Adriano Machado/Crusoé

O fantástico mundo do rei Arthur

Arthur Lira já tornou Bolsonaro refém de sua caneta e de seu exército de aliados. Agora, ao defender a adoção do semipresidencialismo, ele opera para formalizar o domínio do Congresso sobre o Planalto
19.11.21

Na segunda-feira, 15, durante a abertura do já notório fórum jurídico promovido em Lisboa pela faculdade do ministro Gilmar Mendes, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, voltou a defender a adoção do semipresidencialismo no Brasil. Trata-se de um sistema de governo em que o poder é dividido entre o presidente da República e o primeiro-ministro, escolhido pelo Parlamento. O condestável do Centrão advoga em causa própria. Na prática, é como se Lira quisesse oficializar, num futuro não muito distante, a condição da qual desfruta hoje – superpoderoso junto ao governo de Jair Bolsonaro, ele negocia a partilha de verbas do Poder Executivo, comanda as tratativas para aprovação de medidas de interesse do Planalto e tem o presidente na mão.

Nos próximos dias, Lira se dedicará à manutenção do poder atual de sua caneta. Em meio aos convescotes além-mar, o presidente da Câmara, um dos chefes máximos do Progressistas, antigo PP, deixou claro que tão logo desembarcasse no Brasil iria começar a trabalhar para, digamos assim, contornar a decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender a execução do chamado orçamento secreto. Sua disposição de confrontar parte da mais alta corte do país pode ser ilustrada por um diálogo mantido antes da viagem com um aliado de primeira hora, o deputado Hugo Motta, do Republicanos. “Pensam que eu vou perder, mas eu não vou perder essa. Querem deixar (o Orçamento) nas mãos do Executivo? Aí é que vão ver o que vai acontecer”, afirmou, durante uma conversa na residência oficial da Presidência da Câmara, na presença de outros líderes de partidos.

O escandaloso mecanismo de distribuição desenfreada e sem qualquer transparência de verbas públicas ampliou sobremaneira o poder de Arthur Lira, tornando o governo ainda mais dependente dele — e o Congresso quase inteiro devedor de seus favores. Se conseguir manter as emendas de relator, Lira continuará a controlar a distribuição de 11 bilhões de reais em emendas parlamentares, mais do que o orçamento de sete ministérios, como o de Ciência e Tecnologia e Minas e Energia, e quatro vezes o orçamento do Meio Ambiente. Nem mesmo o governo consegue saber com precisão como essa dinheirama é liberada. Não é pública a informação sobre quem está mandando o dinheiro, nem quais são os critérios que determinam o quanto e onde os recursos serão gastos. O que se sabe é que, para conseguir ser agraciado com os recursos, é preciso, segundo definição corrente na Câmara, ser amigo do “rei” Arthur Lira.

ReproduçãoReproduçãoCom Bolsonaro: “heteramente um casal”, nas palavras do presidente
Quem o ajuda a controlar o pagamento desses recursos é um time de assessores, muitos dos quais oriundos do gabinete do ex-senador e “líder de todos os governos” Romero Jucá, experts em orçamento e profundos conhecedores dos meandros do Congresso. A engrenagem para a liberação da bolada é azeitada pelo relator do Orçamento, o senador Márcio Bittar, a quem cabe concentrar os pedidos numa planilha só acessada por um grupo restritíssimo de parlamentares. Bittar e Lira tocam de ouvido. O parlamentar do MDB acriano só não bate ponto no gabinete do presidente da Câmara quando não está em Brasília. “Sem dúvida o Arthur Lira acaba exercendo um papel muito maior que o do presidente da República, hoje fragilizado”, atesta o deputado do PSB do Rio Marcelo Freixo, líder da minoria.

A exemplo do ex-presidente Eduardo Cunha, Lira cultiva uma tropa de choque – uma espécie de bancada informal que chama de sua. Além de Hugo Motta, são expoentes dessa turma Fernando Monteiro, do Progressistas de Pernambuco, e Hildo Rocha, do MDB maranhense. Há também operadores sem mandato. É o caso dos ex-deputados Márcio Junqueira, ex-Progressistas e hoje no PROS, e de João Pizzolatti, investigado por participação no petrolão. Do mesmo partido de Lira, Pizzolatti ficou conhecido por ser um dos mais fiéis aliados de José Janene, um dos baluartes do mensalão petista morto em 2010. Na Câmara, o que se diz é que ambos estão para Lira como o ex-deputado do MDB Rodrigo Rocha Loures estava para o ex-presidente Michel Temer. Afastado do cargo em 2017, pelo STF, no rastro do caso Joesley Batista, Loures foi filmado saindo de uma pizzaria em São Paulo, com uma mala com 500 mil reais em dinheiro.

