AlexandreSoares Silva

Eu acuso os fãs de Harry Potter

26.11.21

Alguns anos atrás, quando eu tinha acabado de mudar para este prédio, uma vizinha de andar apertou a campainha segurando uma travessa de brownies de boas-vindas. Esse era um gesto que até aquele momento eu nunca tinha visto na vida real. Achava que só americanos, e ainda por cima americanos de filmes, eram sociáveis o suficiente para fazer algo do tipo.

Depois ela começou a trazer brownies a cada duas, três semanas. Dizia que gostava mais de fazer os brownies do que de comer, então eu e minha mulher estávamos até ajudando se comêssemos alguns. Eu sempre a convidava pra entrar, e conversávamos um pouco enquanto comíamos os brownies e bebíamos café. Ao ir embora ela deixava cinco ou seis brownies, embora eu insistisse que não precisava. Eram muito bons. Não duravam um dia em casa.

Um dia eu a ouvi no elevador fazendo um comentário sobre política com uma amiga. Não vou repetir aqui o que ela disse, porque pra falar a verdade eu nem lembro direito. Mas foi algo que achei detestável. Saí do elevador de cara fechada, e esperei que ela viesse trazer a próxima travessa de brownies, o que aconteceu dois dias depois.

— Dessa vez fiz um pouco a mais… — ela começou a dizer, sorrindo. Mas encostei dois dedos no ombro dela e disse:
— Fique sabendo que eu ouvi o que você falou no elevador. Na minha casa é que você não entra! — e a empurrei com os dedos, fazendo com que ela recuasse dois passos, muito surpresa.

E a seguir fechei a porta na cara dela — mas não sem antes ter a precaução de estender o braço e puxar a bandeja de brownies pra mim.

Comi os brownies irritado. Que mulher péssima! Mas que brownies excelentes! Logo fui tomado por uma sensação de grande vitória moral.

Como eu previa, ela não voltou a tocar a minha campainha. E nos dias seguintes comecei a pensar em como fazer para continuar comendo aqueles brownies deliciosos. Podia, talvez, pedir alguns para outros vizinhos que estivessem recebendo os brownies dela? Mas o problema é que eu tinha falado tão mal da vizinha no prédio que ninguém mais falava com ela.

Depois de algum tempo de abstinência, consegui arranjar um acordo com um sujeito que tinha acabado de mudar para o prédio e não se incomodava com o que a vizinha tinha dito. Ele aceitou me repassar os brownies, porque não gostava de nada doce. Agora recebo dele cinco ou seis brownies por mês, que como com delícia e ódio político.

O que vocês diriam de alguém capaz de fazer uma coisa dessas? É claro que nunca fiz nada disso. Essa história nunca aconteceu. Mas isso é exatamente o que os fãs de Harry Potter fizeram com a autora da série, J.K. Rowling.

A HBO vai estrear em primeiro de janeiro de 2022 um especial de Harry Potter com todos os atores principais e muitos dos secundários. Mas J.K. Rowling, a criadora de todo esse mundo, não foi convidada. Ela vai aparecer brevemente em imagens antigas, de uma época em que ela ainda não havia caído em desgraça com os fãs por reclamar, no Twitter, de um artigo que dizia “pessoas que menstruam” no lugar de “mulheres”.

Por toda a parte os fãs de Harry Potter comemoraram que a criadora daquilo que eles amam não vai aparecer numa celebração daquilo que eles amam. “Nós vencemos, gente!!!”, berrou uma fã chamada Taquito Snowball no Twitter.
Segundo o NY Times, os fãs de Harry Potter estão em massa tentando se distanciar de J.K. Rowling enquanto ainda consomem os livros e os filmes. “Não quero dar para a J.K. Rowling a satisfação de tirar de mim algo que eu amava quando era criança”, disse um fã, segundo o jornal.

“Não preciso da J.K. Rowling para nada”, disse outra fã.

Alguém pode argumentar que, ao contrário do meu exemplo dos brownies, as pessoas pagaram pelos livros e filmes de Harry Potter, e portanto ficaram quites e ninguém deve nada a J.K. Rowling.

Mas com livros isso não funciona assim, funciona? Há uma desconexão óbvia entre o valor real de um livro e o seu preço, porque, se não houvesse, um livro de Platão teria que custar muitas vezes mais do que um de Leandro Karnal.

