A turma da impunidade
A derradeira sessão de Celso de Mello como ministro do Supremo Tribunal Federal, em outubro do ano passado, marcou também a última votação em que um alvo da Lava Jato teve sua condenação confirmada pela Segunda Turma da corte, encarregada de julgar todas as ações e recursos envolvendo a operação. Fiel da balança no colegiado, à época dividido entre os chamados “garantistas” e “lavajatistas”, o então decano seguiu o relator Edson Fachin e a ministra Cármen Lúcia na tese que condenou, por 3 a 2, o ex-senador Valdir Raupp, do MDB de Rondônia, por ter recebido 500 mil reais de propina de uma empreiteira, como doação eleitoral dissimulada, em 2010. De lá pra cá, o jogo de forças na turma que agora receberá o mais novo integrante do Supremo, André Mendonça, perdeu completamente o equilíbrio com as mudanças em sua composição – e a vida dos réus e investigados passou a melhorar significativamente.
Atualmente presidida pelo ministro Kassio Marques, indicado por Jair Bolsonaro no ano passado para a vaga de Celso de Mello, a Segunda Turma se transformou no maior algoz da Lava Jato, em 2021. Embora tenha assumido a cadeira deixada por Marco Aurélio Mello, que integrava a Primeira Turma, Mendonça se juntará aos ministros que revisam os casos da operação porque Cármen Lúcia pediu para trocar de turma em agosto, após a polêmica mudança de voto no julgamento que decretou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro na ação do tríplex do Guarujá – a decisão culminou na prescrição dos crimes pelos quais o petista havia sido condenado. Desde então, as sucessivas derrotas impostas pela Segunda Turma à Lava Jato têm sido pelo placar de 3 a 1.
Mesmo sem chance de reverter a goleada que o trio Gilmar Mendes, Kassio Marques e Ricardo Lewandowski vem aplicando em Edson Fachin, que, a despeito da canetada em favor de Lula, sobre a incompetência da 13a Vara Criminal de Curitiba em julgar casos relativos ao petista, ainda costuma votar pela validade de muitas iniciativas dos investigadores da Lava Jato, há uma expectativa grande em torno da postura a ser adotada por Mendonça. Ao ser sabatinado pelo Senado, o novo ministro foi cobrado por políticos de esquerda e do Centrão por ter defendido a operação em artigos e entrevistas enquanto integrava os quadros da Advocacia-Geral da União. Para se livrar da pecha, e diminuir as resistências ao seu nome, ele passou a dizer em conversas de bastidores que não é lavajatista, e prometeu adotar uma postura igualmente garantista – o que soou como música aos ouvidos das excelências enroladas.
Ironicamente, o caso de Valdir Raupp – aquele mesmo da última decisão da Segunda Turma em favor da Lava Jato — deve ser o primeiro grande teste de Mendonça. Na última semana, Gilmar pediu vista dos embargos de declaração que a defesa do ex-senador impetrou contra a condenação. Normalmente, esse recurso serve apenas para sanar eventuais contradições ou omissões contidas na sentença, mas o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o notório Kakay, pede a absolvição de Raupp com o velho argumento de que ele foi condenado a partir de “meras declarações” de delatores. Fachin já votou contra o recurso no plenário virtual, mas o pedido de Gilmar suspendeu o julgamento, permitindo a participação do recém-empossado André Mendonça.
Em março deste ano, Kassio Marques foi duramente enquadrado por Gilmar após contrariá-lo no julgamento da suspeição de Sergio Moro. O atual decano tratou o colega como um “juiz covarde”, por, primeiro, não ter acolhido o habeas corpus da defesa de Lula e, segundo, ter afirmado que as mensagens hackeadas dos procuradores de Curitiba eram “prova ilícita”. À época, havia pressão de parlamentares e militantes bolsonaristas para que Kassio não votasse em favor do chefe petista, que reconquistou o direito de concorrer à Presidência da República, em 2022, graças à anulação de suas condenações pelo Supremo. No fim das contas, foi um ponto fora da curva. Depois, Kassio passou a acompanhar Gilmar e Lewandowski nas decisões contrárias à Lava Jato e a favor dos alvos da operação.
Como Crusoé tem mostrado nos últimos meses, a destruição da Lava Jato pela Segunda Turma do STF tem agradado aos mais variados atores do establishment político. Só neste ano, o colegiado já proferiu decisões anulando sentenças, excluindo provas e arquivando ou suspendendo investigações em favor de mais de uma dezena de políticos graúdos, sem contar empresários que corromperam agentes públicos para tirar vantagem para os seus negócios. A lista inclui, além de Lula, o presidente da Câmara, Arthur Lira, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, o ministro Vital do Rêgo, do TCU, o deputado Aécio Neves, o ex-governador fluminense Sérgio Cabral, o ex-deputado Eduardo Cunha e o ex-ministro Geddel Vieira Lima. No mês passado, o senador Flávio Bolsonaro tirou proveito da onda de decisões pró-réus na Segunda Turma e conseguiu anular as principais provas obtidas contra ele no esquema rachid que funcionou na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O placar foi 3 a 1 a favor do filho 01 do presidente da República.
