Ricardo StuckertPetistas em Cuba em 2016: na companhia de Daniel Ortega, Díaz-Canel, Maduro e Raúl

O PT de caso com ditadores

Ao saudar o resultado das eleições fraudulentas na Nicarágua, onde Daniel Ortega mandou prender seus adversários, o PT escancara sua adulação a aliados que afrontam a democracia e expõe a fragilidade de seu discurso
12.11.21

A página do PT na internet publica com frequência textos em defesa de ditaduras de esquerda da América Latina. Aos olhos de integrantes do partido, todos os defeitos dos países comandados por essas figuras têm uma única causa: os Estados Unidos. Em dezembro último, após o chavismo vencer as eleições legislativas da Venezuela sem participação da oposição, a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, e o secretário de relações internacionais, Romênio Pereira, afirmaram que as eleições foram “a resposta democrática a esta política de bloqueio (americano), que visa a atingir o governo constitucional do país”. No início de novembro, um texto dizia que os protestos dos cubanos contra o comunismo, realizados no dia 11 de julho, não passavam de uma provocação do governo de Joe Biden.

Dirigidos à militância, os textos petistas sempre foram muito parecidos entre si e receberam pouca ou nenhuma atenção. Mas uma nota publicada na noite da última segunda-feira, 8, destacou-se do marasmo e teve de ser apagada. Sob o título “Saudação às eleições nicaraguenses”, e também assinada por Romênio Pereira, um quadro antigo do partido, a nota afirmava que a eleição, realizada após a detenção de sete pré-candidatos de oposição e a fuga de dois para o exílio, foi “uma manifestação popular e democrática deste país irmão”. Para o PT, a reeleição de Daniel Ortega e de sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo, “confirmam o apoio da população a um projeto político que tem como principal objetivo a construção de um país mais justo e igualitário”.

A retirada do texto do ar, dois dias depois, não se deu depois de uma admissão de que as informações nela contidas eram equivocadas por enaltecer um ditador sanguinário que matou centenas de cidadãos e mantém mais de 170 presos políticos. Gleisi Hoffmann apenas justificou a supressão da peça panfletária e antidemocrática dizendo que ela não foi submetida à direção partidária. Em uma mensagem nas redes, Gleisi recorreu a generalidades para tentar se explicar. Disse que o PT sempre defende a autodeterminação dos povos, é contra interferência estrangeira e respeita a democracia. No final, pediu que mudassem de assunto: “Nossa prioridade é debater o Brasil com o povo brasileiro”.

Em momento algum o PT fez qualquer reparo ao conteúdo da nota. Integrantes da sigla não se colocaram publicamente contra as afirmações ali contidas. Se existe alguém que não gostou do que leu, essa turma não se manifestou. Lula permaneceu mudo. A decisão de retirar o texto do site não significou, portanto, o reconhecimento de que a ideia estava errada. Foi, isso sim, resultado de um cálculo eleitoral.

Jorge Mejía Peralta/FlickrJorge Mejía Peralta/FlickrProtestos na Nicarágua em 2018: mais de 170 presos políticos
Posicionado para as eleições presidenciais do ano que vem, Lula já havia sentido um baque em sua popularidade digital em julho, após apoiar a repressão da ditadura cubana contra manifestantes. No Índice de Popularidade Digital da consultoria Quaest, que vai de zero a 100, sua pontuação caiu de 43 para 27. O indicador considera comentários positivos e negativos, além de compartilhamentos, número de seguidores e buscas no Google.

Embora temas internacionais não costumem figurar entre os que mais preocupam a população, a identificação do PT com ditaduras de esquerda pode ter alguma consequência nas urnas. Críticas a Cuba foram importantes na eleição de 2018, em que o candidato do PT, Fernando Haddad, foi derrotado. Naquela época, Jair Bolsonaro atacava o governo da ilha comunista por desviar a maior parte dos salários dos profissionais do programa Mais Médicos. Em 2022, Bolsonaro quer usar a mesma carta. Em campanha antecipada, ele visitou um abrigo de imigrantes em Roraima no final de outubro. Ao falar aos venezuelanos, mandou mensagens indiretas ao ditador Nicolás Maduro. “O que a gente mais gostaria que acontecesse é que a Venezuela voltasse à normalidade e que vocês tivessem a vida que tinham no passado antes da chegada da ditadura”, disse.

