Edilson Rodrigues/Agência SenadoOmar Aziz e Renan Calheiros na sessão de apresentação do relatório final da CPI: nove crimes para Bolsonaro

O epílogo da tragédia

Sim, a CPI da Covid falhou ao se render aos holofotes. Mas chega ao fim cumprindo a tarefa de dar a moldura necessária ao desastre do governo no combate à pandemia
22.10.21

A CPI que mais atraiu a atenção dos brasileiros em todos os tempos caminha para o fim depois de mais de 60 reuniões, 47 depoimentos colhidos e 9,4 terabytes de documentos recebidos e analisados. Foram seis meses de investigação. Embora tenha sucumbido à tentação dos holofotes, a comissão cumpriu o papel de, pela primeira vez na história, e sem recorrer a mesuras, propor o indiciamento de um presidente por nove crimes na gestão da pandemia.

O relatório final da comissão, apresentado nesta quarta-feira, 20, pelo relator Renan Calheiros, do MDB, será votado pela comissão na próxima semana. O documento atribui a Bolsonaro responsabilidade direta pelo morticínio, que já deixou um rastro de 604 mil mortes e mais de 27 milhões de contaminados no país. Com base em evidências exibidas ao longo de 1.180 páginas, divididas em 16 capítulos, foram atribuídos a Bolsonaro os crimes de infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, epidemia com resultado de morte, falsificação de documento particular, prevaricação e emprego irregular de verba pública, além de crime de responsabilidade e crime contra a humanidade.

O texto amarra o que ao de pior o brasileiro assistiu desde o início da pandemia. Diz que o presidente estimulou aglomerações, investiu contra o distanciamento social, desestimulou o uso de máscaras, virou garoto-propaganda de remédios ineficazes e atrasou a compra de vacinas porque apostava todas as fichas na propagação intencional do vírus, a famosa “imunidade de rebanho natural”.

O relatório também propôs o indiciamento dos três filhos políticos do presidente, do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga, além de empresários e médicos. Ao todo, a lista de pedidos de indiciamento tem 66 nomes. O documento diz que a disseminação de notícias falsas e desinformação sobre a pandemia estão entre os fatores responsáveis pelas mortes por Covid. Segundo o relator, as fake news resultaram em óbitos que poderiam ter sido evitados, uma vez que teriam gerado “uma exposição perigosa e desnecessária” ao vírus.

“Essa CPI é a primeira a comprovar as digitais de um presidente da República na morte de milhares de cidadãos”, afirmou Renan, acrescentando que, ao agir deliberadamente para atrasar a compra de vacinas, o governo “assentiu com a morte de brasileiras e brasileiros”. As empresas VTCLog e Precisa Medicamentos, metidas em suspeitas de desvio de dinheiro do Ministério da Saúde, também foram enquadradas no relatório. Ao apresentar denúncia contra a VTCLog, Renan mencionou reportagem de Crusoé“Reportagem da revista Crusoé publicada em 16 de julho de 2021 detalha o suposto esquema e sugere o envolvimento de outros agentes públicos e empresários”, diz o texto. Outra empresa presente no relatório é a Prevent Senior. Renan a acusa de ter feito uma “associação sinistra” com o governo federal, ao realizar pesquisas ilegais com pacientes, usando remédios sem comprovação científica contra a Covid.

Roberto Jayme/Ascom/TSERoberto Jayme/Ascom/TSEBolsonaro com os filhos 01, 02 e 03: todos estão no relatório de Renan
Figuras ligadas ao bolsonarismo, como o empresário Luciano Hang e o blogueiro Allan dos Santos, que vive nos Estados Unidos e teve a prisão preventiva decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, também aparecem no documento, por incitação ao crime contra a saúde pública. O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, do Progressistas, mereceu 88 citações no relatório. Um capítulo inteiro, de mais de 23 páginas, foi dedicado aos supostos crimes cometidos por ele. Barros é acusado de advocacia administrativa, organização criminosa e improbidade administrativa.

Muitos dos envolvidos responderam fazendo piada, como se o momento fosse propício para isso. Em entrevista, Ricardo Barros desdenhou da atuação da CPI dizendo que o relatório final não vai resultar em “absolutamente nada”. Questionado sobre como Jair Bolsonaro reagiria às conclusões documento, o senador Flávio Bolsonaro disse que o presidente reagiria às gargalhadas – teatralmente, ele imitou o que seria a reação do pai. O próprio Bolsonaro também tratou de desqualificar o trabalho. “Nada produziram a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Sabemos que não temos culpa de absolutamente nada”, disse.