Nos casos da Lava Jato, os reveses na Segunda Turma têm como eixo central o argumento de que os dois principais juízes envolvidos na operação – Sergio Moro, no Paraná, e Marcelo Bretas, no Rio de Janeiro – extrapolaram suas competências ao julgar pedidos e denúncias feitos pelas forças-tarefas do Ministério Público Federal. No caso da 13ª Vara de Curitiba, onde atuava Moro, o episódio de maior repercussão foi a surpreendente liminar dada por Fachin em março deste ano, anulando todas as condenações de Lula nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, por considerar que os processos não tinham relação com o petrolão e, por isso, não poderiam ter corrido no Paraná.
A Segunda Turma virou uma espécie de VAR da Lava Jato – no caso, mais anulando do que confirmando as decisões das instâncias inferiores –, porque dois de seus integrantes recebem automaticamente os casos da operação que chegam ao Supremo: o próprio Fachin nos processos de Curitiba, e Gilmar nas ações do Rio. Cada decisão monocrática da dupla é levada a julgamento na turma, formada por cinco dos onze ministros. Neste ano, a Segunda Turma já julgou 206 habeas corpus ou reclamações, que são os recursos usados pelos réus da Lava Jato para conseguir reverter na última instância decisões desfavoráveis proferidas por outros tribunais.
Uma vitória no STF em um caso pode desencadear um efeito dominó. Foi o que aconteceu com Eduardo Cunha, que conseguiu anular, em setembro, uma denúncia de propina no esquema da Petrobras que havia tramitado em Curitiba. O processo foi enviado para a Justiça Eleitoral do Rio. A partir dessa reclamação no Supremo, a defesa do deputado cassado conseguiu reverter outros seis processos, alguns já sentenciados. No mais recente deles, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, anulou a maior condenação aplicada a Cunha, de 24 anos e dez meses de prisão, por fraudes no FGTS.
No Rio de Janeiro, as decisões da Segunda Turma que tiraram nos últimos meses cinco operações das mãos do juiz Marcelo Bretas podem afetar mais da metade das 55 fases da Lava Jato. Na mais recente delas, da última terça-feira, 14, o colegiado acolheu, também por 3 a1, um pedido do empresário Jacob Barata Filho e mandou para a Justiça estadual uma ação envolvendo pagamento de propina do setor de transportes ao grupo do ex-governador Sérgio Cabral. Gilmar foi padrinho de casamento da filha de Barata e já livrou o empresário da cadeia três vezes desde o início das investigações na capital fluminense.
A onda da impunidade continua. De olho nas decisões em cascata da Segunda Turma, advogados já pediram a suspensão da ação penal movida em 2018 pela Lava Jato contra a rede de operadores comandada pelo doleiro Dario Messer, que movimentou 5,5 bilhões de reais entre 2011 e 2017, abastecendo inúmeros esquemas de corrupção, incluindo o da Odebrecht. Até réus que assinaram acordos de delação premiada pretendem questionar seus processos no Supremo a partir da reviravolta promovida pelo colegiado. A defesa do doleiro Adir Assad, por exemplo, já está tentando acessar a íntegra dos diálogos hackeados da força-tarefa de Curitiba, em busca de algum elemento que possa ser usado para rever pontos do acordo firmado com o MPF. Toda essa leva de recursos questionando as decisões da Lava Jato, seja no Rio ou em Curitiba, vai desaguar na turma que agora conta com o ministro André Mendonça.
Para o jurista Joaquim Falcão, fundador da Escola de Direito da FGV no Rio e um dos principais especialistas em Supremo do país, as decisões da Segunda Turma evidenciam o fenômeno que ele próprio chama de “processualismo patológico” – a expressão define a cultura brasileiríssima de anular ações sem responder ao que a sociedade precisa saber, se o réu é culpado ou inocente. “Essas decisões raramente entram no mérito dos casos. O Supremo anulou as condenações de Lula, mas não decidiu se ele é culpado ou inocente. O Moro foi julgado suspeito por causa das mensagens hackeadas, mas não decidiram se elas são provas válidas ou não. A sociedade não quer saber sobre impropriedade processual, mas se o suspeito cometeu ou não o delito. Essas decisões do Supremo só geram insegurança jurídica, instabilidade econômica e imprevisibilidade eleitoral”, afirma Falcão.
Assim, a Segunda Turma do Supremo vai dando sua contribuição importante para o jogo de narrativas em que se transformou o combate à corrupção no país – um jogo em que, como está cristalino, os poderosos enrolados estão levando clara vantagem, beneficiados pela impunidade que voltou a reinar.
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