Adriano Machado/Crusoé

Tudo mais do que dominado

Bolsonaro queria, Bolsonaro conseguiu: o governo avança, sem limites, em sua estratégia de dominar os órgãos de investigação e controle. O plano é se proteger e, agora, também proteger seus aliados enrolados
10.12.21

Dentro do sistema de inteligência brasileiro há um tripé formado por órgãos de controle que são, de longe, os mais temidos por quem tem ou pode ter contas a pagar com a Justiça. Dois deles, a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, subsidiam com informações sigilosas o imprescindível trabalho do terceiro, a Polícia Federal. Para que o Ministério Público consiga reunir provas e denunciar casos de corrupção e lavagem de dinheiro, esse tripé precisa atuar com autonomia e sinergia. Nos tempos atuais, essa prática foi criminalizada. Compartilhar dados bancários e fiscais de políticos e agentes públicos sob suspeita virou sinônimo de “devassa” e “perseguição”. Enquanto o Judiciário, liderado pelo Supremo Tribunal Federal, tem se encarregado de anular investigações que avançaram sobre poderosos, o governo de Jair Bolsonaro tem defenestrado aqueles que contrariam os interesses do clã presidencial ou de seus aliados exercendo suas funções.

Há tempos Crusoé vem apontando para o avanço da estratégia do governo de dominar os órgãos de controle e de investigação. Os últimos acontecimentos mostram que a interferência já ultrapassou os limites da Polícia Federal, antiga obsessão de Bolsonaro que rendeu ao presidente um inquérito no Supremo Tribunal Federal, mas resultou na afinada gestão do atual diretor-geral, Paulo Maiurino, no cargo desde abril. O alvo mais recente do açoite foi a Receita Federal. Na última terça-feira, 7, o ministro da Economia, Paulo Guedes, cumpriu uma ordem de Bolsonaro e demitiu o secretário especial do Fisco, José Tostes Neto, que há mais de um ano vinha travando embates com o senador Flávio Bolsonaro por causa da investigação do suposto esquema de rachid na Assembleia Legislativa do Rio, recentemente anulada pelo Supremo. Tostes Neto deu de ombros para uma acusação feita pela defesa do filho 01 do presidente contra auditores da Receita que teriam acessado ilegalmente dados fiscais do parlamentar e ignorou uma indicação de Flávio para a corregedoria do órgão.

O novo chefe da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, é um auditor fiscal de carreira que trabalhava no Rio de Janeiro, onde já foi oficial da Marinha. Nos bastidores, a nomeação foi atribuída ao filho 01 do presidente. Julio Gomes é diretor jurídico do sindicato nacional dos auditores, que fez pressão pela queda de Tostes Neto e por onde também passou o auditor aposentado Dagoberto Lemos, nome que Flávio tenta há meses emplacar na corregedoria da Receita. No sindicato, Lemos defendeu servidores acusados de enriquecimento ilícito com a mesma tese de acesso ilegal usada pela defesa do senador no caso do rachid. Foi essa queixa de suposta arapongagem que as advogadas de Flávio apresentaram ao presidente Bolsonaro em agosto do ano passado, na reunião que contou com a participação de Alexandre Ramagem. Depois do encontro, o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, instruiu a defesa do 01 a adotar uma ofensiva contra auditores da Receita para tentar anular o processo.

Entre os alvos da defesa de Flávio estava o então corregedor da Receita, José Pereira de Barros Neto, que teria blindado o suposto esquema de arapongagem. Na última semana, depois de ser comunicado que seria demitido, Tostes Neto transferiu o ex-corregedor para um cargo no Ministério da Economia. Já Paulo Guedes ofereceu ao agora ex-chefe da Receita um cargo no exterior, um mimo típico para evitar que quadros do alto escalão saiam do governo atirando. Flávio já negou atuar na disputa dentro da Receita e sua defesa sustenta que não há mais o que falar sobre o Fisco, depois que o Supremo anulou as provas do rachid. Mas é fato que as suspeitas sobre transações financeiras do 01 não cessaram. A maior delas envolve a mal explicada compra da mansão de 6 milhões de reais em Brasília, revelada por O Antagonista no início do ano. Parte do valor da compra, segundo o senador, saiu da venda de um apartamento no Rio — que teria sido produto de lavagem de dinheiro do esquema na Assembleia Legislativa, de acordo com o MP fluminense.

