Adriano Machado/ Crusoé"Toda modificação brusca de jurisprudência gera insegurança jurídica. Isso deixa os atores do sistema de Justiça atordoados"

‘Assim segue o ciclo das nulidades’

Ex-integrante da Lava Jato, o procurador Ronaldo Pinheiro de Queiroz explica o efeito deletério das guinadas de jurisprudência do STF sobre as ações anticorrupção
10.12.21

Ronaldo Pinheiro de Queiroz integrava o grupo de trabalho da Lava Jato montado na Procuradoria-Geral da República, para investigar políticos com foro privilegiado, quando a operação atingiu seu auge, em 2017, com a megadelação dos executivos da Odebrecht. Naquele período, o procurador viveu um momento raro no combate à corrupção. Parecia que o país havia encerrado, finalmente, o histórico ciclo de impunidade envolvendo crimes do colarinho branco. Era miragem. Hoje, quatro anos após deixar a equipe de investigadores da PGR, Queiroz se soma a uma legião de colegas do Ministério Público que, com certa dificuldade, tentam compreender a avalanche de decisões dos tribunais superiores anulando apurações importantes que, lá atrás, haviam sido chanceladas por essas mesmas cortes.

Trata-se de um desafio um tanto diabólico para quem trabalha nos órgãos de investigação e tem que seguir as regras estabelecidas pelas esferas mais altas do Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal. Dias atrás, o procurador escreveu em sua conta no Twitter: “PF e MPF atuam na investigação e processo penal seguindo a jurisprudência do STF. STF muda a sua jurisprudência e anula os processos que se basearam na sua jurisprudência antiga, então em vigor. E assim segue o ciclo das nulidades”. Nesta entrevista a Crusoé, ele prossegue no desabafo: “Toda modificação brusca de jurisprudência gera insegurança jurídica e isso deixa os atores do sistema de Justiça atordoados “.

Entre os exemplos dessas mudanças repentinas que têm beneficiado alvos notórios da Lava Jato, como o ex-presidente Lula, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral, estão a revisão da prisão após condenação em segunda instância e as mudanças de interpretação do STF sobre quais são os juízos competentes para julgar os processos. Para além das críticas às revisões de jurisprudência que vêm causando a anulação de processos, Ronaldo Queiroz, de 45 anos, também virou voz ativa contra outra mudança tramada em Brasília que vai beneficiar a classe política: a nova Lei de Improbidade Administrativa, aprovada em outubro pelo Congresso Nacional, que afrouxa as punições a autoridades que causam prejuízos aos cofres públicos. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O sr. tem chamado atenção para o ciclo de nulidades provocado por mudanças de jurisprudência no Supremo, destacando que a PF e o MPF atuam seguindo a jurisprudência em vigor e depois as ações são anuladas porque o STF decidiu alterá-la. Essas mudanças ocorrem para gerar nulidades?
Acredito que elas não sejam feitas de propósito para gerar nulidades, mas, às vezes, em um caso concreto, o Supremo acaba julgando diferente da jurisprudência e essa decisão vira precedente, que arrasta outros casos juntos se o Supremo não fizer uma distinção de que está julgando diferente porque o caso tem peculiaridades. Mas, quando não se faz essa distinção, há uma mudança na jurisprudência que, a depender do que foi modificado, tem o efeito de anular casos de processo penal, civil e de improbidade. Toda modificação brusca de jurisprudência gera insegurança jurídica. Isso deixa os atores do sistema de Justiça atordoados e pode acabar cavando nulidades.

