RuyGoiaba

Sebastianismo 2.0

05.11.21

Dom Sebastião, que se tornou rei de Portugal em 1557, aos três anos de idade, não parecia uma figura talhada para se tornar mito. Laurentino Gomes conta o seguinte no primeiro volume de sua trilogia sobre a escravidão: “(…) Ainda muito jovem, ‘o Desejado’ decidira fazer votos de castidade. Desse modo, não teria filhos nem sucessores. Relatos da época diziam que uma doença teria atrofiado seus órgãos genitais, fazendo com que perdesse totalmente o interesse por sexo ou mulheres. Além de casto, dom Sebastião tinha um cuidado exagerado com a aparência, evitava companhias femininas e vivia longe da corte, preferindo passar o tempo a viajar pelo Alentejo e pelo Algarve, cercado de jovens cortesãos, com quem praticava exercícios físicos e desportos de campo”.

Acontece que esse rei metrossexual (para quem falar de casamento era como “falar de morte”, segundo escreveu o embaixador espanhol em Lisboa) também acreditava que sua missão era combater os mouros e retomar as fortalezas da costa africana que os portugueses haviam perdido. Uma campanha militar desastrosa resultou na sua morte, aos 24 anos, na batalha de Alcácer-Quibir, em Marrocos; dois anos depois, em 1580, Portugal perdeu sua independência com a ascensão ao trono de Filipe II da Espanha. O corpo de Sebastião jamais foi identificado, embora exista um túmulo para ele no Mosteiro dos Jerônimos.

Surgiu aí o mito do sebastianismo: o rei não morreu, está “encantado” em alguma terra mágica e um dia retornará para restituir a Portugal as glórias perdidas. Não é bem uma teoria conspiratória, mas mostra que o ser humano — essa espécie de carioca universal — já era chegado num caô desde tempos imemoriais. Há em todas as religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo, islamismo) uma mitologia desse tipo, mas o sebastianismo, como assinala Laurentino, esteve na raiz “de inúmeros movimentos messiânicos da história brasileira”. Em Canudos, por exemplo, Antônio Conselheiro dizia aos fiéis que dom Sebastião sairia do mar com o seu exército (se bem que não sei se dá para confiar no correspondente do Estadão, um tal de Euclides da Cunha. Essa mídia golpista distorce tudo).

E, a rigor, nem é necessária a “herança ibérica” para que alguém seja sebastianista. Basta ver a história dos dementes que se reuniram em Dallas nesta semana, à espera de que o filho mais novo de JFK — John Kennedy Jr., que morreu num acidente de avião em 1999 — fizesse as seguintes coisas, nesta ordem: a) reaparecesse depois de 22 anos “escondido”; b) assumisse como vice-presidente de Donald Trump quando o ex-presidente republicano, ídolo dos conspiracionistas da QAnon, fosse reinstalado na Casa Branca. Essa gente, meus amigos, vota — e não há nem sequer uma boa alma que lhes vista uma camisa de força ou os acomode numa cela acolchoada. (Como disse um amigo, considerando a ligação da família Kennedy com os democratas, é MENOS absurdo crer na ressurreição de John Jr. que nele topando ser vice do Trump.)

Mas deixemos os gringos lá com a loucura deles. O problema para nós, habitantes do Bananão, é que a política brasileira é sebastianista — até hoje. Eu sei que é clichê falar em “salvador da pátria”, mas o Brasil é um clichezão e funciona desse jeito mesmo (narrador: “na verdade, não funciona”). Aqui tem sebastianismo para todos os gostos ideológicos, à esquerda e à direita, e o dom Sebastião não precisa nem morrer: basta passar por alguma situação adversa e ressurgir “mais forte” para redimir os brasileirinhos. Creio mesmo que nossa cloaca cotidiana só terá alguma chance de melhorar se a ideia do “salvador”, assim como a noção de “carisma”, for morta a pauladas — o que não deve acontecer no futuro próximo, nem no distante, muito menos na eleição de 2022.

Sebastianismo só é bacana se for para ressuscitar Sebastião Rodrigues Maia, o Tim. Com guaraná, suco de caju e — claro — goiabada para sobremesa.

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A GOIABICE DA SEMANA

Tem que ser Jair Bolsonaro, esse gênio, contando que participou de uma conversa reservada com “Jim Carrey” quando queria se referir a John Kerry. Todas as piadas envolvendo os filmes do comediante e a vida e obra do presidente brasileiro (O Mentiroso, Débi & Loide, O Pentelho, O Golpista do Ano etc.) já foram feitas, então me limito a fazer como a torcida do Corinthians e levantar minha faixa pedindo a saída da “diretoria Jim Carrey” que governa o Brasil, “pois são comédias”. Como escreveram outros corintianos indignados durante um protesto, é muita EMCOMPETÊNCIA. (Eu tinha acabado de escrever este texto quando a mesma mente brilhante, que já afirmou que a vacina contra a Covid pode provocar Aids, concedeu a si própria a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico. Chegamos ao ridículo no nível de um Idi Amin, um Bokassa.)

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NELSON FREIRE (1944-2021)

O maior pianista brasileiro — que morreu nesta semana, aos 77 anos — sempre foi uma espécie de antídoto a tudo isso que escrevi nos parágrafos anteriores. O Brasil perdeu um gigante, mas ainda há muito da arte de Nelson Freire espalhada por todo lugar: em discos, filmes, sites de vídeo, plataformas de streaming. Nunca deixem de ouvir as grandes belezas que ele nos legou. Descanse em paz.

Reprodução/New Line CinemaReprodução/New Line CinemaJim Carrey, em ‘Débi & Loide’, filme no qual não faz dupla com Jair Bolsonaro

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