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRAnderson Torres: agora até o Coaf deve voltar para o Ministério da Justiça
Tão sintomático quanto a troca no comando da Receita é o plano do presidente Jair Bolsonaro de transferir de volta o Coaf do Banco Central para o Ministério da Justiça, comandado pelo dileto Anderson Torres. Desde a divulgação do relatório de inteligência financeira mostrando as movimentações atípicas na conta do notório Fabrício Queiroz, ainda no período de transição de governo, o Coaf entrou na mira do clã presidencial. O órgão, que atua na prevenção e combate à lavagem de dinheiro, comunicando investigadores sobre transações suspeitas identificadas pelos próprios bancos, como saques e depósitos de altas quantias em espécie, chegou a ser provisoriamente transferido da pasta da Economia para a Justiça em 2019, a pedido do então ministro Sergio Moro. Cinco meses depois, quando o caso Queiroz já desgastava o Planalto, a Câmara derrubou a medida, em uma votação marcada pela falta de empenho do governo na articulação junto aos parlamentares.

Defensor de Flávio, o advogado Frederick Wassef, ele próprio também alvo de comunicações do Coaf que apontam transações financeiras atípicas em suas contas bancárias, fez uma cruzada na qual conseguiu não apenas anular na Justiça os relatórios envolvendo o seu nome e o do 01 como também abrir uma investigação contra o órgão de controle, chamado por ele de “central de espionagem”. A interlocutores, Wassef tem repetido que o Coaf foi “aparelhado” com pessoas ligadas a Moro, hoje adversário político de Bolsonaro, e já embutiu isso na cabeça do presidente. Agora que o Ministério da Justiça está nas mãos de um aliado, Bolsonaro prepara mais uma ginástica retórica para justificar a transferência do Coaf para a pasta de Anderson Torres, que tem se mostrado fiel executor dos desejos do chefe do Planalto em controlar os órgãos oficiais de investigação e de inteligência.

O episódio envolvendo a extradição do blogueiro Allan dos Santos, investigado no inquérito que mira a milícia digital bolsonarista, evidenciou essa atuação. Em depoimentos prestados no mês passado, três servidores do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional, o DRCI, relataram pressão da cúpula do Ministério da Justiça no procedimento para executar a ordem do ministro Alexandre de Moraes de extradição e prisão do aliado de Bolsonaro, que está nos Estados Unidos. Chefe do setor, a delegada Silvia Amélia Fonseca foi exonerada depois de dar prosseguimento à ordem. À PF, ela disse que o chefe de gabinete do ministro solicitou cópia do processo do blogueiro, o que nunca havia ocorrido antes em casos semelhantes. Depoimentos de outros dois servidores e documentos internos também demonstraram a insistência do secretário nacional de Justiça, Vicente Santini, para acessar o processo, alegando que a falta de informação sobre o caso gerou “desconforto” à cúpula. Anderson Torres afirmou que “nunca houve pressão” e que o pedido de acesso ao processo foi “legítimo” e “negado pela sua subordinada”. Os servidores serão investigados por suspeita de crime de obstrução de Justiça.

Na semana passada, foi a vez da delegada Dominique de Castro Oliveira, que atuava na Interpol em Brasília e cuidou do procedimento de inclusão do nome de Allan dos Santos na lista de procurados. Até hoje a inclusão não foi efetivada. Em mensagem enviada a colegas, a delegada disse que sua transferência repentina da Interpol para a Superintendência da PF no Distrito Federal foi justificada pelo argumento de que ela teria feito “algum comentário que contrariou” o diretor-geral, Paulo Maiurino. Seja qual for a motivação real da decisão, o pano de fundo não deixa de ser político. E o episódio de Dominique está longe de ser um caso isolado dentro da Polícia Federal. Desde a posse de Maiurino, em abril, pelo menos duas dezenas de delegados foram afastados de cargos de chefia ou sacados da condução de inquéritos porque, de uma forma ou de outra, contrariaram os interesses do Planalto ou de seus aliados.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéFlávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente: ele é apontado como padrinho do novo chefe da Receita
Isso aconteceu, por exemplo, com o delegado Alexandre Saraiva, que representou contra ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, por suposto envolvimento no esquema de extração ilegal de madeira da Amazônia, e com outros dois delegados que o sucederam na superintendência da PF no Amazonas e na condução do inquérito. Em Brasília, o delegado Franco Perazzoni, que pediu busca e apreensão em endereços de Salles como parte de uma apuração sobre venda ilegal de madeira, deixou o inquérito e depois teve uma promoção barrada pela atual cúpula da PF. O mesmo ocorreu com o delegado Thiago Delabary, que se destacou na condução do inquérito sobre supostas propinas pagas por empreiteiras ao ex-presidente Michel Temer. Ele deixou a Coordenação de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, após a posse de Maiurino, e teve sua nomeação para chefiar a mesma área no Rio Grande do Sul vetada.