Afora o já esperado barulho dos governistas, o relatório de Renan deve ser aprovado sem maiores sustos. Para esse desfecho favorável, porém, foi necessário um “freio de arrumação”. É que, na tentativa de ampliar o apelo midiático, a CPI perdeu-se muitas vezes nos limites formais de sua atuação. Por pouco não ocorreu o mesmo com a primeira versão do relatório final, da lavra do mesmo Renan, o notório Renan, que há muito não tinha tantos holofotes voltados para si, a não ser quando tinha de responder a denúncias de corrupção.

O vazamento de trechos do relatório sem o consentimento da cúpula da comissão acendeu a fogueira de vaidades dentro do chamado G7, o grupo de senadores que conduziu os trabalhos desde o começo. O presidente da CPI, Omar Aziz, fez acusações públicas contra Renan. A avaliação de parte dos senadores era a de que, com o vazamento, Renan queria retirar dele próprio a responsabilidade de não impingir ao presidente acusações mais graves e  fazer um “jogo de cena” junto à opinião pública para sair como alguém que “tentou, mas não conseguiu”.

Para que a bandeira branca fosse hasteada, foi providencial uma reunião na noite de terça-feira, 19, na casa do senador Tasso Jereissati. Não sem alguma escaramuça. Aziz cobrou Renan pelo vazamento do relatório. “Se fui eu que vazei, e daí?”, retrucou o cacique alagoano, sem meias-palavras. Os momentos de maior tensão envolveram o relator da CPI e o senador Eduardo Braga, que, segundo os presentes, por exigir muitas alterações no texto, deixou Renan impaciente.

Adriano Machado /CrusoéAdriano Machado /CrusoéAugusto Aras agora será ainda mais pressionado a agir
Ao fim e ao cabo, foram retirados do documento acusações vistas como exageradas pelo conjunto dos senadores, como a de que Bolsonaro teria incorrido também no crime de homicídio qualificado. Na versão final do relatório, genocídio foi trocado pela tipificação de “crimes contra a humanidade” e homicídio deu lugar a “epidemia resultando em morte”. No dia seguinte à reunião, de mais de três horas, Renan foi a público dizer que iria primar pela “convergência”.

O relatório é só o começo de um trabalho que deve ter como objetivo a punição dos responsáveis pela maior tragédia sanitária do país. Levar as acusações às barras dos tribunais não será tarefa trivial. Há descrença quanto à possibilidade de o procurador-geral da República, Augusto Aras, transformar as propostas de indiciamento em acusações formais. “Óbvio que ele vai tentar blindar o presidente da República, mas para isso existe a manifestação das ruas, da população, inclusive das redes sociais e da própria imprensa. Ele não é o Ministério Público. Ele representa o órgão de fiscalização e controle do país. Portanto, acredito que o PGR vai dar prosseguimento, se não a tudo, mas a grande parte do relatório da CPI”, afirma a senadora Simone Tebet, do MDB.

O senador Alessandro Vieira, do Cidadania, que no início desta semana acusou Aras de ser um “político vestido de procurador-geral da República”, disse que “a gravidade dos fatos comprovados pela CPI e a cobrança da sociedade devem fazer o PGR cumprir a sua obrigação”. As pressões nesse sentido se intensificarão na próxima quarta-feira, 27, dia seguinte à votação do relatório final, quando uma comitiva de integrantes da CPI deverá se dirigir ao gabinete do PGR para pedir pessoalmente que ele não engavete as conclusões da CPI.

Caso o Ministério Público não atue contra Bolsonaro em até 30 dias, uma estratégia alternativa já maquinada pelos senadores é apresentar uma “ação penal privada subsidiária da pública”A ação penal subsidiária está prevista na Constituição e no Código de Processo Penal e pode ser apresentada junto ao Supremo no caso de o Ministério Público Federal se omitir, deixar de agir ou arquivar diante de acusações contra autoridades com foro privilegiado, como o presidente da República, ministros de estado e parlamentares. Aí, caberia ao STF decidir se abriria um inquérito contra essas autoridades. Assim como a tragédia, que ainda não terminou, a novela política ainda terá muitos capítulos pela frente. Espera-se que, de fato, haja consequências.

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