O trem da alegria de Gilmar
Nos próximos dias, hotéis, restaurantes e auditórios de Lisboa vão respirar a essência de Brasília. Figurões brasileiros desembarcam em Portugal para participar de um “fórum jurídico” no qual os encontros privados costumam ser muito mais atraentes do que os debates em público. Será o retorno, em grande estilo, dos eventos organizados pelo IDP, a faculdade do ministro Gilmar Mendes. Depois do longo período de restrição imposto pela pandemia, a instituição e seus parceiros convidaram juízes de cortes superiores, autoridades do governo, políticos e advogados para discutir, do outro lado do Oceano Atlântico, o tema “sistemas políticos e gestão de crises”. A lista para o check-in dos convidados é bem extensa, abarca até lideranças do Centrão, e a programação reúne em “mesas redondas” julgadores e réus em processos de corrupção. O fórum vai durar três dias, mas não são poucos os que aproveitarão a oportunidade para esticar a estadia na Europa sem pôr a mão no bolso.
A primeira a embarcar foi a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, do PL, o partido de Valdemar Costa Neto, que foi escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para abrigá-lo nas eleições do ano que vem. Flávia partiu para Lisboa na noite da última terça-feira, 8, para ficar dez dias em Portugal, com as despesas pagas pelo governo. Antes de palestrar em um painel sobre “políticas públicas de educação e saúde” no fórum do IDP, no dia 17, a ministra do Centrão irá participar de dois seminários organizados pelas comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado: um da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e outro sobre o “Agronegócio Sustentável no Brasil”. Entre o evento que busca vender o país como potência agroambiental aos europeus, que ocorre nesta sexta-feira, 12, em um hotel cinco estrelas de Lisboa, e o fórum promovido por Gilmar, há um fim de semana livre para passeio pelos pontos turísticos da capital portuguesa. Como sempre, os eventos são organizados cuidadosamente de modo a combinarem com o feriado prolongado brasileiro, e isso não é apenas uma coincidência.
Os seminários organizados pelo deputado Aécio Neves e pela senadora Kátia Abreu, bancados pelo Congresso, serviram de escala para que autoridades convidadas pelo IDP pudessem prestigiar o evento do atual decano do STF na esteira da “missão oficial”. O Poder Legislativo não informou os gastos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que fará o discurso inaugural do fórum de Gilmar, no dia 15, tem previsão de chegada a Lisboa nesta sexta, direto da Escócia, onde participou da COP26. Já o presidente da Câmara, Arthur Lira, aterrissou na capital portuguesa na quinta-feira, para se hospedar no luxuoso Hotel Epic Sana. Ele terá participação de menor destaque no evento do IDP, mas fez questão de atender ao convite de Gilmar, um dos dois únicos ministros que votaram contra a suspensão do orçamento paralelo usado pelo governo Bolsonaro – e controlado pelo próprio Lira, para garantir apoio no Congresso.
Entre os representantes do Judiciário que estarão no fórum do IDP, estão três ministros do STF – além de Gilmar, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli constam da programação –, cinco do Superior Tribunal de Justiça, o desembargador federal Ney Bello, do TRF-1, e o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, que recentemente investiu contra ex-procuradores da Lava Jato, acusando-os de ter usado indevidamente dinheiro público para trabalhar. Um dos painéis contará com a participação do vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, responsável por investigar denúncias que chegam ao Tribunal Superior Eleitoral, área de grande interesse da classe política, que estará representada por dez políticos. Há ainda um grupo de advogados renomados, alguns deles defensores dos políticos convidados pelo IDP em ações nas próprias cortes superiores, e outras autoridades de peso do governo, como o presidente do Banco Central, Roberto Campos. O “quase-ministro” do STF André Mendonça também está entre os convidados.
Flávia Arruda não foi a única a chegar mais cedo. Dias Toffoli e os ministros do STJ também viajaram antes. Nesse caso, para participar de outro evento em Madri, na Espanha, promovido pela revista Justiça & Cidadania. A publicação tem como presidente do conselho editorial o ministro Luis Felipe Salomão, que também estará presente em Lisboa, e como parceiras as empresas JBS e Qualicorp, cujos controladores e ex-dirigentes já confessaram ter corrompido políticos em acordos de delação premiada homologados pelo Supremo.
