Zanone Fraissat/Folhapress"O branco é sempre a encarnação do privilégio e da opressão, mesmo que seja motorista de táxi ou pedreiro e que não tenha dinheiro para comprar a cesta básica"

‘Temos visto a negação da nação’

Antonio Risério, o antropólogo baiano que ajudou a pensar as campanhas presidenciais do PT, diz que o Brasil precisa se libertar das fantasias identitárias e do maniqueísmo rasteiro que sustenta o populismo de Bolsonaro e Lula
08.10.21

O baiano Antonio Risério, de 67 anos, abandonou a escola logo no início do colegial em Salvador, por estar insatisfeito com a qualidade do ensino. Seguiu com os estudos por conta própria e entrou para uma organização clandestina de esquerda, a Política Operária, Polop. Em 1968, foi preso pela ditadura militar, mas preferiu não entrar na luta armada, para ingressar na “contracultura”. Em 1995, mesmo sem ter cursado a faculdade, ele defendeu na Universidade Federal da Bahia uma tese de mestrado em sociologia, com especialização em antropologia, e conseguiu o título de antropólogo.

Risério vive dos seus textos. Entre 2002 e 2010, foi redator das campanhas presidenciais do PT. Trabalhou com Duda Mendonça e João Santana. Depois, passou a acusar o marketing político de manipulação e estelionato. A experiência foi narrada em um romance, intitulado “Que Você é Esse?”.

O antropólogo, que há cinco anos vive na ilha de Itaparica, não tem Twitter e não usa nem sequer o WhatsApp, é hoje um dos principais críticos da visão de história que divide o mundo entre mocinhos e bandidos, de acordo com o sexo ou com a cor da pele. Para ele, é preciso conhecer os fatos e seus protagonistas, sem reduzir tudo a arquétipos e caricaturas. “Não acredito que a busca de uma sociedade mais justa precise se alicerçar na falsificação histórica e na mentira. Pelo contrário: temos de não nos enganar, de saber muito bem quem somos e do que somos capazes”, diz nesta entrevista a Crusoé.

O brasileiro costumava se ver como um povo pacífico, miscigenado e festivo. Isso está mudando?
Juntar esse trio de qualidades foi, evidentemente, uma jogada ideológica. Mas jogadas ideológicas não duram para sempre. Essa ideia de brasileiro foi uma fantasia disseminada pelo aparelho ideológico de estado, pelo poder econômico e pelas elites culturais, que o povo acabou incorporando. Mas não devemos confundir as coisas. Hoje, outra fantasia ideológica, da qual a esquerda nacional importou o padrão racial americano, quer fazer de conta que a mestiçagem não existe. Isso é uma tolice. A mestiçagem é uma realidade biológica, um dado inelutável da história genética do povo brasileiro. Pouco importa que Camila Pitanga queira ser negra. O fato, do ponto de vista da biologia e da antropologia física, é que ela é uma mestiça, uma bonita mulata dos trópicos. Cruzamento genético é um dado, não é questão de gosto, nem de opinião. Quanto ao mito do povo pacífico, isso não resiste ao menor exame histórico. Basta considerar as guerras do século XVI, o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, os levantes de escravos e o cangaço. Repare ainda que o retrato que a alta cultura faz do Brasil é violentíssimo. Basta ler Os Sertões, de Euclydes da Cunha. Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa escreveu: “Quando Deus vier, que venha armado”. O cinema brasileiro vai na mesma linha. Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Cidade de Deus falam de muito sangue. E a Tropicália expõe um país onde “uma criança sorridente, feia e morta estende a mão”. Melhor olhar o Brasil a partir do modo como aqui se processam as dialéticas da violência e da conciliação.

Quais grupos hoje estão emplacando melhor sua visão de história e identidade nacional?
A partir da década de 1970, a esquerda tratou de se contrapor ao discurso da velha história oficial do Brasil, que ainda era o do Instituto Histórico e Geográfico de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), nos tempos de D. Pedro II. Mas a esquerda escolheu o pior caminho. Em vez de repensar em profundidade a experiência nacional brasileira, limitou-se a inverter os sinais da velha história. O que antes era celebrado passou a ser execrado, e vice-versa. No governo de Fernando Henrique Cardoso, com o ministro da Educação Paulo Renato Souza, essa versão historiográfica de esquerda foi oficializada nos parâmetros curriculares do ensino. A nova história oficial do Brasil passou a ser a história da “era das desculpas”. O planeta foi dividido em anjos e demônios, como nos filmes de mocinho e bandido, em que todos são orientados a tomar abertamente o partido das vítimas. O problema é que isso é feito a partir de fraudes e distorções dos fatos. O mundo passou a ser visto como algo imutável, em que as pessoas são eternamente prisioneiras da anatomia ou da cor da sua pele.

