Marcello Casal Jr./Agencia Brasil

O rachadão cultural

De militares a religiosos, o ator Mario Frias transforma a Secretaria de Cultura em um balcão para distribuir verbas a grupos ligados ao bolsonarismo
29.10.21

O ator Mario Frias teve quase toda a sua trajetória profissional associada ao papel de galã da minissérie juvenil Malhação. Desde que assumiu o comando da Secretaria Especial de Cultura do governo federal, em junho do ano passado, ele virou alvo de outra associação imediata. Ganhou a pecha de bajulador-mor do presidente Jair Bolsonaro e se transformou em um dos símbolos da ala ideológica do Planalto. A imagem não guarda relação apenas com o comportamento do secretário, que dedica boa parte do tempo à exaltação pública de Bolsonaro – tratado com uma veneração quase adolescente. Frias abriu as portas do ministério para a base radical do presidente e escancarou os cofres para segmentos de interesse de seus aliados.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, Crusoé obteve dados que mostram como a secretaria de Frias virou um balcão para atender demandas de pessoas próximas de Bolsonaro e de setores ligados ao bolsonarismo. Sob o comando do ator, a pasta deu aval a dezenas de projetos militares do Ministério da Defesa, assegurou atenção especial a representantes do segmento evangélico e passou a financiar com generosidade o setor de jogos eletrônicos.

Como esse ramo é a grande aposta profissional de Jair Renan Bolsonaro, o próprio filho 04 do presidente passou a frequentar o gabinete de Frias, orientando-o sobre políticas públicas relacionadas à área. No mês passado, causou polêmica nas redes sociais a aprovação, pela Comissão do Fundo Nacional da Cultura, do projeto Casinha Games, que prevê ajuda para a formação de profissionais na área de jogos ao custo de 4,6 milhões de reais. A Secretaria de Cultura não divulgou nenhum detalhe sobre a iniciativa, o que gerou questionamentos sobre o possível interesse de Jair Renan na empreitada. A pasta ignorou pedidos de informações e Mario Frias, como de costume, foi às redes sociais dizer que a imprensa “cria narrativas maldosas para atacar um governo extremamente honesto”.

Os jogos eletrônicos passaram a ser reconhecidos como segmento cultural dentro da área audiovisual ainda no governo Dilma Rousseff, em 2011. A medida permitiu o recebimento de recursos, doações e patrocínios. Em 2019 e 2020, sob Bolsonaro, o financiamento estatal a projetos do setor teve forte crescimento. Por meio da Lei Rouanet, a Secretaria de Cultura aprovou repasses a eventos na área de jogos eletrônicos, como o Game XP, no valor de 1,8 milhão de reais, e o Game Live Rio Adventure, com aval para captação de 1,1 milhão de reais, além de recursos para projetos de desenvolvimento e produção de jogos digitais.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéProjetos de games deslancharam depois que o “04” passou a orientar Frias
O crescimento do interesse da pasta por projetos de games coincide com o lobby de Jair Renan por ações do segmento. Em agosto do ano passado, o filho mais novo de Bolsonaro visitou a secretaria, para pedir apoio a projetos ligados aos esportes eletrônicos, os e-sports. O “04” e Mário Frias não só fizeram questão de divulgar a audiência, como exibiram fotos do encontro nas redes sociais. Quatro meses depois, a Secretaria de Cultura fechou convênios de quase 10 milhões de reais com estados para projetos na área.

O acordo prevê a criação de um “programa de fomento aos jogos eletrônicos no Brasil”. Entre as ações previstas, estão maratonas de desenvolvimento de jogos eletrônicos para amadores, campeonatos de esportes eletrônicos, conferências de qualificação, palestras de especialistas e seminários digitais. Os recursos foram repassados para o Distrito Federal, Acre e Pernambuco. Em Brasília, o responsável pelo convênio de 5,4 milhões de reais foi o secretário de Ciência e Tecnologia, Gilvan Máximo, uma importante liderança do Republicanos, partido que integra o Centrão. Aqui, a história traz uma curiosidade que retrata de forma peculiar as relações dos Bolsonaro em Brasília: Gilvan é casado com a joalheira Miranda Castro, amiga da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Além de fornecer peças para celebridades como Xuxa e Angélica, Miranda também costuma marcar nas suas redes sociais fotos em que Michelle Bolsonaro aparece usando joias da marca – a primeira-dama tem se notabilizado por fazer permutas, ou seja, fazer propaganda de peças que recebe.