O irônico é que o PT acusa Bolsonaro de autoritarismo e de crimes contra a humanidade e, ao mesmo tempo, bajula ditaduras da América Latina também acusadas de autoritarismo e de crimes contra a humanidade. Após manifestações contra uma reforma no sistema de aposentadorias da Nicarágua, em 2018, soldados, policiais e paramilitares a mando de Daniel Ortega mataram 535 pessoas. O morticínio se deu ao longo de sete meses. No final de 2018, um grupo de peritos da Organização de Estados Americanos, a OEA, disse que deveriam ser investigados crimes contra a humanidade como assassinatos, privação arbitrária de liberdade e perseguição cometidos a mando do governo de Ortega. Quase três anos depois do massacre, em entrevista a um canal mexicano, Lula disse que ainda não considerava a Nicarágua uma ditadura.

O petista, que recentemente voltou a defender a “regulação da mídia” no Brasil, também não mudou de posição em relação à Venezuela. No dia 3 de novembro, o procurador do Tribunal Penal Internacional de Haia, Karim Khan, anunciou investigações sobre crimes contra a humanidade no país vizinho. Foi a primeira vez que algo assim aconteceu na América Latina. Relatórios preliminares, o primeiro deles divulgado em setembro de 2020, apontaram o uso sistemático de execuções extrajudiciais e de torturas com o objetivo de reprimir a oposição política e aterrorizar a população. Só no início de 2020, mais de 2 mil pessoas foram mortas, principalmente jovens moradores de favelas.

Ricardo StuckertRicardo StuckertDilma e Gleisi na reunião do Foro de São Paulo em Havana, em 2018
Nada disso comoveu Lula – que, em abril de 2021, em entrevista à televisão portuguesa RTP, afirmou: “Se o Maduro está errado é um problema do povo da Venezuela mudar isso”. E ainda: “Você não pode dizer que não tem democracia na Venezuela. Eles podem ter os vícios que eles podem ter, os erros que eles podem ter, mas eles têm que resolver isso internamente. A democracia de cada país não é definida pelo parâmetro americano”.

Nos crimes contra a humanidade, Cuba não fica para trás. A ditadura hoje controlada por Miguel Díaz-Canel já foi acusada nas Nações Unidas por escravidão de médicos, prisões arbitrárias, desaparições forçadas, torturas, deportações e perseguição por motivos religiosos. Lula se fez de desentendido. No início do ano, ele esteve na ilha para participar de um documentário sobre a América Latina.

Nicarágua, Cuba e Venezuela têm ainda outra característica em comum. Em nenhuma dessas três nações há Justiça independente, que possa julgar crimes cometidos por seus governantes. Essa falta é condição fundamental para que os casos sejam analisados pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia. “É evidente que, nos casos de Venezuela, Cuba e Nicarágua, não há uma Justiça que funcione de maneira independente. Nem sequer os padrões internacionais de devido processo legal são respeitados. Todos esses países poderiam ser investigados pelo Tribunal Penal Internacional, não apenas a Venezuela”, diz o sociólogo venezuelano Rafael Uzcátegui, da ONG Programa Venezuelano de Educação e Ação em Direitos Humanos, sediada em Caracas.

O Foro de São Paulo, criado por Lula e pelo ditador cubano Fidel Castro em 1990, para dar sobrevida à esquerda regional após a queda do Muro de Berlim, inclui Maduro, Díaz-Canel e Ortega. Por meio da agremiação, os partidos de todos eles trocam experiências e tomam decisões conjuntas. A adulação histórica do PT a ditadores não será apagada com o simples ato de tirar uma nota do ar. A mensagem, eloquente, precisa ser lembrada. A defesa da democracia não pode se limitar à conveniência das urnas.

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