Quem mais se beneficia com essas mudanças bruscas?
Sem dúvida, são os réus que estavam sendo processados com base em uma jurisprudência e, de repente, ela é modificada no meio do jogo. Isso traz um benefício muito grande para os réus, não porque a Polícia Federal ou o Ministério Público estavam atuando de maneira errada. E quem é mais prejudicado com isso é a sociedade, porque o bem jurídico deixa de ser protegido e a própria sociedade acaba deixando de acreditar nas instituições, seja o Ministério Público, a polícia ou o próprio Judiciário. Veja a questão da prisão após condenação em segunda instância. Primeiro, o Supremo disse que valia. Dois anos depois, mudou a jurisprudência e, depois, mudou novamente. O Supremo Tribunal Federal é uma corte de precedentes, que teria de durar por décadas, como ocorre na Suprema Corte americana. Quando há uma mudança importante na sociedade, na cultura, na economia ou no direito é que a Suprema Corte americana começa a pensar em mudar um precedente. E isso é feito aos poucos, debatendo, analisando. Muitas vezes, há até normas de transição. O Supremo brasileiro, às vezes, muda um entendimento de forma abrupta, do dia para a noite.

Qual das mudanças gerou o maior impacto negativo para a sociedade?
De forma geral, quando o Supremo sinaliza de uma forma e as instituições investem recursos, tempo e energia atuando em um determinado sentido, e depois o próprio Supremo muda a jurisprudência e esses casos são perdidos, isso é um grande prejuízo para a sociedade. Para mim, a revisão da prisão após condenação em segunda instância é um exemplo. Mudou a estrutura do processo penal. Outro exemplo é a mudança no entendimento da prerrogativa de foro. O entendimento que prevalecia era o de que a prerrogativa de foro valia para qualquer tipo de crime, ainda que sem nexo com o exercício da função. O Supremo, então, mudou a jurisprudência, dizendo que a prerrogativa de foro só se aplica quando o crime foi praticado no exercício da função, ou a pretexto dela. Depois, mudou de novo, permitindo foro privilegiado para supostos crimes praticados fora do exercício da função. Isso começa a gerar insegurança. Foro é questão de competência, e competência é absoluta. As decisões dadas por juízes incompetentes são nulas.

Há alguma outra corte no mundo que também altera com frequência suas jurisprudências como o Supremo brasileiro?
Pode até haver, mas como a gente costuma estudar direito comparado para sistemas de boa qualidade, é difícil encontrar. As cortes superiores no mundo têm como principal função garantir segurança jurídica. Não é nem ficar julgando caso concreto de A, B ou C. É firmar precedentes e dar estabilidade a esses precedentes para que haja previsibilidade, para esses casos serem julgados de forma igual. Certamente, você vai encontrar essa insegurança em alguns países periféricos da América Latina, mas a gente não costuma estudar essas cortes. Na Suprema Corte americana, há precedentes que são do século XIX.

A nova Lei de Improbidade afrouxou a punição para gestores que causarem prejuízos aos cofres públicos. Qual foi a pior mudança feita pelo Congresso na lei e por quê?
Essa foi mais uma quebra de segurança jurídica. A gente tinha uma Lei de Improbidade que ia completar 30 anos, e uma jurisprudência bem consolidada com relação a essa legislação. Mas Congresso aprova um texto, que é uma nova lei efetivamente, com 192 alterações que valem para processos que já estão em curso. Mais uma vez, mudam as regras do jogo com o jogo sendo jogado. A situação mais preocupante é a das regras de prescrição que eles criaram. A prescrição da corrupção criminal, por exemplo, é de 16 anos. Baixaram o prazo da prescrição na Lei de Improbidade para oito anos e criaram a prescrição intercorrente de quatro anos. Ou seja, depois que o Ministério Público ajuíza a ação, tem de ter uma condenação em até quatro anos. Ultrapassado esse prazo, acabou aquele processo. Se o juiz condena e a defesa entra com recurso, tem mais quatro anos para julgar. Para se ter uma ideia, uma pesquisa do CNJ feita em 2015, com base em quase 10 mil ações de improbidade, identificou que o tempo médio de tramitação dessas ações é de 4,3 anos. Ou seja, a grande maioria dessas ações tramita por mais de quatro anos no Poder Judiciário. Isso significa que a maioria dessas ações vai prescrever por causa da nova regra.