Na primeira reunião da Comissão do Fundo Nacional da Cultura realizada este ano, em fevereiro, além de aprovar o projeto Casinha Games, idealizado por Mario Frias, o grupo deu aval também a outros 97 projetos. Um dado chama a atenção: 25% das propostas que receberam o aval do colegiado são do Ministério da Defesa. Com Frias, a Secretaria de Cultura passou a experimentar também uma espécie de militarização das iniciativas – bem ao gosto do presidente Jair Bolsonaro e de sua militância mais radical. Entre os projetos que tiveram aval para receber dinheiro do Fundo Nacional de Cultura, estão uma apresentação da esquadrilha da fumaça da Força Aérea Brasileira, ao custo de 376 mil reais, a exposição de uma réplica do caça sueco Gripen, com despesas de 70 mil reais e a organização de um seminário sobre os aspectos geopolíticos das grandes navegações e sobre o poder naval na defesa. O evento tinha custo estimado de 208 mil reais. A Comissão do Fundo Nacional da Cultura aprovou também mais de 2,2 milhões para exposições da Marinha, com temas como “conflitos navais” e “marinheiros”, e destinou recursos para a construção e restauração de maquetes.

Há ainda outra destinação da secretaria feita sob medida para agradar à base bolsonarista: o governo aprovou a liberação de 6,6 milhões de reais para 19 peças de teatro com personagens bíblicos, festivais com temática religiosa e eventos organizados por entidades evangélicas“Ao mesmo tempo, o governo suspendeu um projeto que já estava com a captação realizada no Pará, ao que tudo indica, por conta do nome do espetáculo, que se chama Ópera dos Terreiros”, lamenta a presidente da Comissão de Cultura da Câmara, deputada Alice Portugal, do PCdoB.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAntecessora de Frias, Regina Duarte promoveu demissões na pasta para atender Bolsonaro
A apresentação com músicas ligadas a religiões de matriz africana é organizada por um núcleo de ópera da Bahia, que tem entre os patronos o cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil. A encenação estava prevista para o mês que vem, durante o Festival de Ópera do Theatro da Paz, em Belém. Sem o dinheiro, autorizado em dezembro do ano passado – mas até hoje travado na burocracia federal –, o grupo adiou o espetáculo para janeiro de 2022, na esperança de que a liberação dos recursos ocorra até lá.

Com a vassalagem explícita, nos corredores da Secretaria de Cultura têm sido frequentes as especulações de que o ator investe para se consolidar como candidato a deputado em 2022. Funcionários de carreira do órgão dizem que ele montou uma espécie de estúdio particular dentro da pasta, para divulgar suas “realizações”. O clima na Cultura para quem não reza na cartilha de Frias é de tensão. No início do ano, ele foi acusado de andar e despachar armado no ambiente de trabalho, deixando a arma visível na cintura – Frias tem uma pistola Taurus registrada em seu nome, de acordo com o site da Polícia Federal.

Enquanto isso, músicos, atores, cineastas, bailarinos, artistas plásticos, museólogos e entidades que atuam na preservação do patrimônio brasileiro amargam restrições orçamentárias. Em 2021, o valor previsto para a área foi de 1,7 bilhão de reais. Em 2018, era de 2,3 bilhões. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, por exemplo, tem hoje um orçamento oito vezes menor do que nos governos anteriores. “Uma parte grande do setor cultural precisa de apoio constante, porque não tem viabilidade econômica, como música erudita, parte do teatro, sem falar no cinema. O corte de recursos e essa política de distribuição discricionária para alguns segmentos vão causar um estrago permanente, porque já tiraram um monte de gente do mercado”, diz Pablo Ortellado, especialista em estudos culturais e professor de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo.

Enquanto a cultura agoniza, Mario Frias e outros radicais do ministério, como o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, o ex-policial militar André Porciúncula, seguem firmes na prática do “rachadão cultural”, com o propósito de fazer da pasta um bunker da ala ideológica. Com a bênção, claro, de Jair Bolsonaro.

Com reportagem de Patrik Camporez

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