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A guerra tucana ameaça a terceira via

Por que a disputa interna entre Doria e Eduardo Leite pode enfraquecer o projeto de unir o centro para derrotar Lula e Bolsonaro
22.10.21

Por mais semelhanças que o processo eleitoral interno do PSDB possa guardar com uma disputa paroquial, seu desdobramento vai muito além do cercadinho do partido. O mundo político acompanha detidamente a batalha das prévias tucanas não apenas para conhecer o candidato da sigla ao Palácio do Planalto em 2022. Esse é só o ponto de partida. O que está em jogo, na verdade, é a definição das demais candidaturas de centro e, consequentemente, o futuro da chamada terceira via. É como se as peças do xadrez eleitoral, posicionadas hoje de uma maneira, aguardassem a definição da refrega para se reacomodar no tabuleiro.

Faltando menos de um mês para as prévias, marcadas para 21 de novembro, a disputa se afunila entre os governadores do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e de São Paulo, João Doria. Se o político gaúcho for o vencedor, automaticamente se abrirá uma avenida para uma possível união da terceira via. Hoje, há um acordo tácito entre ele, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o ex-juiz Sergio Moro, segundo o qual aquele que tiver mais chances de derrotar Lula e Jair Bolsonaro vai receber o apoio dos outros dois.

Leite mantém conversas semanais com a dupla. O ex-prefeito de Pelotas, de 36 anos, diz que, se for escolhido candidato na disputa interna do PSDB, vai envidar todos os esforços para se viabilizar eleitoralmente. O timing é o mês de abril. Sua candidatura parte com 4% dos votos, mas, segundo seus estrategistas, ele tem potencial para alcançar algo em torno de 15% até o fim do primeiro trimestre de 2022, o que o credenciaria para concorrer ao Planalto. Se seu nome empacar e não chegar aos dois dígitos até lá, ele se compromete a ir de Moro, Mandetta ou até outro nome mais bem posicionado que possa ser apoiado pelo trio. “O projeto para o país não pode ser calcado num projeto pessoal. A primeira missão é trazer o país para a serenidade. Quem perde tempo destruindo não constrói. Se tiver alguém com mais condições de unir, estamos juntos. Vamos lá”, afirmou Leite, durante um debate entre os pré-candidatos tucanos promovido pelo Grupo Globo na terça-feira, 19, repetindo o que já havia afirmado na véspera a empresários paulistas.

Quem está à frente do marketing do governador gaúcho é o publicitário Fábio Bernardi, responsável pela campanha vitoriosa do tucano em 2018. Ninguém no entorno de Leite admite publicamente, para não transparecer oportunismo político, mas pesquisas internas mostram que ter se assumido gay em uma entrevista ao jornalista Pedro Bial, em julho, o ajudou a ganhar projeção nacional“O nome dele passou a ser associado a pautas progressistas e a características que pessoas gostam de ver em um líder político, como autenticidade e coragem”, afirma uma pessoa próxima ao governador gaúcho.

A projeção ajudou Leite a se aproximar de potenciais aliados em 2022, como ACM Neto, do União Brasil, a mega legenda de direita fruto da união entre DEM e PSL, e de Gilberto Kassab, o todo-poderoso do PSD, que nesta semana selou o acordo para a filiação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, visto também como alternativa para 2022. Há, entre eles, um canal mais do que escancarado para um diálogo. A chave muda, porém, quando se fala na possibilidade de uma candidatura Doria à Presidência.

Wilson Dias/Agência BrasilWilson Dias/Agência BrasilFernando Henrique: pedido de ajuda não atendido até o momento
Para fora, o governador paulista até ensaia um discurso em favor da união do centro, mas é bem menos incisivo que seu concorrente no PSDB. Não é só por isso, porém, que seu comportamento gera dúvidas. Na hora de cabalar votos, os aliados de Doria criticam Leite por uma qualidade: a de demonstrar capacidade de aglutinação para além das fronteiras do PSDB. A fim de enfraquecê-lo internamente, dizem que o flerte do gaúcho com outras candidaturas é a prova de sua tibieza eleitoral, além de uma clara indicação de que ele não irá adiante como aspirante do PSDB ao Planalto, mesmo que vença as prévias. Já Doria, de acordo com essas mesmas vozes, é candidatíssimo à Presidência, independentemente do cenário.