Adriano Machado/ CrusoéAdriano Machado/ Crusoé“As mudanças deixam os órgãos de controle perdidos. Hoje está bem mais desafiador combater a corrupção”
Isso pode fazer com que o Judiciário seja mais rápido no julgamento dos processos?
Tem gente que vai dizer: “O Judiciário é muito moroso, era preciso organizar e tornar a tramitação mais célere”. Mas a lei trouxe mais obstáculos à tramitação desses processos. Eu até concordo que a Lei de Improbidade precisava de uma atualização, principalmente depois da aprovação da Lei Anticorrupção, em 2013. Mas a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Carregaram muito na mão. Por exemplo, as improbidades de violação a princípios, que antes tinham um rol bem aberto, foram reduzidas a oito condutas. Várias condutas relevantes ficaram de fora. Esvaziaram, por exemplo, a questão do nepotismo, que vale para um agente concursado, mas não para um agente político. A lei também exclui os partidos políticos. Antes, um dirigente que desviava recursos públicos do fundo partidário poderia responder por improbidade e até perder seu cargo e ter os direitos políticos suspensos. Agora, eles se submetem à Lei dos Partidos Políticos, que não considera o dirigente que desvia recursos do fundo como devedor, e o partido paga multa com desconto dos próximos repasses do fundo. Ou seja, é dinheiro público ressarcindo o dinheiro público desviado.

A nova lei foi aprovada para autoproteção da própria classe política?
Não sei se foi essa a intenção. Mas agora haverá uma dificuldade muito grande de conseguir condenações por improbidade administrativa. Se alguém tinha essa intenção, conseguiu.

Com todas essas mudanças, ficou mais difícil combater e punir casos de corrupção?
Ficou bastante difícil. Na improbidade, por exemplo, o prazo máximo para conclusão das investigações é de um ano, e a lei exigiu mais elementos probatórios, como um dolo específico. Essas mudanças nas jurisprudências deixam os órgãos de controle perdidos. De fato, hoje está bem mais desafiador combater a corrupção.

O modelo dos Gaecos, que são grupos especializados no combate ao crime organizado, pode ser eficiente no enfrentamento da corrupção, tanto quanto foi o modelo de forças-tarefas utilizado pela Lava Jato e extinto pelo atual procurador-geral da República, Augusto Aras?
Os Gaecos têm que se provar. A ideia dos Gaecos era dar uma estrutura permanente e não provisória, como era a das forças-tarefas. Temos que ver se essas estruturas serão garantidas, se os procuradores vão poder se dedicar com exclusividade, com uma certa desoneração das atividades normais, que tomam tempo. Os procuradores do Gaeco precisam atuar com foco nos grandes casos, como ocorreu nas forças-tarefas. Espero que esse novo modelo se prove produtivo e eficiente. De qualquer forma, teremos dificuldades no plano legislativo. Têm vindo muitas leis dificultando nossa atuação. A Lei de Abuso de Autoridade, por exemplo, deixou os colegas mais receosos em suas atuações. Tem também a PEC que busca alterar o Conselho Nacional do Ministério Público, que vai interferir na autonomia do Ministério Público. Os Gaecos já começam com muitos desafios.

O sr. enxerga uma ação vingativa dos políticos contra os investigadores, com essa proposta de emenda constitucional que aumentaria a influência política no CNMP, órgão que fiscaliza a atuação dos procuradores?
Ela foi, de fato, chamada de PEC da Vingança. Não posso afirmar se essa é a intenção ou não, porque não posso afiançar o que eles pensam. O fato é que essa PEC vai atingir diretamente a autonomia do Ministério Público. Isso é um fato. Se a intenção é se vingar aprovando essa PEC, é uma boa vingança. É uma PEC deletéria para a independência do Ministério Público.