ReproduçãoReprodução“O fracasso do populismo de esquerda levou ao populismo de direita”
Como alguém se torna prisioneiro da anatomia ou da cor da pele?
A ideologia hoje dominante congela a história da Humanidade em seus inícios, definindo grandes arquétipos ou caricaturas. Assim, quem nasce homem no século XXI está na obrigação de carregar o fardo das antigas sociedades patriarcais. Mas essas sociedades há muito tempo não existem nos países democráticos do Ocidente. O patriarcalismo, hoje, vigora em países muçulmanos, em sociedades da África Negra, em extensões asiáticas. Enquanto isso, no nosso mundo ocidental, Nicole Kidman e Fernanda Torres levam a vida que bem entendem e ninguém tem nada a ver com isso. A criação desses arquétipos é o que se chama de identitarismo, o qual condena recém-nascidos ao confinamento num passado às vezes pré-histórico. O revolucionário negro Frantz Fanon dizia que não iria desperdiçar sua vida tentando vingar os negros do século XVIII. Claro. Mas é essa a postura identitária. O homem negro, portanto, é prisioneiro de sua anatomia. Com o homem branco é a mesma coisa. Um garotinho branco recém-nascido hoje, num bairro de classe média de Recife, por exemplo, é acusado de crimes cometidos por senhores escravistas do sul do Estados Unidos, ao longo do século XVIII. É uma coisa absolutamente caricatural. E paralisadora. Além disso, o branco é sempre a encarnação do privilégio e da opressão, mesmo que seja motorista de táxi ou pedreiro e que não tenha dinheiro para comprar a cesta básica.

O Brasil parece preso a duas possibilidades nas eleições de 2022: Lula e Bolsonaro. Essa dualidade tem alguma relação com as narrativas históricas que vingaram no país?
Na minha opinião, não. O fracasso do populismo de esquerda levou ao populismo de direita. Moralismo rastaquera à parte, Bolsonaro foi eleito prometendo redenção econômica, segurança pública e o fim da corrupção. Não fez nada disso. Ele teve e continua tendo uma conduta criminosa na pandemia do coronavírus. Bolsonaro foi o grande aliado da peste. Agora, o fracasso do populismo de direita pode nos reconduzir ao populismo de esquerda. Mas a verdade é que tudo tem muito pouco de ideologia. O Bolsa Família tinha colocado a população nordestina no colo de Lula. Quando veio o auxílio emergencial da Covid, essa população migrou para o colo de Bolsonaro. Então, viu-se que era bobagem tratar as coisas ideologicamente. A maioria do eleitorado nordestino não é de direita, nem de esquerda — é subornável.

Alguma narrativa histórica está sendo deixada de lado?
O que está sendo escanteado pela universidade e pela mídia é a necessidade de repensar em profundidade a experiência nacional brasileira. Precisamos fazer isso por nossa própria conta e risco. Até porque temos pela frente a passagem dos 200 anos da nação, com a comemoração do bicentenário da Independência de 1822. O que está sendo organizado para essa data é o apogeu da desconstrução nacional pregada pelo identitarismo multicultural, agora com total apoio da elite midiática. É o apogeu da paixão mórbida pela comemoração negativa, como diz o sociólogo canadense Mathieu Bock-Côté. Penso que temos de rever de forma radicalmente crítica nossa experiência nacional, mas em um horizonte aberto e profundo. Não podemos fazer isso na base do maniqueísmo rasteiro, na base da luta do bem contra o mal. Dou um exemplo. Antes do movimento abolicionista das últimas décadas do século XIX, ninguém no Brasil era contra o escravismo enquanto sistema. Cada grupo queria somente livrar sua cara, não ser escravizado. Mas ninguém se importava com a escravidão dos demais. Basta lembrar que havia escravos em Palmares e que o projeto da revolta dos negros malês, em 1835, incluía a escravização dos mulatos. Trazendo esse episódio que ocorreu em Salvador para os dias de hoje, é como se os pretos muçulmanos da Bahia quisessem escravizar aqueles que hoje são a vastíssima militância dos movimentos negros. Naquele tempo, não havia uma recusa do sistema escravista em si. Isso só aconteceu com a emergência do movimento abolicionista. Então, nós devemos rever a nossa experiência nacional assim, sem qualquer unilateralismo penitencial. Pelo que estou vendo, a comemoração dos 200 anos do Brasil independente será o avesso do que aconteceu em nosso primeiro centenário. Em 1922, apesar das diferenças políticas e ideológicas, todos se concentraram na necessidade de uma afirmação moderna do Brasil como nação. Em 2022, o papo vai ser outro. O que se tem em vista não é nenhuma afirmação, mas a negação da nação. A desconstrução nacional sonhada pela esquerda identitária.

