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O guru incendiário

Em mensagens interceptadas pela polícia com autorização do STF, a militante Sara Winter aponta Olavo de Carvalho como a mente por trás das ameaças de bolsonaristas radicais às instituições
10.12.21

Guru do bolsonarismo, o astrólogo e escritor Olavo de Carvalho deixou o Brasil “à francesa”, como ele próprio definiu, no último dia 10 de novembro. Olavo surpreendeu médicos e enfermeiros da Clínica Sainte-Marie, em São Paulo, onde esteve internado na última etapa da viagem que fez ao país, para tratamento médico. Sem receber alta ou mesmo dar explicações, o guru abandonou o quarto às pressas. Foi visto pela última vez na garagem da clínica às 16h30. Na fuga, até deixou para trás pertences que só foram recolhidos no dia seguinte por uma de suas filhas. Os problemas de saúde que o afligiam de repente ficaram em segundo plano. Olavo foi embora por medo de, a qualquer momento, ser alvo de uma ação policial ordenada pelo Supremo Tribunal Federal. Para não ter que passar pelos controles de praxe realizados nos aeroportos, encarou uma viagem de 1,4 mil quilômetros (trinta horas de carro) até Assunção. A passagem para voar da capital do Paraguai para os Estados Unidos, onde mora, foi comprada em dinheiro vivo.

“Eu não ia ficar sentado esperando que eles me convoquem algum dia. Se apareceu a oportunidade de ir embora, vamos embora”, disse o guru em um vídeo publicado dias depois. A preocupação não era desarrazoada. Mensagens interceptadas pela Polícia Federal e obtidas com exclusividade por Crusoé indicam que Olavo teve papel preponderante nos atos antidemocráticos deflagrados por militantes bolsonaristas no ano passado, para atacar instituições como o próprio Supremo – os organizadores das manifestações são alvo de duas investigações em curso na corte.

Diálogos registrados no telefone celular da extremista Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter, dão a medida do papel do guru. A suspeita é que ele tenha sido idealizador de manifestações como as realizadas pelo grupo que ficou conhecido como “300 do Brasil”, liderado por Sara, que chegou a ficar presa por dez dias por decisão do STF – o grupo, supostamente armado, organizou um acampamento em Brasília e marchou com tochas rumo à sede do STF, na Praça dos Três Poderes. Os diálogos em que a extremista aponta Olavo de Carvalho como uma espécie de “guia” das ações estão em poder do Supremo e integram o chamado inquérito das fake news, que investiga desde os baderneiros e até o próprio presidente.

Em dia 2 de abril de 2020, cerca de um mês antes de os “300 do Brasil” montarem um acampamento na Esplanada dos Ministérios, Sara Winter escreveu em um grupo de WhatsApp que havia passado “mais de uma hora ao telefone com Olavo” e que ele fizera “solicitações SÉRIAS e até ARRISCADAS”. As letras em caixa alta eram para enfatizar a importância das orientações. A extremista diz, então, que transmitiria o recado ao blogueiro Allan dos Santos, outro comandante das franjas mais radicais do bolsonarismo, que há dois meses teve sua prisão ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos em andamento na Suprema Corte. Assim como Olavo, o blogueiro vive nos Estados Unidos – o STF quer sua extradição, mas até agora ele segue livre, leve e solto, e dentro do governo Bolsonaro foi deflagrada uma verdadeira caçada aos funcionários que, obedecendo à ordem expedida pelo tribunal, atuaram para enviar o processo às autoridades americanas.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéSara Winter na Praça dos Três Poderes na época das manifestações: hoje ela tenta se descolar do bolsonarismo
A Allan dos Santos, Sara escreveu: “Queria falar contigo. Passei uma hora com professor Olavo ontem no telefone. Ele me solicitou algumas coisas sérias e preciso de ajuda. Não confio em qualquer um para falar”. Dirigindo-se novamente ao grupo de WhatsApp, que àquela altura tinha mais de 100 participantes, a ativista disse: Vou precisar da ajuda de todos. Desire (uma das participantes) vai passar algumas coisas pra vocês, estou indo lá pro Allan falar com ele”. Segundos depois de contar que acabara de receber orientações “sérias” e “arriscadas” de Olavo, a líder dos 300 afirmou que as informações eram sensíveis e que era preciso buscar um canal mais seguro para evitar que elas fossem interceptadas. A militante pede aos companheiros sugestões de plataformas mais seguras para compartilhar os conselhos do guru. “Alguém sabe se é seguro planejar coisinhas pelo zap? Melhor Telegram? Sou ANALFABETA DIGITAL”, escreveu. “Tenho coisas importantes pra falar sobre desobediêcia civil”, adiantou.