Durante a votação da PEC dos Precatórios na Câmara, o modus operandi de Lira ficou evidente. Para aprovar a proposta que permite ao governo furar o teto de gastos e dar um calote nos portadores de precatórios, a fim de permitir o pagamento do Auxílio Brasil, o Bolsa Família turbinado que Bolsonaro pretende usar como bandeira de sua campanha à reeleição, Lira prometeu cortar o ponto de parlamentares faltosos e ameaçou não pagar as emendas já negociadas em votações anteriores, além de condicionar a liberação de novos recursos ao apoio à PEC.

Roque de Sá/Agência SenadoRoque de Sá/Agência SenadoGestão compartilhada: a partir da Casa Civil, o correligionário Ciro Nogueira faz dobradinha com Arthur Lira
Na Câmara, o jogo é bruto para quem não reza pela cartilha de Lira. Logo que ascendeu ao posto, o político alagoano puniu os deputados que votaram em seus adversários, mudando as regras a fim de impedir que eles chegassem a postos de comando da casa. “Lira representa o que há de pior na condução da Câmara”, afirma o deputado Kim Kataguiri, do DEM. Os que se recusam a integrar o entourage dizem que Lira escala aliados para queimá-los junto a Bolsonaro. Já aqueles que são considerados leais ganham privilégios, como a ajuda do próprio Lira para marcar audiências no gabinete presidencial.

Há outras vantagens. Poucas horas após a aprovação da PEC dos Precatórios, a deputada Daniela do Waguinho foi recebida por Lira em seu gabinete para tratar da destinação de recursos ao município de Belford Roxo, sua base eleitoral. Daniela, do MDB fluminense, cravou o “sim” no painel eletrônico da Câmara, contrariando uma orientação do próprio partido. Após participar da conversa com o presidente da Câmara, o marido da parlamentar e prefeito da cidade fez uma inconfidência nas redes sociais. “Estou em Brasília, no gabinete da minha querida e amada esposa, Daniela do Waguinho. Vim despachar as emendas para a nossa querida Belford Roxo. Estivemos com o deputado Arthur Lira, que garantiu mais recursos para a cidade, a pedido da deputada”, contou Waguinho, em um vídeo.

“Mais do que primeiro-ministro, Lira funciona como articulador do governo junto à oposição. Ele conversa com partidos como PT, PDT e PSB, para conseguir acordos em votações sensíveis ao governo, como a própria PEC dos Precatórios”, afirma o deputado Júlio Delgado, do PSB de Minas Gerais. “Todas as vitórias do governo na Câmara, hoje, na verdade, são vitórias do Arthur”, faz coro o deputado Luiz Teixeira Jr., do Progressistas do Rio.

Marcelo Camargo/Agência BrasilMarcelo Camargo/Agência BrasilEduardo Cunha: o método de Lira é semelhante aos adotados pelo ex-todo-poderoso da Câmara
Jair Bolsonaro ficou penhoradamente agradecido com a aprovação da PEC. Como espera que o Auxílio Brasil faça toda a diferença nas eleições de 2022, o presidente festejou a votação da proposta, em sua live semanal, enaltecendo o papel de Lira. “Agradeço aos parlamentares que votaram favorável, em especial ao presidente da Casa, Arthur Lira, que trabalhou nesse sentido, entendendo o alcance social disso”, disse.

Em geral, presidentes da Câmara se caracterizam por dois tipos de comportamento na relação com o Palácio do Planalto. Há os que celebram uma aliança com o presidente de turno, como ocorreu entre Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso, durante o governo do tucano, e Rodrigo Maia e o próprio Temer, na gestão do emedebista pós-impeachment de Dilma Rousseff. Outros, preferem trilhar um caminho próprio. Alimentam um projeto de poder, como Eduardo Cunha. Lira joga nas duas. Sua relação com Bolsonaro é de ajuda mútua, baseada no mais puro pragmatismo político. Em outras palavras, é baseada no toma lá dá cá.

