MarioSabino

O amigo Jean

26.11.21

Há muitos anos, tenho um amigo. O amigo Jean, ou L’ami Jean, como gosto de dizer, numa brincadeira com o nome de um restaurante de Paris. Ele é escritor e publica seus livros pela editora Gallimard (o que é fonte de uma boa inveja da minha parte), sob o pseudônimo de Antoine Arsan. O seu último livro chama-se La Porte sans Entrée (A Porta sem Entrada), sobre o zen budismo. Os temas de Jean — ou de Antoine — não poderiam ser mais diferentes do que os meus: incluem também haicais e civilização japonesa. Jean já esteve próximo da política francesa, sempre do lado certo, mas tomou o caminho da contemplação intelectual. Ele não é monge, mas um observador tranquilo, instalado na sua própria torre de Montaigne.

Do alto da sua torre de Montaigne, ele de vez em quando olha pela janela com vista para o Brasil. O Brasil faz parte da vida de Jean porque ele é casado com uma brasileira, Betty Milan, igualmente minha amiga e que já foi tema de um artigo meu. Jean entende português o suficiente para espantar-se com o que ocorre por aqui. Mas, como bom intelectual francês, o espanto sempre cede lugar ao pensamento desapaixonado. De vez em quando, ele me manda um email com reflexões sobre o Brasil, num francês tão invejável quanto o fato de ele ser publicado pela Gallimard. Quisera eu ter a mesma elegância no meu idioma quanto a que Jean tem no dele. Nesta semana, ele me enviou uma mensagem sobre a entrevista que O Antagonista fez com Sergio Moro. Resolvi traduzi-la aqui, pedindo vênia ao Jean, porque a sua análise é tão precisa — e tão bem escrita, como requer a precisão — que ajuda a aclarar para mim mesmo o que penso e talvez o que você, leitor, pensa também. 

Eis o que disse o amigo Jean:

“Caro Mario, 

Assisti à última entrevista de O Antagonista com Sergio Moro. Moro é mais técnico do que um artista da palavra, mas ele pode animar-se com a experiência e eu o acho bastante claro na sua fala, especialmente porque ele não usa anotações. Além disso, é um animal de sangue frio — o que lhe era necessário para passar por que passou. Nesse país de exaltados, é uma qualidade importante.

Dito isso, há uma questão que me coloco já faz tempo, sem dúvida por causa das minhas experiências pessoais, a propósito da eficacidade governamental no Brasil. Numa regime presidencial imitado dos Estados Unidos, o presidente precisa do Congresso para colocar de pé o seu programa — vê-se bem isso no contexto atual entre Biden e o Congresso, a chantagem de Manchin etc. Mas, basicamente, só existem dois partidos. No Brasil, a situação é muito mais perniciosa, por causa do sistema eleitoral que pesa sobre toda a mecânica. Como sob a nossa Quarta República, os partidos políticos (creio que 35) são lobbies mais ou menos eficazes e não líderes de projetos, e o seu apoio vai para quem oferece mais, política e materialmente, sem coerência e sem vergonha. Não bastasse isso, o sistema eleitoral evita a responsabilidade direta dos eleitos perante os seus eleitores, com o partido como máscara — daí a famosa eleição de um palhaço em São Paulo e demais casos.

Em outras palavras, como se pode imaginar qualquer mudança na vida política brasileira — não falo do seu cotidiano, mas dos seus fundamentos —, sem que o sistema eleitoral, que remonta a um período ultrapassado, não seja posto abaixo? E como imaginar que o Congresso eleito sobre as bases atuais aceite sacrificar-se no altar da eficácia — e não falemos da moral…? Nesse sentido, como pedir a redução ou mesmo o abandono do foro privilegiado àqueles que precisamente tiram grande proveito disso? Para mim, é um verdadeiro beco sem saída.

É um assunto técnico e muito cansativo, mas creio que essencial. Sobre a reprovação feita a Moro de ter participado do governo Bolsonaro, eu a acho muito injusta. Pode-se lamentar que foi um erro político da parte dele — ele teria feito melhor, sem dúvida, se permanecesse juiz, e hoje talvez ocupasse uma cadeira no STF, no lugar da nulidade indicada por Bolsonaro — mas, ao menos, ele não mudou de linha, foi o presidente que mostrou o seu verdadeiro rosto. Moro permaneceu ele mesmo, e isso o engrandece mais do que o diminui. É um pouco fácil atirar no pianista depois que se regozijou de o ver tocar a sua peça.

Acrescento uma observação sobre o fato de Macron ter recebido Lula — recebimento com a guarda republicana, certo, mas entrevista privada, ou seja, sem consequências. Os dois maiores motivos, acho, são 1) a cortesia diplomática (Lula passou oito anos à frente do seu país, como presidente eleito) e 2) o contexto político francês (na perspectiva da eleição em março, não é nada mau saudar um líder da esquerda globalmente bem visto na França).

Não importa o que se possa pensar, as condenações de Lula foram anuladas pela justiça brasileira, e não são oponíveis no exterior.

Efeito de imagem, não muito mais do que isso — não de substância.

Alonguei-me, caro Mario.

Um abraço.

Jean”

Nada a acrescentar a essa reflexão, a não ser que, na minha visão de tupinambá, acho que Macron recebeu Lula por mais um motivo: provocar o desafeto Bolsonaro. Mas é uma visão de um tupinambá, repito.

O meu amigo Jean é um bom amigo do Brasil. Felizmente, para ele, existem outras janelas na sua torre de Montaigne, com vistas bem mais interessantes e harmoniosas. E a sua porta sem entrada é também a sua porta de saída.

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