Ao trazer à tona histórias de negros, mulheres e índios que foram bem-sucedidos ou submeteram outras pessoas, como o senhor fez no livro As Sinhás Pretas da Bahia, isso não seria uma maneira de minimizar a violência ou a repressão que esses grupos sofreram no passado?
Quando os europeus chegaram à África, no século XV, encontraram sociedades escravistas e rigorosamente divididas em classes sociais. No reino do Congo, por exemplo, era proibido o casamento de aristocratas com plebeus. Em Matamba, a rainha Ginga costumava usar suas escravas como poltronas, passando horas sentada em seus dorsos. Não foi o Ocidente que inventou a sociedade de classes, a exploração do homem pelo homem. Os egípcios usavam escravos pretos para construir pirâmides, isto é, para satisfazer o ego de reis megalomaníacos. No Brasil, os tupinambás, que também eram escravistas, chacinaram os tupinaés. Tomaram suas terras e os expulsaram do litoral, escorraçando-os para os sertões. Digo essas coisas porque não existem essas entidades genéricas: “os” negros, “os” índios, “as” mulheres. Isso é mistificação. Do ponto de vista sociológico, sempre houve exploração do negro pelo negro na África. O slogan “Vidas negras importam” (Black Lives Matter, dos protestos nos Estados Unidos) é perfeito para ser gritado hoje nas favelas de Lagos ou de Luanda. Certa vez, uma socialite negra de Chicago disse ao escritor Otis Graham que tinha tanto a ver com os panteras negras quanto um branco rico tinha a ver com seu jardineiro. O problema é que a ideologia identitária se esquece de que existem classes sociais – e assim fica lidando com entidades metafísicas, como “o negro”. Então, é preciso lembrar que a África Negra era escravocrata há milênios, que escravos negros eram enterrados vivos em sacrifício aos deuses etc. Ao cruzar o Atlântico, os iorubás, que foram vendidos ao Brasil pelos reis do Daomé, não deixaram de ser escravistas. E sua primeira providência, ao ascender socialmente, era comprar escravos, dos quais, de resto, se serviam com a mesma crueldade dos senhores brancos.

Zanone Fraissat/FolhapressZanone Fraissat/Folhapress“Temos de não nos enganar, de saber muito bem quem somos”
Mas qual seria o sentido de trazer à tona essas coisas?
Não penso que a melhor maneira de lidar com os nossos problemas seja fazendo de conta que nada disso existiu. Não acredito que a busca de uma sociedade mais justa precise se alicerçar na falsificação histórica e na mentira. Pelo contrário: temos de não nos enganar, de saber muito bem quem somos e do que somos capazes, se realmente queremos caminhar para um mundo melhor.

O sr. fala bastante em classes sociais. É marxista?
Isso vem muito por causa da sociologia. Mas não digo que sou marxista. Fui ligado a isso por causa da política. Quando garoto, fui de uma organização clandestina, a Política Operária, a Polop, a mesma da Dilma Rousseff durante um tempo. Mas eu saí antes de ir para a luta armada. Acabei indo para a contracultura, porque achei que a luta armada era suicídio.

Como lida com as críticas ao seu trabalho, como as de que o sr. estaria minimizando a escravidão ou o patriarcado?
Escrevo as minhas coisas. Conheço algumas pessoas que discordam e discuto um pouco com elas. Mas essas que eu escuto são as pessoas que eu respeito muito. Esse negócio de militante me xingando, me atacando, eu não perco o meu tempo com eles, não.

Muitos brasileiros até pouco tempo atrás se orgulhavam de viver em um país que combatia a corrupção. Essa narrativa desapareceu?
Claro. Tanto Bolsonaro quanto Lula são cínicos o suficiente para dizer que são as almas mais honestas desse país. Há alguns anos, por sinal, ali pelo começo da Lava Jato, escutei uma garota perguntar à mãe, num almoço, o que era caixa 2. Como a mãe não se mostrou interessada no assunto, eu expliquei. Disse que era mais ou menos o que sua mãe fazia, todo final de ano, com relação ao imposto de renda: contratava um especialista, o contador, para esconder o máximo possível do Fisco o dinheiro que ela tinha recebido. A mãe ficou furiosa, claro. Mas a mocinha entendeu. As pessoas adoram vociferar contra a corrupção, como se essa atitude lhes carimbasse o visto de entrada no paraíso. Na verdade, elas não têm autoridade nenhuma para condenar a prática. E elas sabem disso. Ficam furiosas, na maioria dos casos, porque não são elas que estão roubando.

Alguma chance de a tolerância à corrupção diminuir no futuro?
Pode diminuir, obviamente. Mas eu não colocaria isso entre as prioridades de ação, se me fosse dado o poder para estabelecer as metas nacionais. O problema maior do Brasil não está na corrupção, mas na desigualdade social.

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