A verdade é que um livro que amamos excede em muito o valor que pagamos por ele. Eu, pelo menos, me sinto em dívida com todos os autores de livros que foram importantes para mim. Paguei um pouco mais de cinquenta reais pela minha cópia de A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, mas certamente ainda estou devendo muito para aquele barbudo imbecil e magnífico.

“Separar o autor da obra”, esse ato considerado nobre, é uma vileza: é cuspir na cozinheira e depois se deliciar com o prato. É tentar continuar amando um canto da alma de uma pessoa enquanto se odeia a pessoa como um todo. É condenar o autor ao Inferno, enquanto nos divertimos com a sua obra debaixo de um caramanchão no Paraíso. É uma desculpa para a ingratidão — e, no momento, não consigo pensar em nada mais baixo.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Beleza de texto, Alexandre! Guy de Maupassant, em “Bola de Sebo”(que inspirou Geni e o Zepelin, do Chico) ilustra também o menosprezo, a gratidão e a injustiça que as pessoas manifestam a quem tanto lhes fez bem.

    1. Ilustra ... o menosprezo, a falta de gratidão, a injustiça...

  2. Grande exemplo da "filhadaputice" que virou a espécie humana no seu afã (ops!) de ferrar toda a obra da criação (he! he! he!)...

  3. Primeiro levei um susto, acreditando que a história era verdadeira! Senti alívio! Quando terminei de ler o artigo (eu não entendo de Twitter ou de Harry Potter) fiquei triste, com pena da escritora e com raiva dos leitores! A história do brownie é verdadeira...

  4. Chamar mulheres de pessoas que menstruam é para ser inclusivo mas acaba sendo tão excludente quanto. Afinal, como ficam as Pré-adolescentes que ainda não menstruam, ou as velhas como eu, que não menstruam mais por já estarem na menopausa? Não somos mulheres?

    1. incrível como hoje em dia se tornou tão importante dizer o óbvio

    2. Renata, não entre na onda do politicamente correto. Isso é chato. Todo mundo sabe que pessoas que menstruam são mulheres, que as muito jovens não menstruam e que mulheres mãos velhas que entram na menopausa não menstruam. Não seja um ser humano chato, que se ofende com tudo.

    3. Renata, gente que se ofende com isso devia procurar um psicanalista. Você não sabe que é mulher? Que baita autoestima deixar se levar por declarações de um escritora...

  5. Dizer que "separar o autor da obra" é ingratidão e que não existe nada mais baixo do que isso é um comentário raso. Obras não se agradecem porque não são favores. Agradam ou não, apenas isso. Ao gostar de uma obra, isso não implica a obrigação de gostar das ideias políticas do autor. De novo, apenas isso. O que se discute no caso do cancelamento da autora de Harry Porter é a violência dessa atitude como forma de imposição de ideias. Ou seja, não se chegou aqui nem perto do que está em discussão.

  6. É interessante ver como muitos dos defensores da abolição de todos os preconceitos são preconceituosos contra aqueles que não pensam exatamente como eles.

  7. Minha bisa, que nasceu em 1889, sempre que o apresentador da TV falava boa noite, ela respondia. Como fazer alguém, de um tempo tão diferente, entender que aquele homem não estava na sala dela? Ela era culta, professora, só não conseguia interiorizar algo tão incompreensível dentro das experiências dela. O mesmo acontece comigo, onde existem gêneros como Maverick, que pra mim era um carro e hj é uma orientação não binária. Eu respeito, mas não compreendo, pra mim não faz sentido. Devo ser odiosa

    1. Orientação não binária!?! Essa é nova! Aprendi uma hoje. Obrigada.

    2. Continuando, Maverick, o ótimo filme com Mel Gibson e Jodie Foster.

    3. Tb devo ser tosca. Nem sabia que Maverick agora é orientação de gênero. Além do carro, que cheguei a conhecer, tem ainda o ótimo filme com

  8. Alexandre, depois de ler seu artigo, pensei: serei eu uma "fã de Harry Potter"? Tenho sentimentos ambíguos em relação a certos cantores e compositores da MPB com seu apoio à Cuba e ditaduras de esquerda, escritores que gosto, como por exemplo, Gabriel Garcia Marquez (recuso-me a chamá-lo de Gabo). Nunca os cancelei, mas canso de usar a expressão "separar o autor da obra". Confesso que senti o golpe. Obrigada pela reflexão.

    1. Ana e Renata, vocês têm razão. O que me pegou foi "separar o autor da obra". Eu separo, e realmente cancelamento nunca são feitos com pessoas de esquerda.