Em seguida, a ativista sugere aos demais integrantes que passassem a conversar por meio do Discord, um aplicativo menos conhecido que permite a troca de mensagens em texto, áudio e vídeo. O relatório elaborado pela Polícia Federal com as informações encontradas no Samsung Galaxy de Sara não traz os diálogos travados na plataforma alternativa proposta por ela, mas, semanas depois, no próprio WhatsApp, surgem pistas do que eram, afinal, as tais ideias de Olavo. É quando a extremista, pela primeira vez, atribui ao guru o plano de montar o acampamento em Brasília. A meta, diz ela em uma das mensagens, era “botar medo, humilhar, desmoralizar esse bando de pilantra” – o “bando de pilantra”, obviamente, eram os inimigos do bolsonarismo, em especial os ministros do STF e parlamentares cuja atuação incomodava o governo, como o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Ao tratar dos preparativos para o acampamento, Sara Winter fala em difundir “técnicas de subversão” entre os interessados em participar dos atos: “Serão 10 horas de TREINAMENTO gratuito em técnicas de protesto, técnicas de subversão. Dia 30 começaremos atos coordenados com estratégia”. O tal acampamento dos “300” estressou as autoridades de segurança pública de Brasília. Especialmente depois que a própria Sara declarou publicamente que seus liderados portavam armas – em seguida, ao se dar conta da gravidade do que disse, ela voltou atrás. Além de ocupar a Esplanada com barracas de lona, os manifestantes chegaram a alugar uma propriedade rural nos arredores da capital, para, supostamente, fazerem seus “treinamentos”.

Em uma das manifestações, ainda em abril de 2020, integrantes do grupo marcharam à noite em direção ao STF de máscaras e carregando tochas. A poucos metros da corte, gritando palavras de ordem contra os ministros, dispararam fogos de artifício contra o prédio. Em linha com o objetivo de “botar medo”, o ato teve como trilha sonora uma melodia macabra que, à medida que os militantes avançavam, era amplificada por um alto-falante. Na época, o governo de Jair Bolsonaro ainda não havia se rendido ao Centrão. Sob o risco de sofrer um processo de impeachment pelo Congresso, o presidente vinha sofrendo seguidos reveses impostos pela mais alta corte judicial do país. O plano dos apoiadores era reagir à ofensiva. Com aval do próprio presidente, muitos deles sonhavam com o caos institucional, a ponto de dar condições ao Planalto para acionar as Forças Armadas, a fim de conter os alegados arroubos dos outros poderes.

ReproduçãoReproduçãoA marcha dos “300 do Brasil” rumo ao STF: mascarados e com tochas
A estratégia era ampla. Coube à própria Sara cuidar para que a iniciativa dos “300 do Brasil” se integrasse a manifestações de outros grupos que haviam programado atos em Brasília, no mesmo período, em favor do governo. Em 21 de abril de 2020, a ativista enviou mensagem a outros influenciadores bolsonaristas com esse objetivo. De novo, ela mencionou o papel de “orientador” de Olavo de Carvalho. “Boa noite, Oswaldo Eustáquio, eu, Fernando Lisboa e outros youtubers, sob a orientação do professor Olavo de Carvalho estamos organizando um acampamento. Não definimos data ainda. Faremos a primeira reunião HOJE aqui em casa em Brasília. O que acha de somarmos os atos. A Marcha pra Brasília com destino final do Acampamento. Seria fantástico”, escreveu.

A um militante identificado como Giuliano Miotto, organizador de outra manifestação batizada de “Marcha para Brasília”, ela disse: “Concordamos em unir os atos. A Marcha para Brasília e o Acampamento dos 300. Vocês estão seguros para começar essa marcha já dia 26? Porque ainda não temos barracas, nem refeições, nem banheiro químico, nem nada. Estamos orçando no dia de hoje para correr atrás de fundos. Pro povo não chegar aqui e ficar no meio da rua sem banho, sem comida, sem nada”. “Acho que podemos ir chegando no dia 26. Dar até o dia 28 pro povo chegar”, emenda. “Excelente”, concorda Miotto.

Recursos para bancar a ação não faltaram. Publicamente, Sara Winter dizia que os “300” eram financiados por uma vaquinha virtual. A investigação da Polícia Federal, porém, indica que recursos públicos podem ter sido usados, indiretamente, na empreitada. Os policiais suspeitam que a trupe de Sara tenha contado com ajuda financeira de uma empresa de propriedade de um marqueteiro que atuou para criar a Aliança pelo Brasil, o malfadado projeto partidário de Jair Bolsonaro. A PF identificou repasses de 30 mil reais feitos pelos gabinetes dos deputados bolsonaristas Bia Kicis, Aline Sleutjes, Guiga Peixoto e General Girão à firma, que por sua vez teria encaminhado os valores ao grupo de Sara. As mensagens mostram que Sara Winter também procurou contato com o empresário bolsonarista Luciano Hang, dono da Havan, em busca de ajuda para o acampamento.

