lula apresentada na noite anterior, a tempo de incluí-la no seu voto. Seus auxiliares deixaram o gabinete por volta das 7 horas da manhã da sexta. “A noite foi longa para mim e minha equipe”, disse depois, durante a sessão, antes de tomar um gole de café. Nas primeiras horas do dia, Barroso avisou à amiga Rosa Weber que seu voto estava pronto. Com isso, a ministra finalmente incluiu na pauta a discussão sobre o registro de Lula. Ela resistia a fazê-lo, por avaliar que poderia passar a ideia de um atropelo judicial. A decisão, todavia, não surpreendeu os outros cinco ministros da corte. Eles já vinham estudando o caso. Sabiam que Rosa dificilmente iria contra o desejo de Barroso.
Os sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral entraram às 14h39 no plenário, mas o julgamento de Lula só começaria às 17h. Nesse meio tempo, houve a aprovação do registro das candidaturas presidenciais de José Maria Eymael (decisão expressa, tomada em 3 minutos), e de Geraldo Alckmin (decisão um tanto alongada, tomada em 99 minutos). Encerrados os dois casos, Rosa Weber anunciou uma breve pausa de quinze minutos. Levantou-se apressada. Barroso, o senhor do dia, ficou a conversar com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Os rumos da candidatura de Lula já estavam devidamente traçados.
O intervalo deu uma clara mostra de que a advocacia eleitoral não segue a polarização política. Os defensores confraternizavam no tapete vermelho do salão. De rosa-choque, a advogada de Lula, Maria Cláudia Bucchianeri, parabenizava com um forte e efusivo abraço José Eduardo Alckmin, advogado de Geraldo Alckmin, pela aprovação do registro da candidatura do tucano. O de Jair Bolsonaro, Tiago Ayres, circulava entre eles. “Somos amigos”, dizia. Ele estava ali por ser um dos que impugnaram a candidatura de Lula. Alheios à roda e sentados no canto, seis capinhas, como são chamados os auxiliares dos ministros, observavam o movimento – e gargalhavam. Os 15 minutos do intervalo viraram 30. Às 16h59, os ministros voltaram para Rosa Weber finalmente anunciar o julgamento mais esperado. Todos tomam seus lugares. A advogada de Lula corre para a primeira fileira. Quase cai.
O eixo central da tese de defesa dos advogados de Lula é a questionável “decisão” do Comitê de Direitos Humanos da ONU que, no dia 17 de agosto, recomendou ao Brasil que adotasse as medidas necessárias para que Lula pudesse desfrutar de seus direitos políticos mesmo estando na cadeia. A advogada do petista disse que a decisão tem “força impositiva, necessária e obrigatória”. “O Estado brasileiro sempre reiterou compromisso e reforçou a importância de democratização do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Seria irônico, se não fosse trágico, o Poder Judiciário, que tem a função precípua de defender os direitos humanos, aquele que viesse a desdizer o que o Estado reconhece”, defendeu.
Na sequência, Barroso se acomoda na cadeira para proferir o voto que orientaria a decisão da noite. O relógio digital na entrada do plenário marcava 18h30. O ministro começa fazendo uma defesa da lei da Ficha Limpa que, segundo ele, “claramente prevê inelegíveis os condenados em órgão colegiado”. E refuta a ideia central da defesa de que o país estaria descumprindo uma “decisão da ONU”. “Há ausência de força vinculante nas recomendações emitidas por comitê da ONU. Pareceres são relevantes, mas não podem ser acolhidos.” Também rejeita a ideia de perseguição política propagandeada pelos petistas. “Não estamos em regime de exceção. Todas as instituições estão funcionando. O requerente tem todo o direito de sustentar a ocorrência de erro judiciário, mas não seria figura plausível o argumento de perseguição política.” Barroso determina, enfim, que seja retirado o nome do petista da urna e que o PT escolha outro nome em até dez dias. Frisa que a aplicação é imediata.
Já é noite quando Fachin começa a votar. Ele diz considerar Lula inelegível pela Ficha Limpa, mas permite a candidatura por considerar que a tal “decisão” da ONU tem caráter supralegal porque o Brasil é signatário de tratados internacionais que, em seu entendimento, obrigariam o país a acolher o despacho. “Em face da medida provisória obtida no Comitê de Direitos Humanos (da ONU), se impõe, em caráter provisório, reconhecer o direito, mesmo estando preso, de [Lula] se candidatar às eleições presidenciais de 2018”, afirmou. O voto do ministro era aguardado ansiosamente por petistas. A leitura que o partido fazia era de que a ligação histórica de Fachin com a esquerda — foi, por exemplo, advogado do MST — poderia fazer com que ele fizesse algum aceno a Lula e votasse para liberar o registro da candidatura. Seria uma forma de equilibrar a postura mais dura que tem tido contra investigados da Lava Jato – e com o próprio Lula – no Supremo Tribunal Federal. Fachin é um dos principais defensores, por exemplo, da prisão após condenação em segunda instância, razão pela qual Lula está recolhido a uma cela especial na sede da Polícia Federal em Curitiba.