    2. Eu separo e vou continuar separando o autor da obra. Não estou nem concordando com as ideias, nem propondo o cancelamento deles. Falar m… ou tolice inócua tb é direito.

    3. Sentimentos ambíguos também tenho por Chico e Caetano, por exemplo, mas isso é diferente desse cancelamento que tem ocorrido com algumas personalidades, nenhuma da esquerda, por sinal.

  9. Muito bom seu artigo. Se quiser pensar em algo mais baixo é só imaginar que tem brasileiro que vai votar no Lulla( aquele corrupto que foi condenado e teve sua condenação anulada, não por ser inocente, isso não, as provas são contudentes, mas por ter sido julgado em Curitiba e não em São Paulo) e acreditam que no Brasil só pobres e negros são encarcerados, levantando bandeira e pedindo justiça para todos. Difícil!

    1. Muitos vão votar no execrável e ignorante ex-presidiário e outros votarão para reeleger um celerado igualmente ignorante.

    1. Eu ainda amo a obra de Chico Buarque, Caetano Veloso e outros, além do trabalho de Wagner Moura como ator, e estou defecando para o que eles pensam politicamente.

    2. Eu também. Já amei Chico Buarque e já o odiei. Hoje, tento ouvir sem me deixar contaminar, mas é difícil.

  10. Muito bom! Sorte minha que eu não ligo para MPB, assim não preciso ficar nessa ambiguidade. No máximo tolero, quando muito, algumas músicas, mas a canalhice de alguns autores e intérpretes em seus louvores a Cuba e adjacências totalitárias, essa é insuportável.

  11. Magnífica digressão! Em 1998 a Publifolha lançou uma coleção de clássicos, entre os quais A morte de Ivan Ilitch, imbatível, mas no mesmo livro tinha também o menos conhecido Senhores e servos, um pequeno tratado sobre a mesquinhez humana, ao qual faço referência em meu autobiográfico “O ciclo gestatório de um homem”, em e-book na Amazon e em papel no Clube de autores; vale a pena!

    1. Isso, Anna. Foi o que a Fiat e a Gerdau fizeram com o jogador de vôlei. Empresas, patrões, reitores e outros andam abrindo demais as pernas para essa militância.

    2. É fácil cancelar as pessoas no mundo virtual, pq algo bateu no fígado, como se não fosse uma pessoa real que estivéssemos execrando. A indústria virou Pôncio Pilatos, pq se ativistas gritam, a máquina se sente na obrigação de atender e lavar as mãos, sem ponderar a consequência pessoal do cancelado. Isso não é educar para mudar. Estão ignorando que algumas pessoas não têm alcance para entender que não é só mulher q menstrua e aí, vamos crucificar e pronto. Na marra não se muda nada, só gera ódio

  12. Enquanto, como ser humano que somos, não aprendermos a respeitar a opinião das pessoas, mesmo discordando completamente dela, continuaremos a manter muito próximo a nós, o animal do nosso passado!

  13. Se não separar o autor da obra, não sobra nada, porque todos têm defeitos e podem ter ideias abomináveis, é humano. Não se trata nem de execrar a pessoa na sua totalidade ou babar ovo para ela, mas aceitá-la como é e apesar do que é, com ou sem brownies. Monteiro Lobato era racista, Picasso era um canalha, Vinícius de Moraes um mulherengo, Tom Jobim um bêbado. Tá, e daí? Nem ligo pro Harry Potter, mas o linchamento público da autora parece uma fogueira da Inquisição.

    1. Exato, Antonio. Por isso não rejeito. Reconheço os “defeitos” dessas pessoas e eventualmente as critico, mas também tenho meus defeitos. Nem me passa pela cachola qq ideia de cancelar quem quer que seja.

    2. A obra depende da genialidade, das qualidades e dos defeitos. Rejeitar um autor ou artista de qualquer área e, ao mesmo tempo, apreciar sua obra é contraditório e vil.

  14. Muito bom. Um dos fundamentos da boa arte ou filosofia ou ciência é a gratidão. Em meio a tanta ignorância e mediocridade, como não sermos gratos aos que nos elevam ao Paraíso?

  15. Há alguns anos estava em uma cafeteira de uma pequena cidade de cidade de Minas, e fui sorteada com a presença de Milton Nascimento. Como poderia agradecê-lo pelos momentos de elevação que ao longo da minha vida ele havia me dado. Na minha mesa, olhando o discretamente, disse para mim mesma obrigada por tudo, "Amigo Querido"

Mais notícias
Assine agora
TOPO