A aliados, em conversa recente, o presidente disse que ambos formam “heteramente um casal”“Eu costumo sempre dizer: não são Três Poderes, Arthur, são dois. O Judiciário e nós para o lado de cá”, disse Bolsonaro, fazendo referência aos poderes Executivo e Legislativo. O presidente da Câmara, no entanto, não perde de vista seus interesses absolutamente pessoais quando quer acumular mais poder. Durante as tentativas de Bolsonaro de buscar um partido para se filiar, Lira não moveu uma palha para que o presidente ingressasse no Progressistas. Para ele, é mais vantajoso que a legenda fique livre nos estados, para firmar as alianças mais convenientes e, assim, conseguir eleger o maior número de parlamentares no próximo ano.

DIVULGAÇÃO/ TV CÂMARADIVULGAÇÃO/ TV CÂMARALira discursa em Portugal: defesa do semipresidencialismo
O projeto pessoal de Arthur Lira é ser reeleito presidente da Câmara em 2023, o que faria com que ele se mantivesse no comando da casa até o início de 2025 – daí a ideia defendida em Lisboa de emplacar o semipresidencialismo. Seria, obviamente, uma maneira de oficializar o domínio que o Congresso, hoje, já exerce sobre o Poder Executivo. Em seu projeto para brilhar mais intensamente no céu de Brasília, Lira tem buscado a ajuda de especialistas para tentar lustrar a imagem de deputado oriundo do baixo clero metido em escândalos. Hoje, ele conta com os préstimos, por exemplo, do consultor Mario Rosa, que em passado nem tão distante trabalhou para o enrolado ex-governador de Minas Gerais Fernando Pimentel, do PT. Rosa, que presta serviço similar a Ciro Nogueira, sócio de Lira no comando do Progressistas e da generosa parcela do governo destinada ao Centrão, é hoje o responsável por escrever os discursos do presidente da Câmara. Coube a ele emprestar a Lira um aspecto, digamos, mais arrumadinho: se antes parecia não se importar muito com a aparência, hoje o todo-poderoso da Câmara não aparece em público sem barba e cabelo bem aparados e envergando ternos bem cortados. Vem daí também o esforço de Lira para se vender como um político “workaholic”, “cumpridor de acordos” e que “respeita as regras do jogo”. Em recente conversa, Ciro disse que Lira “é adepto da máxima ‘trabalhe, enquanto eles dormem’”.

Quem conhece bem a trajetória de Lira sabe que não foi por ser um trabalhador infatigável que ele ascendeu. Na política, o deputado herdou o espólio do pai, o ex-senador Benedito Lira, dono de vários postos relevantes em estatais durante os governos do PT. Lira chegou a figurar como réu em duas ações no STF, uma sob acusação de ter recebido propina de um ex-dirigente da Companhia Brasileira de Trens, a CBTU, e outra no chamado “Quadrilhão do PP”, acusado de receber 2,6 milhões de reais em vantagens indevidas pagas por empreiteiras.  Numa decisão para lá de incomum, em março deste ano a Segunda Turma do STF rejeitou a denúncia que a própria corte havia aceitado em 2019 contra Lira e a cúpula do partido. No ano passado, o parlamentar também foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por suposto recebimento ilícito de 1,6 milhão de reais da construtora Queiroz Galvão. Em outubro, porém, em outro movimento nada usual, a PGR recuou e pediu a rejeição da denúncia que ela própria enviou ao Supremo.

Segundo o Ministério Público de Alagoas, Lira enriqueceu quando era deputado estadual, operando com outros parlamentares um esquema de “rachid” semelhante ao protagonizado por Flávio Bolsonaro e por seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Por essa razão, ele trava uma intensa disputa contra uma condenação por improbidade administrativa na esfera cível – nos últimos meses, aliás, ele liderou com mão de ferro o esforço da Câmara para aprovar mudanças na lei de improbidade que aliviam as sanções para políticos. Entre 2001 e 2007, de acordo com o MP, Lira registrou uma movimentação bancária de mais de 9,5 milhões de reais. A julgar pelas acusações, Lira seria a personificação do político médio brasileiro, aquele que se vale do cargo outorgado pela população para se dar bem na vida. Logo, seu vasto poder não é exatamente fruto de noites em claro. Quanto a essa irrefutável constatação, não há rebranding de imagem que dê jeito.

Colaborou Paulo Cappelli

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