Esse discurso pode até mexer com o orgulho de setores do tucanato, feridos desde a humilhante derrota de Geraldo Alckmin, em 2018, com insignificantes 4% dos votos. Mas também joga contra Doria num momento em que ele tenta vender ao público a tese de que também prescindiria de sua candidatura em favor de um político que tenha mais condições de quebrar a polarização Lula-Bolsonaro. “A terceira via é a melhor via, e essa será a via do PSDB, junto com outros partidos”, afirma o governador de São Paulo, que também esteve com Sergio Moro e Mandetta, em um jantar no início do mês.

O problema é que poucos acreditam nessa cantilena apaziguadora. Quem conhece Doria de perto sabe de sua obstinação pela candidatura ao Planalto, e não é de hoje“A via de Doria é de mão única: a dele mesmo”, diz um parlamentar tucano. Se confirmado, o vale-tudo do paulista pela cabeça de chapa causaria de cara um efeito colateral irreparável para a terceira via: ela já racharia no nascedouro. Seria o melhor dos mundos para Lula e Bolsonaro, que, com base nas pesquisas segundo as quais mais da metade dos brasileiros ainda não têm um candidato do coração, se dedicam a bater diuturnamente em qualquer alternativa capaz de unir o centro. Na cúpula bolsonarista, os ataques têm cabido ultimamente a Carluxo, o filho 02 do presidente. No PT, quem exerce papel semelhante é a presidente da legenda, Gleisi Hoffmann, com auxílio do próprio Lula aqui e acolá. “Se Doria vencer as prévias e lançar-se candidato, metade dos tucanos fará campanha para Lula e a outra metade, para Bolsonaro”, afirma um cacique do partido.

O petismo e o bolsonarismo entendem que o surgimento de um tertius competitivo na disputa é o grande obstáculo para os planos dos candidatos dos dois extremos, que sonham em se enfrentar no segundo turno. Se o cenário de pulverização de candidatos, como em 2018, for reeditado, tanto Lula como Bolsonaro acreditam que podem sair vitoriosos das urnas. Por isso, no íntimo, ambos torcem para que Doria leve as prévias tucanas e mantenha sua candidatura até o fim. “2018 é passado e o Brasil precisa superá-lo e olhar para o futuro”, defende o presidente do Cidadania, Roberto Freire, que tem elogiado a conduta mais conciliadora de Eduardo Leite.

Para além das incontornáveis diferenças com Doria, foi também por acreditar que ele jamais abriria mão de disputar o Planalto que o grupo de Aécio Neves no PSDB passou a apoiar Leite nas prévias. Para os mineiros, partir para uma eleição sem chances de triunfar nas urnas é condenar o partido a mais uma derrota fragorosa, com reflexos nas bancadas estaduais e federal. O mesmo raciocínio é feito pelos diretórios paulistas antes dominados por Geraldo Alckmin, que hoje cerram fileiras ao lado do governador gaúcho quando o caminho natural seria marchar com Doria. “O Eduardo Leite é preparado, experiente, conciliador, e comunga dos ideais sólidos de todos nós”, diz Pedro Tobias, ex-presidente do diretório tucano em São Paulo.

Moro e Mandetta: as prévias tucanas vão definir os movimentos dos demais players da terceira via
Doria ainda é favorito na disputa tucana, mas as defecções, sobretudo em São Paulo, colocam Leite no páreo na reta final. Pelas projeções das duas campanhas, o placar estaria 60% a 40% pró-Doria, mas com forte tendência de alta do governador do Rio Grande do Sul. Preocupado com o avanço do oponente, o governador de São Paulo tenta recorrer a Fernando Henrique Cardoso. Em demorado telefonema há duas semanas, ele pediu ao ex-presidente uma declaração pública de apoio. Até agora, porém, FHC tem resistido. Do outro lado da trincheira, Leite trabalha para convencer o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio, sem qualquer chance de vencer a disputa interna, a apoiá-lo, seguindo o caminho já adotado pelo senador Tasso Jereissati, coordenador de sua campanha no Nordeste.

