MarioSabino

A fome

15.10.21

Vinte milhões de brasileiros disseram que costumam passar 24 horas ou mais sem ter o que comer. Outros 24,5 milhões não têm certeza como se alimentarão no seu cotidiano. Mais 75 milhões estão com medo de ser vergastados pela fome. O levantamento, cujos resultados foram divulgados nesta semana, é da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. A situação deve ter piorado, porque os dados são de dezembro de 2020 — antes, portanto, de a inflação iniciar o seu galope.

Nessa escala, fome não é drama pessoal, é tragédia nacional. Mas, à exceção de poucos, estamos insensíveis a ela, assim como nos tornamos — se é que não sempre fomos — insensíveis à corrupção, à criminalidade, à ignorância, à incompetência, à paisagem de devastação das nossas cidades, nas quais o número de favelas dobrou nos últimos dez anos, outro espanto recém-noticiado. E, na nossa insensibilidade, nos deixamos conduzir por gente que, perversamente, aproveita-se da fome de tantos como nós, para fechá-los em currais eleitorais, em troca de comida, e assim perenizar o círculo vicioso. Para essa gente, a fome não é zero e fornece muitos zeros.Um homem com fome não é um homem livre”:  li essa frase de um político americano há alguns anos. Não me lembro do nome do político, mas ela resume como a fome é prisão. Quando se tem fome, mais do que nos dobrarmos sobre o estômago, dobramo-nos ao estômago. É ele o nosso carcereiro. É ele o nosso vaqueiro.

Seria a nossa insensibilidade uma forma de defesa contra a tragédia faminta que nos circunda? Porque a fome nos espreita pelo olhar dos pedintes, pelas aberturas das cabanas instaladas nos canteiros centrais de avenidas, pelo andar dos zumbis que, desistidos de si próprios, vagam pelas ruas com o seu fardo de desesperança, pelo telefonema do parente desempregado, pelo ouvir falar do velho que não chega ao final do mês para dar conta da sua longa inexistência, pelo temor de que sejamos arrancados do meio da pirâmide e também apanhados por ela. Melhor virar o rosto para longe dos que têm fome e igualmente de nós mesmos.

Finjamos, então, que os Severinos são invisíveis. Enganemo-nos que não podemos ser nós, os Severinos. Deixemos os Severinos para o poeta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes do vinte,

de fome um pouco por dia.

PS: a editora Topbooks acaba de lançar Me Odeie pelos Motivos Certos, em versão impressa.  Quem quiser adquirir o livro, com desconto, pode clicar no link. Obrigado aos que já compraram e agradeço antecipadamente aos que vierem a comprar.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO