AlexandreSoares Silva

‘Marighella’ sem anestesia

12.11.21

Não é preciso fazer arte de direita, só é preciso fazer um pouco de arte que não seja de esquerda. De vez em quando, por que não? Só pra variar um pouco?

Uma história apolítica, umazinha que seja, entre as vinte que aparecem todos os dias no streaming, só que essa seria (imagine que coisa louca) sem mensagens políticas subliminares que são tão pouco subliminares que uma mão praticamente sai da tela e tatua a mensagem na sua testa enquanto você berra e o sangue escorre pela sua cara e encharca o seu sofá. Não seria ótimo? Não seria refrescante?

Nem sei o que seria arte de direita. Seria igualmente horrível, embora pra falar a verdade acho que talvez fosse levemente menos desagradável, porque essa seria pelo menos uma coisa horrível que concorda comigo. Queria ver umas coisas que concordam comigo de vez em quando.

Uma coisa sobre a arte de esquerda hoje é que eles ataram as próprias mãos. Embora sejam compelidos monomaniacamente a falar sobre isso, não podem fazer uma história séria sobre o relacionamento entre as raças, as classes ou os sexos, porque vão ser obrigados pelo próprio lado deles a simplificar e mentir.

Tudo o que fazem são infantilidades. O branco mau, o branco sem noção que não percebe o próprio racismo, o patrão mau, a dona de casa má, a empregada sofrida com sua fezinha vista condescendentemente lá de cima, o general mau, impotente e (surpresa) homossexual, a mulher frágil porém forte, apanhando da sociedade patriarcal dos anos 30/40/50 porém guerreira etc. Esse é todo o material que os artistas de esquerda podem fazer agora. São mais censurados por eles mesmos do que jamais foram por qualquer DIP ou SNI, porque antes conseguiam burlar DIPs e SNIs, mas a si mesmos não conseguem e nem querem burlar.

Então não é preciso fazer arte de direita, só é preciso fazer a arte que a esquerda não consegue mais fazer: arte, enfim, qualquer arte. O fato é que ao fazer qualquer arte, de qualquer lado, você já está contrariando a esquerda: eles só podem agora produzir e consumir panfletos, e vão cada vez mais lutar para impedir a existência de qualquer coisa que não seja um panfleto, mesmo dentro das suas próprias mentes.

Um artista de direita que fosse esperto (e suficientemente artista) poderia fazer arte de esquerda agora, arte de esquerda como se fazia nos anos 60, adulta, complexa, essa papagaiada toda: um general que tem um lado bom, um terrorista que você até entende o lado dele, mas é evidentemente meio canalha com a mulher ou com os filhos ou com os colegas, um filme em que a vítima de racismo é um pouquinho desagradável e difícil de lidar – o que se costumava chamar de um retrato adulto, complexo, multifacetado –, e com isso esse artista hipotético de direita chocaria tanto a esquerda atual que seria cancelado a ponto do seu nome ser apagado da sua certidão de nascimento.

Por falar em panfleto, por falar em simplificações, por falar em infantilidades, por falar em estereótipos, por falar em manipulação, por falar em clichês, por falar em doutrinação inartística, acabei de ver o filme Marighella, de Wagner Moura. Alguns pontos sobre o filme:

  • As vozes ao mesmo tempo sussurradas e empostadas do cinema brasileiro. O ator brasileiro domina a arte do sussurro canastrão, um som que nenhuma garganta humana é capaz de reproduzir no seu habitat natural, a vida.
  • Diálogos que têm toda a naturalidade de um livro didático de O.S.P.B. dos anos oitenta.
  • Na tentativa de racializar tudo, os policiais sempre têm olhos azuis e gritam “Corre, negro!”, antes de atirar pelas costas em inocentes pobres. Todo mundo que tem olhos claros é mau, inclusive um adolescente. Todo mundo que é bom, ou é negro ou tem olhos escuros. Todo mundo que é um pouco gordo é mau. Todo mundo que é careca é mau. Os terroristas são uniformemente bondosos e só se distinguem uns dos outros por graus variados de bravura indômita e ternura.
  • Tem um americano malvado que fala “motherfuckers” e que discursa (acanalhadamente e segurando um copo de whisky) para generais, com evidente physique bolsonariste (homens de meia-idade, corpulentos, meio carecas e emanando boçalidade pelos poros sujos dos narizes de batata). Os generais são filmados grotescamente de perto nas suas caras gordurosas, enquanto riem de piadas sobre tortura.
  • Caso alguém ache o filme sutil demais, a câmera foca em uma placa dizendo BRASIL – VERDADE E JUSTIÇA por trás do policial torturador aloirado de olhos claros fumando cinicamente.
  •  Tem uma cena de explosão em que o terrorista continua andando sem virar pra trás, por ser cool demais, como num filme do The Rock.
  • Termina com os atores cantando o Hino Nacional, enquanto choram e são intensos.
    Por falta de opção, o destino de todo conservador é ter que encontrar algo para apreciar esteticamente nos panfletos políticos das correntes opostas. Aceito isso. Mas não consigo dizer nada bom sobre Marighella. Apesar de infantil, não é divertido. São 2 horas e 37 minutos que custam mais a passar do que quando operei a fimose sem anestesia suficiente.

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