“Fachin é acusado por muitos no PT de ser algoz em razão de suas posições no STF. Mas seu voto hoje lavou a alma”, festejou Luiz Casagrande, um dos advogados de Lula assim que o ministro terminou de ditar o voto. Rosa Weber suspendeu a sessão novamente para uma segunda pausa. O cansaço já era visível entre ministros, advogados e demais presentes. Já eram 22 horas e ninguém sabia até que horas o julgamento se estenderia. Quando indagado se o tribunal poderia proibir Lula de aparecer na propaganda eleitoral de outros candidatos, um dos advogados do ex-presidente ironizou: “Só na Coreia do Norte iriam impedir”. Em seguida, elaborou sobre a possibilidade de a participação de Lula se limitar a 25% do tempo da propaganda de Fernando Haddad, o candidato real petista: “Lula vai ficar os 25% falando ‘vote Haddad, vote Haddad, vote Haddad”, afirmou, rindo.
Depois de quase nove horas, chegava ao fim o julgamento. O placar estava definido, e de forma acachapante: por 6 votos a 1, o tribunal decidiu rejeitar o registro de candidatura de Lula. Coube ao próprio Barroso, a pedido da presidente, a tarefa de resumir o veredicto: “Declaro a inelegibilidade do candidato Luiz Inácio Lula da Silva e por consequência indefiro o registro da sua candidatura para concorrer ao cargo de presidente da República nas eleições de 2018. […] Vedo a prática de atos de campanha e, em especial, a veiculação de propaganda eleitoral no rádio e na televisão até que se proceda a substituição. E determino a retirada do nome do candidato da programação da urna eletrônica”. Antes, o ministro brincou. “Até meu computador já está exausto”. A pedido da defesa de Lula, já na fase final do julgamento, os ministros se retiraram do plenário para confabular se, mesmo com Lula impedido de se candidatar, o PT poderá usar o horário eleitoral para apresentar seu candidato a vice, Fernando Haddad. Decidiram, nesse ponto, readequar a decisão — assim, Lula fica proibido de figurar como candidato, mas o partido não perde o tempo de televisão enquanto não faz a substituição de seu cabeça de chapa.
A proibição da candidatura de Lula foi a maior, mas não a única derrota do PT no TSE nesta semana. Dias antes, a corte já havia negado um pedido da sigla para que as emissoras de televisão e rádio fossem obrigadas a noticiar a agenda de integrantes da coligação. Também foram negados dois pedidos de direito de resposta do PT. No partido, porém, o placar contra o registro da candidatura de Lula já era dado como certo. Agora, a sigla terá de tomar uma decisão em reunião agendada para este sábado, quando começa o horário eleitoral para os candidatos a presidente: ou substitui já Lula e indica Fernando Haddad para o seu lugar, o que permite que o ex-prefeito participe desde já do horário eleitoral ou parte para uma estratégia chamada nos bastidores do partido de “kamikaze”.
Quem esteve com Lula nesta semana disse que o ex-presidente é dúbio sobre qual caminho seguir. “Ele tem dito que é candidato até o fim, mas que se o TSE rejeitar a candidatura pode repensar”, disse uma fonte a Crusoé. Entre os dois extremos, um caminho intermediário pode ser a solução: substituir Lula por Haddad e ao mesmo tempo apresentar um recurso ao STF para tentar viabilizar sua candidatura. A grande questão é que a tramitação do recurso no Supremo pode não ter um desfecho antes do primeiro turno da eleição, em 7 de outubro. Há um longo rito para que uma decisão final seja tomada. Primeiro, o recurso precisaria ser apresentado em até três dias depois da publicação da decisão do TSE. O expediente teria de ser inicialmente apresentado à presidente da corte eleitoral, Rosa Weber, que analisaria, sem prazo definido, questões processuais e, só depois, o remeteria ao Supremo. Ao chegar lá, seria automaticamente sorteado um relator, que não pode ser nenhum dos ministros que tenham participado do julgamento no TSE (Rosa, Barroso ou Fachin), nem a presidente do STF, Cármen Lúcia. Ou seja, poderão relatar o recurso Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Marco Aurélio Mello ou Ricardo Lewandowski.
Caso seja a essa a opção do PT, a primeira decisão que o relator irá tomar é se decide sozinho ou coletivamente o caso. Se for sozinho, concede ou rejeita o pedido. A concessão da liminar seria suficiente para que Lula concorresse. Aqui entra outra importante data: o dia 17 de setembro. Trata-se do prazo final para que as candidaturas sejam cadastradas na urna. Se houver uma liminar a favor de Lula até essa data, o PT conseguiria registrá-lo. Caso contrário, não. Dessa decisão cabe um novo recurso, chamado agravo regimental, para que a liminar seja apreciada por todo o colegiado. Também não há um prazo para isso ocorrer. Mas se o relator preferir não dar uma decisão solitária, o pedido passará a seguir outro trâmite burocrático que pode levar meses até a decisão final. É por isso que, diante de tantos ritos, especialistas avaliam que, se o caso for ao STF, só um acordo entre os onze ministros permitiria uma decisão antes do primeiro turno. “Só uma concertação administrativa e política do STF para eventual recurso extraordinário apresentado pelo Lula conseguir ser julgado antes do final das eleições”, afirmou a Crusoé o advogado eleitoral Daniel Falcão. O certo mesmo é que, pelo menos neste primeiro ato, o teatro petista em torno da candidatura Lula acabou.
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