O acerto uruguaio
O Uruguai foi pego de surpresa por uma onda de criminalidade pouco antes da pandemia de Covid. O país pacato e rural, que por décadas registrou de 6 a 8 homicídios para cada 100 mil habitantes por ano, de repente viu essa taxa quase dobrar. Ainda que abaixo dos números brasileiros (hoje o Brasil amarga 21 homicídios por 100 mil habitantes, o dobro do máximo aceitável internacionalmente), ocorreu um abalo na sociedade uruguaia, que também se viu desafiada pela elevação de vários outros crimes. Houve, por exemplo, um aumento de 54% dos roubos à mão armada, de 26% dos furtos e de 40% dos roubos de carro entre 2017 e 2018.
O tema da segurança pública dominou a campanha presidencial de 2019 e foi o principal fator a impedir a vitória do candidato ligado ao governo de Tabaré Vázquez, da coalizão esquerdista Frente Ampla. Quem ganhou a corrida foi Luis Lacalle Pou, que encabeçou uma união de grupos de centro e de direita. Hoje, a onda de violência foi dissipada. Somente 16% dos uruguaios acham que esse é o maior problema do país, índice que há dois anos bateu nos 44%. A população também está mais otimista: para 70%, a situação nas ruas deve melhorar nos próximos meses.
A explicação para o sucesso uruguaio se mistura com a chegada da pandemia, mas não se resume a ela. Lacalle Pou assumiu o governo no dia 1º de março de 2020. Apenas duas semanas depois, ele baixou o decreto de emergência sanitária. Lugares públicos e centros turísticos foram fechados. Medidas duras foram ditadas para evitar a aglomeração de pessoas. A exemplo de outros países, a redução na mobilidade diminuiu a incidência de vários crimes, como os assaltos. Com a volta à normalidade – 75% da população do Uruguai está totalmente vacinada –, a ocorrência de delitos seguiu em trajetória de queda. “Os dados que coletamos mostram que a pandemia ajudou a reduzir os delitos, principalmente em Montevidéu, mas também indicam que políticas públicas tiveram o seu efeito”, diz o economista uruguaio Carlos Díaz, que fez um estudo sobre crimes no mundo durante o surto de Covid.
Duas políticas públicas adotadas pelo governo de Lacalle Pou são apontadas como as principais responsáveis pela redução dos crimes. A primeira delas foi a suspensão de diversos dispositivos do novo Código de Processo Penal, que entrou em vigor em novembro de 2017. Quando foi instituído, com amplo apoio entre os partidos, o código embutia uma boa intenção. O quadro nas prisões uruguaias era calamitoso e muitos detentos estavam no sistema prisional sem nem sequer terem sido condenados. Para evitar a superlotação, a mudança na lei permitiu que promotores e advogados de defesa combinassem uma pena alternativa, que podia ser a realização de trabalhos para a comunidade ou participar de programas de reeducação e tratamento vícios. “O resultado foi que milhares de pessoas passaram a cumprir penas alternativas, mas apenas 20 estavam responsáveis por controlá-las. Em geral, os criminosos continuaram cometendo seus delitos”, diz o cientista político uruguaio Diego Sanjurjo, coordenador de estratégias de prevenção no Ministério do Interior do Uruguai.
Ao assumir, o novo governo deixou de aplicar na totalidade o Código de Processo Penal e voltou a prender. Em pouco mais de um ano, 2 mil pessoas deram entrada nas cadeias. Outra ação foi aumentar as ações policiais contra as bocas de fumo, algo que, no Brasil, nem sempre é possível – nesta semana, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, usou as redes sociais para reclamar de uma decisão judicial que impede as forças policiais de exercerem o monopólio da força em territórios controlados pelo tráfico. No Uruguai, até o ano passado, o número de operações anuais para desarticular os pontos de venda de drogas não passou de 652. Nos primeiros doze meses do novo governo, 1.182 bocas foram fechadas.
A estratégia da polícia uruguaia não foi a de abrir guerra com os traficantes, mas de impedir que eles dominassem áreas. Normalmente, depois de uma batida policial, os vendedores de entorpecentes retornam em outra esquina. Mas o fato de serem obrigados a mudar constantemente de lugar os impede de extorquir dinheiro de moradores e de criar estratégias para impedir a entrada da polícia ou enfrentar outros grupos.
A inação do estado que abre caminho para o domínio dos criminosos sobre o território acaba tornando mais arriscada qualquer iniciativa destinada a retomá-lo. Uma vez que as facções estão estabelecidas, as ações policiais tornam-se mais arriscadas e mais letais. Em junho de 2020, em resposta a uma ação violenta da polícia que resultou na morte de um adolescente, o ministro Edson Fachin do STF concedeu uma liminar que limita ações armadas durante a pandemia – é justamente a ordem judicial da qual o prefeito Paes se queixa. Em agosto, o plenário da corte confirmou a decisão, que passou a restringir operações sem planejamento em áreas densamente povoadas.
Agora otimistas com o quadro de calmaria na segurança pública, os uruguaios têm uma preocupação de outra ordem: com mais gente dentro das prisões, eles temem que se repita por lá o fenômeno brasileiro que deu origem a facções como o PCC, o Primeiro Comando da Capital. “Não podemos nos esquecer que foi dentro das prisões brasileiras que surgiram as grandes organizações criminosas. Então, precisamos cuidar para que o Uruguai não siga o mesmo caminho”, diz Sanjurjo, do Ministério do Interior. A vantagem é que, por lá, ao menos do lado de fora das prisões, a situação está sob controle, graças à crença de que é melhor manter os criminosos na cadeia do que deixar a sociedade refém deles.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.