Adriano Machado/CrusoéArthur Lira é a mão invisível (ou nem tanto) por trás da proposta

A PEC da vingança

Na mais nova ofensiva do establishment contra os órgãos de investigação, a Câmara vai votar uma proposta que dá aos políticos a palavra final sobre o trabalho do Ministério Público
08.10.21

Faz mais de dois anos que o acordão selado em Brasília para destruir a Lava Jato e devolver a impunidade aos integrantes do establishment político vem aplicando seus golpes. A soltura de presos duplamente condenados por corrupção, as anulações de sentenças que levarão à prescrição de crimes e o afrouxamento de leis que punem malfeitos são as sequelas mais evidentes da contraofensiva que mobilizou representantes dos três poderes da República. Mas tudo isso ainda parece insuficiente para os incomodados com o cerco aos poderosos. Como pontuou o ex-ministro do Supremo Francisco Rezek, em recente entrevista a Crusoé“a corrupção não quer apenas a impunidade, ela quer se vingar daqueles que tentaram puni-la”. Nesta semana, essa sanha vingativa esboçou uma nova faceta, ainda mais nociva. Emergiu sorrateiramente dentro da Câmara dos Deputados uma proposta que coloca, de maneira inédita, a atuação do Ministério Público sob o controle da classe política. Na prática, representantes do Congresso e do STF passariam a ter ainda mais influência não somente para punir promotores e procuradores que os investigam como também para enterrar as investigações.

A nova trama teve origem com a apresentação de uma proposta de emenda constitucional feita pelo deputado Paulo Teixeira, do PT de São Paulo, em março deste ano, para alterar a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP. Composto por 14 membros, dos quais oito indicados por diferentes MPs do país, dois pelo STF e Superior Tribunal de Justiça, e a mesma quantidade pela OAB e pelo Congresso, o órgão é encarregado de julgar denúncias contra promotores e procuradores por infrações disciplinares, como abuso de autoridade. Entre as principais mudanças propostas pelo petista, estavam destinar ao Congresso uma das vagas reservadas ao MP e a possibilidade de eleição de um corregedor-geral fora dos quadros da instituição. O objetivo, segundo Teixeira, seria “eliminar certa sensação de corporativismo e de impunidade em relação aos membros do Ministério Público que mereçam sofrer sanções administrativas por desvios de conduta”. Na visão dele, com um integrante do MP a menos no colegiado, que é presidido pelo procurador-geral da República (no caso, Augusto Aras), seria mais fácil punir os investigadores.

Crítico ferrenho das forças-tarefas da Lava Jato, o petista não estava sozinho na empreitada. A lista de deputados que endossaram a PEC é um exemplo claro do acordão vigente em Brasília. Foram 185 parlamentares de 13 partidos. Além da bancada do PT, que aderiu em peso, estão caciques do Centrão, como o líder do governo, Ricardo Barros, do Progressistas paranaense, e fiéis bolsonaristas, como o deputado Vitor Hugo, do PSL de Goiás. O conjunto de forças aparentemente antagônicas empenhadas no projeto logo chamou a atenção dos representantes do Ministério Público, contrários às alterações. O grupo chegou a apresentar aos deputados um levantamento mostrando que, ao contrário do que se alegava, o CNMP computou nos últimos 15 anos um número de punições disciplinares 58,2% maior do que o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, cuja incumbência é fiscalizar os magistrados. Ambos foram criados pela mesma lei, em 2004, e com a mesma estrutura. Por esse motivo, segundo os procuradores, quaisquer alterações deveriam ser feitas nos dois órgãos simultaneamente. Os argumentos foram ignorados.

O deputado Paulo Magalhães “embarrigou” propostas da coalizão do acordão
Apesar de toda a polêmica, a tramitação da PEC seguia o rito ordinário dentro da Câmara até o último dia 30, quando o presidente da Casa, Arthur Lira, decidiu atropelar a comissão especial que analisava o tema e levar a proposta a discussão diretamente no plenário. O plano de usar o projeto para se impor sobre o MP ficou explícito na quarta-feira, 6. Poucas horas após ser nomeado relator da PEC, o deputado Paulo Magalhães, do PSD da Bahia, apresentou um texto com alterações profundas na PEC original, colocando o “MP de joelhos para a classe política”, nas palavras do procurador Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção. Além de incluir uma cadeira a mais no conselho destinada a um indicado do STF, mediante a aprovação do Senado — o que torna os representantes do MP minoria no colegiado –, a nova versão atribui ao conselho o poder de “rever ou desconstituir” atos de todos os órgãos do MP do país em que haja “violação de dever funcional dos membros” ou “utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais”.

