AlexandreSoares Silva

A maior escritora do Brasil

15.10.21

Com a notícia da entrada de Fernanda Montenegro para a Academia Brasileira de Letras, começou a corrida das editoras brasileiras e portuguesas para publicar as obras completas da lendária escritora carioca. São mais de vinte romances, cinco coletâneas de contos e dois livros de poemas – um poema épico escrito em decassílabos heroicos sobre a vida da atriz Cacilda Becker (“As Cacildíadas”), e outro poema épico de extensão semelhante sobre a vida do ator Procópio Ferreira (“As Procopíadas”).

Mas esses mais de vinte romances — como são esses livros? É um pouco difícil classificar a literatura de Fernanda Montenegro. São talvez romances realistas, que descrevem a violência urbana à la Rubem Fonseca? Nada disso. São então romances intimistas, que mostram as infinitas matizes da psicologia dos personagens? De modo algum. São objetos verbais, focados acima de tudo em estilo e em brincadeiras linguísticas? Também não.

O que é a literatura montenegrina, então? Talvez a obra literária de Fernanda Montenegro possa ser descrita mais por aquilo que ela não é do que por aquilo que é – até porque eu inventei que ela tem uma obra, e na verdade ela nunca escreveu duas linhas além de dois livros de memória escritos em parceria com outras pessoas.

Não importa. A Academia Brasileira de Letras está certa em não julgar um autor das dimensões de Fernanda Montenegro pelo critério da mera quantidade de obras. Se ter escrito cem obras não faz de ninguém um grande autor, ter escrito zero obras não faz de ninguém um não grande autor. O raciocínio da ABL está corretíssimo.

Um critério melhor para julgar um autor é a sua influência, e nesse sentido, pergunto, quantos grandes autores brasileiros não foram influenciados por essa obra toda feita de silêncio e reflexão — por aquilo que ela não diz? Quantos grandes escritores brasileiros nunca escreveram uma linha, copiando o angustiado silêncio montenegrino?

Entre os autores influenciados por Fernanda Montenegro está a reclusa e misteriosa Maria Bethânia, que também acaba de se tornar uma imortal — neste caso da Academia de Letras da Bahia. Um reconhecimento mais do que justo: Maria Bethânia é, como todos sabemos, romancista, contista e autora de centenas de sonetos invisíveis e belíssimos.

Talvez se possa compreender melhor as obras dessas duas monstras da literatura se assumirmos que são seguidoras do movimento literário francês OULIPO, cujos membros se impunham restrições rígidas para escrever obras literárias: o escritor Georges Perec, por exemplo, escreveu um romance inteiro sem a letra “e” (La Disparition,1969). Maria Bethânia deu um passo além (que digo, deu vinte e cinco passos além) e escreveu sem usar nenhuma vogal nem nenhuma consoante, se valendo apenas dos espaços em branco dispostos na página com uma precisão absurda. Eis, por exemplo, um dos melhores contos de Maria Bethânia, intitulado ”            “:

 

 

 

 

 

 

 

 

(Obrigado a Maria Bethânia por permitir a reprodução deste conto na sua íntegra.)

Como o leitor pode ver, a influência (em tom, estilo e temática) da obra de Fernanda Montenegro neste conto de Maria Bethânia é evidente. Essa influência está até no título – ”                  “, não custa lembrar, é também o nome do quarto romance de Fernanda Montenegro, que foi traduzido para 23 línguas e não foi lido por milhões de pessoas no mundo todo.

É assim tão absurdo classificar Fernanda Montenegro, Maria Bethânia, e outros grandes autores brasileiros como Amelinha, Belchior, a famosa Grávida de Sorocaba e o ator que fazia o Zé Bonitinho, como seguidores brasileiros do movimento francês Oulipo? Penso que não.

Ao não escrever uma palavra sequer e se limitar a fazer o papel de velha sábia em filmes, Fernanda Montenegro tem influenciado centenas de grandes escritores a também não escrever nenhuma palavra. Que influência pode ser mais benéfica do que essa? O silêncio de gerações inteiras de escritores nacionais tem um sabor distintamente montenegrino.

Quanto a mim, sonho com a publicação das obras completas de Fernanda Montenegro e Maria Bethânia. Penso em comprar todos os cinquenta e tantos volumes que elas não escreveram, encaderná-los em couro e oferecê-los de presente a Chico Buarque. Quem sabe assim ele não se inspira nessas duas grandes mestras do silêncio para, ele também, deixar de escrever um grande romance.

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