Uma vez reunidos em Brasília, os militantes liderados por Sara seguiram à risca a ideia de mimetizar um grupo paramilitar na tentativa de assombrar as instituições – beira o cômico, é verdade, mas a estratégia é ilustrativa do nível de desenvolvimento cognitivo de muitos dos personagens que têm dominado a cena política nacional nos últimos tempos. No dia 2 de maio, com o acampamento já inaugurado, a extremista convocou um treinamento dos “300” na região central da cidade. Em uma das mensagens captadas pela PF, ela pediu: “Venha com roupa que você iria pra guerra”.

Não houve guerra. Mas confusão não faltou. No dia seguinte ao tal treinamento, depois de o Ministério Público ir à Justiça para pedir a suspensão do acampamento, policiais militares foram até o local onde os seguidores de Sara estavam reunidos. Tinham ordens para desmontar as barracas. O clima esquentou. No Twitter, a própria Sara disse: “Mulheres de joelhos nos chãos (sic). Que a Polícia Militar não toque em um fio dos nossos cabelos! Homens em formação pra defender o acampamento. Peçam à @pmdfoficial (perfil da PM de Brasília na rede) que não avancem (sic). A prometida resistência não ocorreu.

Isac Nóbrega/PRIsac Nóbrega/PRBolsonaro costumava ir até a rampa do Planalto saudar os manifestantes que montaram acampamento em Brasília para apoiá-lo
Nas redes, àquela altura, Olavo de Carvalho se mostrava afinado com os “soldados” de Sara. Ele subia o tom contra as instituições e defendia, sem meias palavras, que as Forças Armadas agissem em favor do governo Bolsonaro. “Será que devemos pedir ajuda às Forças Armadas americanas em vez das brasileiras?”, escreveu em 21 de maio. “Ainda há tempo: se os generais se arrependerem de uma vida de encenações vaidosas e decidirem agir, ainda podem salvar o Brasil. Mas duvido que tenham fibra para isso”, prosseguiu no dia seguinte. O Supremo era o alvo dileto do guru. “O STF atual é apenas um órgão do Foro de São Paulo, nada mais”, disse em uma publicação que foi “curtida” por Heloísa Bolsonaro, mulher do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente da República. Fica evidente que a ideia, no fundo, era criar confusão para, quem sabe, obrigar os militares a agir. “Só o que os militares têm de fazer é oferecer apoio armado às iniciativas populares. Patriotismo sem humildade é loucura”, afirmou o guru bolsonarista em outro post.

Crusoé procurou Olavo de Carvalho para ouvi-lo sobre as mensagens de Sara Winter interceptadas pela polícia, mas não conseguiu contato. Em depoimento prestado por videoconferência  nos autos do inquérito das fake news, no mês passado, o guru foi indagado sobre sua relação com a militante e se mostrou bem cuidadoso nas respostas. Ele disse que teve contato Sara por meio de um aplicativo de mensagens “em três ou quatro ocasiões, salvo engano”. Afirmou ainda que, “em 2019, salvo engano”, a militante o procurou para pedir conselhos sobre se “deveria entrar na política”.

Sara Winter, também procurada por Crusoé, saiu-se com uma versão um pouco diferente daquela apresentada por Olavo à PF. Declarou que os dois “trocavam muitas mensagens sobre o cenário político brasileiro”, durante o ano de 2020, quando a ideia do acampamento surgiu. À diferença do que ela própria escreve nas mensagens interceptadas pelos policiais, agora a extremista afirma que Olavo de Carvalho não idealizou nem ajudou a organizar o acampamento dos “300 do Brasil”. Indagada sobre quais foram as tais solicitações “sérias” e “arriscadas” feitas pelo guru, ela deu uma resposta um tanto inverossímil para o contexto das mensagens: “Catalogar todas as teses universitárias que tenham como tema a liberdade, a liberdade religiosa, o direito à propriedade privada etc. Para saber, através de uma pesquisa estatística, o nível de doutrinamento nos órgãos que concedem bolsas de estudo para pesquisas acadêmicas. A outra solicitação foi fazermos uma lista com todos os aliados que a direita tem dentro da imprensa tradicional, para saber em quem se poderia confiar. Essas coisas ele (Olavo) pede aos alunos dele há pelo menos uns 15 anos”. Ao ser confrontada com o teor das mensagens, Sara disse que precisava encerrar a conversa.

Sara Winter e Olavo de Carvalho seguem falando a mesma língua até hoje. Sentindo-se abandonados pelo governo, os dois com frequência se queixam da atenção dispensada por Jair Bolsonaro a seus apoiadores mais fiéis. Recentemente, o guru criticou o “abandono” de Sara pela direita. “O abandono em que os tais ‘direitistas’ jogaram a Sara Winter prova que, moralmente, estão no nível da esquerda”, afirmou.

A julgar pelas mensagens em poder da PF e do Supremo, os dois têm motivos de sobra para proteger um ao outro.

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