O epílogo da tragédia
A CPI que mais atraiu a atenção dos brasileiros em todos os tempos caminha para o fim depois de mais de 60 reuniões, 47 depoimentos colhidos e 9,4 terabytes de documentos recebidos e analisados. Foram seis meses de investigação. Embora tenha sucumbido à tentação dos holofotes, a comissão cumpriu o papel de, pela primeira vez na história, e sem recorrer a mesuras, propor o indiciamento de um presidente por nove crimes na gestão da pandemia.
O relatório final da comissão, apresentado nesta quarta-feira, 20, pelo relator Renan Calheiros, do MDB, será votado pela comissão na próxima semana. O documento atribui a Bolsonaro responsabilidade direta pelo morticínio, que já deixou um rastro de 604 mil mortes e mais de 27 milhões de contaminados no país. Com base em evidências exibidas ao longo de 1.180 páginas, divididas em 16 capítulos, foram atribuídos a Bolsonaro os crimes de infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, epidemia com resultado de morte, falsificação de documento particular, prevaricação e emprego irregular de verba pública, além de crime de responsabilidade e crime contra a humanidade.
O texto amarra o que ao de pior o brasileiro assistiu desde o início da pandemia. Diz que o presidente estimulou aglomerações, investiu contra o distanciamento social, desestimulou o uso de máscaras, virou garoto-propaganda de remédios ineficazes e atrasou a compra de vacinas porque apostava todas as fichas na propagação intencional do vírus, a famosa “imunidade de rebanho natural”.
O relatório também propôs o indiciamento dos três filhos políticos do presidente, do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga, além de empresários e médicos. Ao todo, a lista de pedidos de indiciamento tem 66 nomes. O documento diz que a disseminação de notícias falsas e desinformação sobre a pandemia estão entre os fatores responsáveis pelas mortes por Covid. Segundo o relator, as fake news resultaram em óbitos que poderiam ter sido evitados, uma vez que teriam gerado “uma exposição perigosa e desnecessária” ao vírus.
“Essa CPI é a primeira a comprovar as digitais de um presidente da República na morte de milhares de cidadãos”, afirmou Renan, acrescentando que, ao agir deliberadamente para atrasar a compra de vacinas, o governo “assentiu com a morte de brasileiras e brasileiros”. As empresas VTCLog e Precisa Medicamentos, metidas em suspeitas de desvio de dinheiro do Ministério da Saúde, também foram enquadradas no relatório. Ao apresentar denúncia contra a VTCLog, Renan mencionou reportagem de Crusoé: “Reportagem da revista Crusoé publicada em 16 de julho de 2021 detalha o suposto esquema e sugere o envolvimento de outros agentes públicos e empresários”, diz o texto. Outra empresa presente no relatório é a Prevent Senior. Renan a acusa de ter feito uma “associação sinistra” com o governo federal, ao realizar pesquisas ilegais com pacientes, usando remédios sem comprovação científica contra a Covid.
Muitos dos envolvidos responderam fazendo piada, como se o momento fosse propício para isso. Em entrevista, Ricardo Barros desdenhou da atuação da CPI dizendo que o relatório final não vai resultar em “absolutamente nada”. Questionado sobre como Jair Bolsonaro reagiria às conclusões documento, o senador Flávio Bolsonaro disse que o presidente reagiria às gargalhadas – teatralmente, ele imitou o que seria a reação do pai. O próprio Bolsonaro também tratou de desqualificar o trabalho. “Nada produziram a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Sabemos que não temos culpa de absolutamente nada”, disse.
Afora o já esperado barulho dos governistas, o relatório de Renan deve ser aprovado sem maiores sustos. Para esse desfecho favorável, porém, foi necessário um “freio de arrumação”. É que, na tentativa de ampliar o apelo midiático, a CPI perdeu-se muitas vezes nos limites formais de sua atuação. Por pouco não ocorreu o mesmo com a primeira versão do relatório final, da lavra do mesmo Renan, o notório Renan, que há muito não tinha tantos holofotes voltados para si, a não ser quando tinha de responder a denúncias de corrupção.
O vazamento de trechos do relatório sem o consentimento da cúpula da comissão acendeu a fogueira de vaidades dentro do chamado G7, o grupo de senadores que conduziu os trabalhos desde o começo. O presidente da CPI, Omar Aziz, fez acusações públicas contra Renan. A avaliação de parte dos senadores era a de que, com o vazamento, Renan queria retirar dele próprio a responsabilidade de não impingir ao presidente acusações mais graves e fazer um “jogo de cena” junto à opinião pública para sair como alguém que “tentou, mas não conseguiu”.
Para que a bandeira branca fosse hasteada, foi providencial uma reunião na noite de terça-feira, 19, na casa do senador Tasso Jereissati. Não sem alguma escaramuça. Aziz cobrou Renan pelo vazamento do relatório. “Se fui eu que vazei, e daí?”, retrucou o cacique alagoano, sem meias-palavras. Os momentos de maior tensão envolveram o relator da CPI e o senador Eduardo Braga, que, segundo os presentes, por exigir muitas alterações no texto, deixou Renan impaciente.
O relatório é só o começo de um trabalho que deve ter como objetivo a punição dos responsáveis pela maior tragédia sanitária do país. Levar as acusações às barras dos tribunais não será tarefa trivial. Há descrença quanto à possibilidade de o procurador-geral da República, Augusto Aras, transformar as propostas de indiciamento em acusações formais. “Óbvio que ele vai tentar blindar o presidente da República, mas para isso existe a manifestação das ruas, da população, inclusive das redes sociais e da própria imprensa. Ele não é o Ministério Público. Ele representa o órgão de fiscalização e controle do país. Portanto, acredito que o PGR vai dar prosseguimento, se não a tudo, mas a grande parte do relatório da CPI”, afirma a senadora Simone Tebet, do MDB.
O senador Alessandro Vieira, do Cidadania, que no início desta semana acusou Aras de ser um “político vestido de procurador-geral da República”, disse que “a gravidade dos fatos comprovados pela CPI e a cobrança da sociedade devem fazer o PGR cumprir a sua obrigação”. As pressões nesse sentido se intensificarão na próxima quarta-feira, 27, dia seguinte à votação do relatório final, quando uma comitiva de integrantes da CPI deverá se dirigir ao gabinete do PGR para pedir pessoalmente que ele não engavete as conclusões da CPI.
Caso o Ministério Público não atue contra Bolsonaro em até 30 dias, uma estratégia alternativa já maquinada pelos senadores é apresentar uma “ação penal privada subsidiária da pública”. A ação penal subsidiária está prevista na Constituição e no Código de Processo Penal e pode ser apresentada junto ao Supremo no caso de o Ministério Público Federal se omitir, deixar de agir ou arquivar diante de acusações contra autoridades com foro privilegiado, como o presidente da República, ministros de estado e parlamentares. Aí, caberia ao STF decidir se abriria um inquérito contra essas autoridades. Assim como a tragédia, que ainda não terminou, a novela política ainda terá muitos capítulos pela frente. Espera-se que, de fato, haja consequências.
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