Na prática, a medida permite que investigações sejam anuladas pelo próprio CNMP, caso o investigado acione o órgão alegando desvio de conduta do investigador. Segundo participantes das negociações, as duas principais mudanças foram sugeridas pelo ministro Gilmar Mendes, crítico ferrenho dos procuradores da Lava Jato e de decisões do CNMP. “Esse é o maior ataque ao Ministério Público desde a Constituição de 1988”, resumiu o procurador Fabio Nóbrega, ex-presidente da Associação Nacional de Procuradores da República. “Querem encher o CNMP de pessoas indicadas pelo Congresso e dar ao conselho o poder de interferir em nossos atos, criando um controle político sobre a atuação dos membros do MP”, completou. A reação à proposta, que ganhou os apelidos de “PEC do Gilmar” e “PEC da Vingança”, foi imediata e se intensificou depois que Arthur Lira determinou a votação em regime de urgência.  “Está em curso um projeto de fim do Ministério Público Independente”, protestou  a subprocuradora Luiza Frischeisen. O ex-juiz Sergio Moro escreveu que a PEC “minará a independência do Ministério Público para proteger os poderosos”enquanto representantes dos MPs correram para o Congresso para evitar a aprovação de um projeto estrategicamente desfigurado e completamente distinto daquele que havia sido discutido na casa.

Nelson Jr./SCO/STFNelson Jr./SCO/STFGilmar: um dos padrinhos da iniciativa
Como Lira já tinha embarcado para Roma para participar da cúpula de presidentes de parlamentos dos países do G-20, coube ao vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, do PL do Amazonas, conduzir a votação programada para esta quinta-feira, 7. Durante todo o dia, o deputado Paulo Magalhães, autor do polêmico texto substitutivo, fugiu dos questionamentos dos repórteres e das entidades que queriam convencê-lo a desistir da proposta. Até o petista Paulo Teixeira, que redigiu a versão original, disse que só ficou sabendo das mudanças propostas pelo relator quando o texto dele foi inserido no sistema da Câmara. Nos bastidores, parlamentares diziam que Magalhães foi o famoso barriga de aluguel: só havia emprestado seu nome à nova versão do projeto e que todos os detalhes foram definidos por Lira, acolhendo pedidos de Gilmar e do PGR, Augusto Aras.

O vínculo de Magalhães com Arthur Lira ficou mais evidente durante a sessão em que se tentou aprovar a PEC. Enquanto os parlamentares votavam um requerimento que pedia a retirada da proposta da pauta, o deputado baiano ficou sentado no fundo do plenário, ao lado do colega Dudu da Fonte, do PP de Pernambuco, homem de confiança de Lira que foi denunciado juntamente com o presidente da Câmara por integrar o chamado “Quadrilhão do PP”, no qual parlamentares do partido foram acusados de receber propina e caixa 2 de campanha de empreiteiras apanhadas pela Lava Jato — o caso foi arquivado em março deste ano pela Segunda Turma do Supremo, comandada por Gilmar Mendes, o mesmo que sugeriu as mudanças no texto da PEC. Assim que o placar eletrônico mostrou que ainda faltavam 92 votos para conseguir a aprovação da proposta — emendas à Constituição necessitam de 308 votos –, a troca de mensagens por celular foi intensa e a estratégia mudou: a prioridade passou a ser adiar a votação. O esforço contou com apoio do petista Paulo Teixeira e da bolsonarista Bia Kicis. Quem acompanhou de perto não tinha dúvida de que era Lira quem dava as coordenadas diretamente da Itália.

Derrotada no primeiro round, a turma do acordão planeja agora retomar a carga para aprovar a PEC na próxima semana, possivelmente retirando alguns pontos mais polêmicos, como a possibilidade de o CNMP barrar atos de promotores e procuradores no curso de investigações, mas mantendo a ideia original de alterar a composição do colegiado para garantir mais punições a investigadores que importunarem os poderosos de plantão. Para os integrantes do Ministério Público, mesmo com a exclusão dos trechos, a “politização” do CNMP vai enfraquecer a atuação dos órgãos de investigação de “forma irreversível”, permitindo que agentes políticos sejam fiscais de quem os fiscaliza. Hoje, por exemplo, procuradores da Lava Jato do Rio de Janeiro que foram representados no conselho por políticos que eles próprios denunciaram já correm risco de demissão simplesmente porque divulgaram uma notícia sobre a denúncia no site do MPF. Para o deleite de classe política, se a proposta for aprovada como desejam as excelências, a perseguição contra os defensores da lei será ainda mais implacável.

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