No caso dos representantes do Poder Executivo, a viagem foi classificada como “missão oficial”, com as despesas pagas com recursos públicos. E muitos dos prazos de afastamento do país autorizados para o evento extrapolam o período de duração do fórum. É o caso do chefe da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS, Paulo Rebello, que chegou a prestar depoimento à CPI da Covid no Senado por supostas falhas na fiscalização das operadoras de saúde durante a pandemia. No evento de Gilmar, ele falará em um painel sobre “desafios regulatórios” no dia 16, mas pegou licença entre os dias 13 e 19 e ficará a semana toda na Europa. Outros servidores da ANS, da Agência Nacional de Energia Elétrica, da Aneel, da Agência Nacional de Águas, a ANA, e da Caixa Econômica Federal também obtiveram autorização para acompanhar o fórum.
Antes de a Lava Jato atingir em cheio alguns dos parceiros privados do IDP, os eventos promovidos pelo instituto de Gilmar no Brasil e no exterior recebiam altas cifras de patrocínios de grandes empresas e entidades, como a JBS e a Fecomércio do Rio de Janeiro. Em 2018, Crusoé revelou uma lista com 23 patrocinadores do IDP que repassaram cerca de 7 milhões de reais, em cinco anos, para financiar congressos e seminários jurídicos como o de Lisboa. A lista incluía gigantes do setor privado, como Souza Cruz, Bradesco e Google, e estatais como Itaipu e Eletrobras. Chamava a atenção que parte das companhias, a despeito de terem dado dinheiro ao instituto, não quiseram ter seus nomes vinculados aos eventos. Era um método de patrocínio oculto para o instituto do ministro. No caso da JBS, o IDP acabou devolvendo 650 mil reais dos mais de dois milhões repassados, depois que os irmãos Joesley e Wesley Batista foram presos e fecharam um acordo de delação premiada.
Na edição deste ano, não há patrocinador privado vinculado ao evento. No material de divulgação, aparecem apenas os nomes das outras instituições acadêmicas que organizam o encontro na Universidade de Lisboa, como a Fundação Getúlio Vargas, além do recém-criado Fórum de Integração Brasil-Europa, financiado pelas duas entidades.
A despeito de reunir grandes nomes do mundo jurídico e político brasileiro e internacional – o primeiro-ministro de Portugal, Antônio Costa, também é aguardado para a cerimônia de abertura –, com o objetivo de trocar conhecimento e experiência em assuntos que de fato são relevantes para o país, como a crise sanitária e a recuperação econômica, eventos como esse que Gilmar promove agora em Lisboa viram uma oportunidade para que autoridades e seus respectivos cônjuges façam turismo no exterior, economizando com passagens aéreas e estadias em hotéis.
Os diálogos revelam visitas a praias de regiões paradisíacas como o Algarve, passeios turísticos de trem, rodadas de chopp, charutos à beira da piscina do hotel e compras realizadas pelos magistrados e seus familiares durante a viagem institucional. O evento ocorreu entre os dias 5 e 6 de julho de 2016, mas ao menos três ministros chegaram antes, no dia 3, e só deixaram a Europa no dia 13. Em uma das conversas travadas no grupo “Portugal Privado”, criado e administrado pelo ministro João Otávio de Noronha no WhatsApp, o ministro do STJ Sebastião Reis compartilha fotos de lugares paradisíacos. Em seguida, a mulher de Noronha, Denimar, escreve: “Olha onde fomos”. Em algumas das imagens, o grupo aparece posando para fotos. Filha de Noronha e namorada de Marconny à época, a advogada Ana Carolina Noronha, conhecida como Nina Noronha, responde: “Uma goto (foto) mais linda que a outra. Nunca imaginei que o Algarve fosse lindo assim!”.
Outro diálogo, do dia 11 de julho, ilustra bem como os ministros usam seminários no exterior para aproveitar “miniférias” após os eventos institucionais. O ministro do STJ Sebastião Reis escreveu o seguinte, sobre um passeio que fazia de trem: “O trem empacou aqui literalmente”. Pouco depois, no mesmo dia, Benedito Gonçalves envia a mensagem: “Noronha estou no bar da piscina te aguardando”. O então presidente do STJ responde: “Estou esperando. DENIMAR. Já já voltaremos pode esperar aí mesmo”. Benedito, então, finaliza: “Estou aqui com charuto e chopp”. Nina, a filha de Noronha, aproveitou a viagem para uma esticadinha pela Europa. De Portugal, seguiu para um tour pela Itália. Na ocasião, ela e Marconny passaram seis dias em Milão e Roma. Depois regressaram a Lisboa para, juntamente com o restante da turma, finalmente retornar ao Brasil. No universo paralelo de Brasília, a mistura de interesses e o gosto pela dolce vita são só mais um sintoma da desconexão da realidade.
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