Considerado o setor mais sensível da PF por investigar políticos e autoridades com foro nos tribunais superiores, o setor de inquéritos especiais também registrou baixas de delegados que avançaram sobre poderosos. O antigo chefe, Felipe Leal, conduzia a investigação sobre a interferência de Bolsonaro na PF e caiu depois de solicitar do Supremo diligências que investigariam atos do atual diretor-geral da corporação. O nome do delegado Bernardo Guidali, que pediu a abertura de inquérito para investigar o ministro Dias Toffoli por suposta venda de sentenças a partir da delação de Sergio Cabral, também foi rejeitado para assumir uma coordenação de lavagem de dinheiro. Maiurino foi amigo de infância de Toffoli em Marília, no interior paulista, e trabalhou com o ministro no Supremo antes de assumir a PF. Ao menos outros quatro delegados pediram para deixar o setor de inquéritos especiais, por discordarem dos métodos de trabalho da atual gestão. Foi o caso da delegada Lauren Salatino, responsável pela investigação que flagrou o deputado Josimar de Maranhãozinho, do PL do Maranhão, com maços de dinheiro vivo desviado de emendas, como mostrou Crusoé em sua última edição. Hoje, a delegada chefia um setor administrativo da corporação. Vários delegados experientes que se destacaram na Operação Lava Jato também estão escanteados – ou “no corredor”, para usar uma expressão do jargão policial.

Na superintendência da PF no Distrito Federal, onde corre a investigação sobre suposto tráfico de influência envolvendo Jair Renan, o filho 04 de Bolsonaro, o delegado Hugo Correia foi exonerado em outubro – ele comandava o órgão. Assumiu o lugar o delegado Victor Cesar Carvalho dos Santos, puxado do Rio de Janeiro. Cinco meses antes, Maiurino já havia demitido a delegada Carla Patrícia da Superintendência de Pernambuco, onde a PF fez operações contra o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, e a prefeitura de Petrolina, comandada pelo filho dele. A interlocutores, Maiurino disse que a delegada tinha uma relação muito próxima com políticos do PSB que comandam o estado e fazem oposição a Bolsonaro. Depois que policiais vasculharam órgãos da administração do filho de Bezerra, por suspeita de desvio de recursos na compra de material escolar, o ministro Anderson Torres suspendeu a criação de uma delegacia da PF em Petrolina, quarta maior cidade do interior nordestino.

O chefe da PF tem afirmado que as mudanças são “medidas naturais” que ocorrem sempre que há uma troca na cúpula. Ele nega que as decisões tenham sido tomadas para atender a interesses políticos de Bolsonaro e de seus aliados. “Não há motivação política para tais mudanças, que ocorrem por razões de ordem técnica ou por interesse da Administração”, afirmou Maiurino, em nota divulgada nesta semana. Apesar das evidências cristalinas de que o número de operações da PF envolvendo casos de corrupção caíram e de que os esforços hoje estão centrados em ações contra o tráfico de drogas, a diretoria da polícia sustenta que o setor de inquéritos especiais que investiga os poderosos continua tocando suas apurações sem ingerência externa. Na próxima semana, vão se completar 600 dias da famosa reunião em que o presidente da República falou alto e bom som que iria interferir na PF e “ponto final”. Daqui até o fim do mandato, a PF tem pouco menos de 400 dias para mostrar que não está sob intervenção. Por ora, tudo aponta para outra direção: Bolsonaro e o establishment político venceram.

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