SergioMoro

Fantasmas do passado, do presente e do futuro

22.10.21

Há períodos na história nos quais os fatos relevantes se acumulam, dificultando ou facilitando, a depender da perspectiva, a tarefa dos periodistas ou colunistas. Trato nessa coluna de dois fatos verificados nos últimos dias, aparentemente dissociados, mas que, na realidade, estão conectados.

Na última quarta-feira, na Câmara dos Deputados, foi derrotada a Proposta de Emenda Constitucional 5 que, se aprovada, teria o efeito prático de permitir a interferência de políticos na atividade do Ministério Público, colocando fim na independência da instituição. Apesar do placar apertado — faltaram só 11 votos para atingir a maioria qualificada para aprovação –, o resultado final é positivo, representando a rejeição uma vitória para as instituições e para a sociedade. Em princípio, a proposta não pode ser validamente reapresentada, ainda que com texto modificado, mas sempre pode haver surpresas em tempos de incertezas.

O Ministério Público comete, sim, equívocos, por vezes pode extrapolar, mas a resposta institucional não pode ser submetê-lo ao controle de agentes políticos, alguns deles investigados pelo próprio Ministério Público. Recordo-me que, meses atrás, dois membros do Ministério Público promoveram uma ação de improbidade administrativa contra mim e que, com todo o respeito, não tinha qualquer substância, tanto que foi rejeitada liminarmente, mas nem por isso passei a defender que a lei de improbidade fosse revogada ou que o Ministério Público fosse controlado politicamente. É necessário pensar além dos interesses próprios ou momentâneos.

A rejeição da proposta é uma das poucas vitórias recentes do movimento anticorrupção. Infelizmente, desde 2018, com aceleração a partir de quando deixei o Ministério da Justiça, temos assistido ao progressivo desmantelamento dos instrumentos de repressão e prevenção da corrupção pública, frustrando a expectativa daqueles que acreditaram que os fatos revelados pela Operação Lava Jato sensibilizariam a classe política para implementar reformas que evitassem a continuidade ou repetição desses mesmos fatos.

Também na quarta tivemos a confirmação de que o governo federal pretende romper o teto de gastos públicos, sob o argumento de que é necessário atender aos mais necessitados com auxílios de transferência de renda. Quanto à necessidade de aprimorar políticas sociais, incluindo o atendimento dos mais carentes, não há disputa a respeito. É uma causa nobre. A questão realmente relevante é se é mesmo necessário fazê-lo com o atropelo da responsabilidade fiscal. Não se trata aqui de uma questão meramente teórica, mas que tem consequências sérias para o presente e o futuro. Se a política fiscal perde a credibilidade, a consequência imediata é o aumento dos juros e a elevação da inflação, medidas que afetam a todos indistintamente, mas que inegavelmente atingem mais fortemente as camadas mais pobres da população, que não têm mecanismos de proteção contra juros e inflação elevadas. O governo dá com uma mão, que é normalmente ineficiente, e tira com a outra, essa implacavelmente eficaz.

Lembro-me da época da hiperinflação, na qual o país tinha a sensação de viver uma guerra perdida. Muitos, após a sucessão de planos frustrados para domar a inflação, resignavam-se com uma realidade que parecia imutável e até mesmo acreditavam que era inútil combater a inflação. O importante era aprender a conviver com ela, o que representava uma síntese da incompetência dos governos. O tempo mostrou que a resignação era equivocada e, com um plano econômico bem elaborado e implementado, a inflação foi trazida a patamares civilizados.

Não há um trade off necessário entre incremento de políticas sociais e responsabilidade fiscal. O que se demanda é diminuir os desperdícios, realocar despesas e focar as políticas sociais no que é prioritário, além de torná-las eficientes. Não parece ser essa a estratégia do momento. Infelizmente, o risco de retrocedermos a um cenário de inflação descontrolada, normalmente acompanhada por juros altos, desemprego elevado e estagnação econômica, não pode ser negligenciado.

Controlar a inflação, como se fez com o Plano Real, assim como prevenir e combater a corrupção, como se fez durante a Lava Jato, são conquistas civilizatórias. Essas ações não pertencem a governos ou a autoridades públicas específicas, pois só foram possíveis com amplo apoio da sociedade civil organizada e da população. Já os responsáveis pelo descontrole da inflação e pelo desmantelamento dos controles sobre a corrupção são mais facilmente identificados, já que a responsabilidade não é aqui coletiva, mas localizada em políticas públicas equivocadas cujos autores são nomináveis.

Retomo o título do artigo. Essa coluna não é um conto de Dickens, mas estamos assistindo, no presente, ao retorno de fantasmas do passado, como a inflação elevada e a impunidade da grande corrupção. Tornam-se esses os fantasmas do presente e que passam a assombrar nosso futuro. Vamos torcer para que seja apenas um pesadelo. Precisamos acordar.

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