Adriano Machado/ CrusoéAdriano Machado/ Crusoé“Agora haverá uma dificuldade muito grande de conseguir condenações por improbidade administrativa”
A polarização política vigente no país também contaminou o Ministério Público?
Essa polarização exacerbada está evidente na sociedade. E os membros do Ministério Público, da polícia, do Judiciário, são componentes da sociedade. Não há dúvida que há uma polarização nas instituições. O que nos preocupa é a atuação de grupos pró-tratamento preventivo com o chamado Kit Covid ou pró-vacina, para citar um exemplo, apaixonando o debate. Muitas vezes os colegas puxam o debate para um viés mais ideológico do que constitucional ou legal. Isso não é só no Ministério Público. Mover a sua atuação pautado mais pela sua ideologia do que pela Constituição é deletério. Os colegas que fazem isso, seja no campo da direita, seja no campo da esquerda, são iguais. Eles até se odeiam no plano das ideias, mas fazem a mesma coisa.

Uma crítica frequente feita pela classe política é que o Ministério Público ganhou poderes demais com a Constituição de 1988. Falta algum controle para evitar abusos por parte do MP?
Acho que toda instituição que tem uma parcela de poder tem que ter controle. Não existe poder sem controle. Aí seria um arbítrio. Eu acho que o MP tem seus controles internos, como as corregedorias, que analisam a morosidade e a qualidade do nosso trabalho, os desvios de função. Dados do Conselho Nacional do Ministério Público mostram que o CNMP pune mais promotores do que o CNJ pune quadros da magistratura. Há, sim, controle. Agora, eu não sei que controle eles querem. Se é controle finalístico, ou dos entendimentos que o Ministério Público tem, isso configura quebra da autonomia do MP. Toda a atuação do Ministério Público hoje é controlada pelo Poder Judiciário. O MP não prende ninguém, ele pede. Quem vai decidir a prisão é o Judiciário. Quando falam que o Ministério Público está abusando demais, nós temos de ver se ele está afrontando as leis ou incomodando porque alcança alguns setores da sociedade que não eram alcançados. Na minha opinião, já existem os controles adequados. Pelo que está sendo proposto na PEC, não se quer conter abusos, mas ingressar na capacidade funcional dos membros do Ministério Público, o que é uma garantia constitucional.

Os ataques ao MPF devem se intensificar em 2022, com a provável candidatura de procuradores da Lava Jato, como Deltan Dallagnol, e até do ex-juiz Sergio Moro?
Sem dúvida nenhuma, se o ex-juiz Sergio Moro e Deltan Dallagnol entrarem na disputa política, e tudo indica que entrarão, essas questões ficarão mais exacerbadas no debate político. Agora, isso também vai depender do pano de fundo. As eleições de 2018 tinham como principal mote o combate à corrupção. Vamos ver qual será o mote das eleições de 2022. Se a sociedade tiver ainda esse sentimento de combate à corrupção, talvez até amenize os ataques. Se a sociedade estiver preocupada com outras agendas, essa crítica tende a ser maior, e aí não sei onde iremos parar.

O sr. considera que a sociedade, de forma geral, tem reagido menos aos recentes retrocessos no enfrentamento da corrupção?
Não tenho como avaliar isso sociologicamente. Sei que a gente enfrenta outras questões graves, como uma pandemia que tem levado a muitas mortes, problemas econômicos. Isso entra na agenda da sociedade e no ranking de preocupação das pessoas. Como o tema da corrupção está há tanto tempo na pauta, acredito que vai cansando também, e a sociedade vai elegendo outros temas. Mas é preciso ter em mente que o combate à corrupção atinge várias áreas, como saúde, educação, segurança pública, cultura. As cortes internacionais de direitos humanos afirmam que combater a corrupção é defender os direitos humanos, porque, se o dinheiro é desviado pela corrupção, esses direitos fundamentais não conseguem ser garantidos à população.

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