Antônio Augusto/Câmara dos DeputadosO presidente da Câmara, Arthur Lira, e o presidente do STJ, Humberto Martins: os magistrados alagoanos investigados têm como padrinhos políticos os dois conterrâneos poderosos

No Judiciário profundo

Uma investigação sobre corrupção no TJ de Alagoas descobre até boleto em nome de desembargador quitado por empresários interessados em suas decisões. Alvo da apuração é ligado a Arthur Lira
26.11.21

Policiais federais chegaram à sede do Tribunal de Justiça de Alagoas nas primeiras horas do dia 4 de novembro, para cumprir mandados de busca com recomendações expressas de cautela. Entre os alvos da ação, estavam dois dos magistrados mais influentes do estado. Diante de fortes indícios de crimes, a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, autorizou a busca de provas, com a apreensão de documentos, celulares e computadores, mas recomendou aos agentes que agissem com “discrição e moderação” e evitassem “exposições desnecessárias e embaraços” aos investigados. O presidente da corte, Klever Loureiro, foi chamado para acompanhar o entra e sai dos policiais. A Operação Pecunia Non Olet mobilizou autoridades dos três poderes em Alagoas e em Brasília e se transformou em um exemplo emblemático da mistura de interesses nada republicanos entre políticos e magistrados.

No rol de padrinhos do juiz Ivan Vasconcelos Brito Júnior e do desembargador Celyrio Adamastor Tenório Accioly, os dois alvos principais da operação, estão ninguém menos que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, ambos alagoanos. A apuração da PF mira crimes como corrupção e advocacia administrativa. Como era de se esperar, máquinas poderosas se moveram para tentar frear a ofensiva policial. Na Assembleia Legislativa do estado, deputados aprovaram a toque de caixa um projeto que aumenta o número de desembargadores no TJ e um dos alvos da operação pode ser promovido em breve, o que deve lhe garantir um nível adicional de proteção.

Caio Loureiro/TJALCaio Loureiro/TJALO desembargador Celyrio Adamastor foi um dos alvos da operação da PF
A Pecunia Non Olet apura um esquema de pagamento de propina em troca de sentenças favoráveis a um grupo de empresários. A investigação tem provas inusitadas, como um boleto pessoal do desembargador Celyrio quitado pelos interessados em suas decisões. Como é comum no Brasil, o escândalo tem origem em outro, igualmente rumoroso no estado, detonado também por uma investigação federal, a Operação Arremate. Essa trama anterior envolvia indícios de lavagem de dinheiro na compra de imóveis em leilões públicos e teve como principal alvo o senador e ex-presidente da República Fernando Collor, do Pros. Durante a análise das quebras de sigilo, os investigadores encontraram as pistas que levariam às suspeitas envolvendo o Judiciário local, segundo um relatório de inteligência ao qual Crusoé teve acesso. No material havia sinais da ligação de magistrados com uma engrenagem pela qual corriam crimes como “agiotagem, tráfico de influência e corrupção”.

As conversas foram extraídas do telefone celular de um empresário de nome Thiago Sarmento, irmão de Tarso de Lima Sarmento, apontado pelo Ministério Público Federal como laranja de Fernando Collor no esquema dos leilões – o senador nega. Thiago é administrador de uma faculdade particular que havia sido alvo de um pedido de intervenção feito pelo MP de Alagoas. Ao analisar os dados das quebras de sigilo, os policiais encontraram uma conversa em que o empresário trata do pagamento de um boleto de 27 mil reais. No diálogo, com um familiar ligado à administração da faculdade, ele é informado da quitação do boleto, que seria de um “amigo”. A mensagem vem acompanhada de uma cópia do documento. Thiago se assusta: “Mas pagou um boleto no nome do juiz?”, questiona ele ao perceber que a cobrança estava em nome do desembargador Celyrio Adamastor. “Sim, muita doidice”, responde o interlocutor. Era um boleto de ITBI, imposto para a transmissão de imóveis.

Àquela altura, a intervenção na faculdade, determinada por um juiz de primeira instância, estava em julgamento no TJ. Com a apresentação de um agravo em segunda instância, os empresários conseguiram reverter a intervenção, graças ao efeito suspensivo conferido pelo magistrado. Analisando as mesmas quebras de sigilo, os policiais identificaram um interlocutor registrado nos telefones dos empresários como “Dr Ivan” e “Ivan Brito”. Trata-se, de acordo com a investigação, do juiz Ivan Vasconcelos Brito Júnior, que teria intermediado a relação entre o grupo e o desembargador Celyrio. Os policiais afirmam que os elementos coletados ao longo da apuração indicam uma “conjunção de esforços” para que o desembargador assinasse uma decisão favorável à faculdade. A decisão, dizem eles, teria sido obtida “mediante o pagamento do boleto de ITBI no valor de 27,2 mil reais”.

O empresário investigado se surpreendeu com o pedido inusitado
Os reflexos imediatos do caso em Brasília são de fácil compreensão. Neste ano, Ivan Brito absolveu Arthur Lira em um dos processos relacionados à Operação Taturana, em que o presidente da Câmara é acusado de participar de um esquema de rachid – similar àquele que pesa contra o senador Flávio Bolsonaro – nos tempos em que era deputado estadual em Alagoas. Desde então, Brito tornou-se forte candidato a uma das recém-abertas vagas de desembargador no Tribunal de Justiça de Alagoas. A promoção do magistrado só não poderá ser efetivada se ele tiver punições disciplinares em sua ficha funcional. Hoje, o juiz responde a um procedimento na Corregedoria do Poder Judiciário local em razão das suspeitas, mas ainda não há qualquer veredicto. Se a indicação avançar rapidamente, ele poderá ganhar o cargo na segunda instância antes que o processo avance. Mais recentemente, o mesmo juiz assinou outra decisão, digamos, simpática ao establishment político: ele condenou o ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol a pagar uma indenização de 40 mil reais ao senador alagoano Renan Calheiros por posts publicados nas redes sociais. Procurados por Crusoé, o desembargador Celyrio Adamastor e o juiz Ivan Brito não quiseram se manifestar.

Segundo a PF, o juiz Ivan Vasconcelos Brito teria intermediado a negociação
Coincidência ou não, o avanço das apurações gerou embaraços para os policiais encarregados do caso. O delegado federal Daniel Grangeiro, que investigou tanto Arthur Lira na Operação Taturana quanto o juiz e o desembargador na Operação Pecunia Non Olet, foi afastado do cargo. O afastamento ocorreu no mesmo período em que, em Brasília, a direção-geral da corporação passou às mãos de policiais tidos como obedientes ao presidente e a seus aliados. No Tribunal de Justiça, a juíza Renata Malafaia, que atua na corregedoria da corte, foi alvo de uma reclamação disciplinar apresentada por Ivan Brito – o juiz acusa a colega de investigá-lo indevidamente. Um procedimento a cargo da magistrada apura as ligações dele com um empresário beneficiado por uma decisão de sua lavra. Renata Malafaia não se dobrou à pressão, apesar das fartas evidências do poderio dos investigados. Ela tornou o processo público e se mostrou disposta e levar o caso às últimas consequências. “Se o preço a pagar por trabalhar por um Judiciário livre de qualquer corrupção em Alagoas, habitado por uma população tão carente de direitos básicos, for a perda do meu cargo de magistrada ou até mesmo a minha vida, com absoluta segurança posso afirmar que o preço será baixo. Eu pago”, escreveu ela no processo. As profundezas do Judiciário brasileiro repetem maus hábitos do topo do poder, em Brasília, só que de maneira mais escancarada. Com boleto, nome, sobrenome e perseguições à luz do dia.

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