Animado com o clima aparentemente favorável, Leite elevou o tom. Em visita a São Paulo, depois que Doria lançou dúvidas sobre o aplicativo lançado pelo PSDB para as prévias (o app foi desenvolvido, coincidentemente, no Rio Grande do Sul) e ameaçou não comparecer ao debate desta semana, o gaúcho disparou: “Negar participação no debate e lançar suspeitas à forma de votação é coisa do bolsonarismo. Espero que não volte o bolsodoria”. O ambiente ficou carregado. Temendo a repercussão negativa, Doria recuou e de última hora decidiu participar do evento. Mesmo assim, foi necessária uma conversa prévia entre os dois para que não sobrassem chutes abaixo da linha da cintura. Apesar de o debate ter dado bocejo, de tão morno, pegou mal no partido o look adotado pelo governador paulista: enquanto Virgílio e Leite vestiram o figurino tradicional, terno e gravata, ele fez o estilo informal, com mangas arregaçadas e sapatos sem meias“Passou a impressão de desleixo e descompromisso. Foi como se dissesse: ‘eu até vou ao debate, mas do jeito que eu quiser’”, lamentou um dirigente do PSDB nordestino, aliado de Eduardo Leite.

Apesar das juras de armistício, o clima interno segue pesado. Na quinta-feira, 21, parlamentares tucanos ligados a Leite apresentaram ao diretório nacional da legenda uma denúncia de fraude no registro de filiação de aliados de Doria. Integrantes dos diretórios de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Ceará entregaram documentos à cúpula do partido em Brasília que comprovariam a filiação irregular de 51 prefeitos e 49 subprefeitos de São Paulo, reduto do candidato paulista. Prefeitos e vices do partido compõem 25% do eleitorado do PSDB. “A data de filiação foi alterada para que, indevidamente, pudessem votar”, acusou o ex-deputado Nelson Marchezan Júnior. Para que um tucano possa estar apto a votar nas prévias, ele deve ter se filiado antes do dia 21 de maio, segundo as regras internas estabelecidas para a disputa. O caso vai parar na Justiça – o grupo pró-Leite promete acionar o Ministério Público e o Tribunal Superior Eleitoral – e pode abrir brecha para que o resultado possa ser contestado.

Esse, aliás, é um dos desafios capitais do partido: evitar que a sigla saia alquebrada das prévias. O histórico não recomenda otimismo. Desde que FHC deixou o poder há quase duas décadas, o PSDB tem encontrado dificuldades em alcançar a unidade. Não raro, perdedores nas disputas internas boicotam as candidaturas dos vencedores. Em 2002, a queda de braço não envolveu métodos, digamos, muito republicanos. A disputa nos bastidores foi embalada por uma guerra de dossiês que teve como alvo o próprio Tasso Jereissati. Ao fim, Tasso apoiou Ciro Gomes e Serra, que conseguiu brigar com o PFL, então aliado de primeira hora dos tucanos, foi para uma eleição praticamente isolado e perdeu para Lula. Em 2014, antes de ser finalmente confirmado como candidato à Presidência, Aécio vivia às turras com a ala paulista do PSDB. Já em 2018, o preterido Doria abandonou Alckmin à própria sorte e passou a desfilar em São Paulo, maior colégio eleitoral do país, ao lado de Bolsonaro – cunhando a aliança que ficou conhecida como bolsodoria. O resultado é conhecido.

Para 2022, pior do que rachar a própria legenda, será fazer um strike nas alternativas capazes de derrotar Lula e Bolsonaro. As cinco derrotas consecutivas nas eleições presidenciais mostram um partido sem rumo, sem projeto de país e divorciado do eleitorado. O fosso pode ficar ainda maior se o PSDB for o responsável por implodir a terceira via.

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