Sob o comando de Bia Kicis, a CCJ da Câmara virou palco para a disseminação de fake news sobre a pandemia e para propostas absurdas

O cercadinho das ideias

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados se transformou em um reduto amalucado de bolsonaristas radicais
17.12.21

Em quase oito décadas, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados se consolidou como o colegiado mais importante da casa. Os parlamentares que integram a CCJ avaliam os aspectos constitucionais, legais e jurídicos de todas as propostas que tramitam na casa e debatem temas relacionados a direitos e garantias fundamentais. A imensa relevância da comissão contrasta com o atual nível dos debates protagonizados por seus integrantes. Sob a presidência da bolsonarista Bia Kicis, do PSL, e apinhada de deputados radicais e negacionistas, o colegiado se transformou ao longo de 2021 em uma extensão do famoso cercadinho do Palácio da Alvorada, onde o presidente Jair Bolsonaro desfia absurdos diariamente para inflamar a militância.

A CCJ hoje serve de palco para a propagação de fake news relacionadas à pandemia, ataques a ministros do Poder Judiciário e impropérios de toda ordem contra adversários políticos. O preocupante, contudo, é que a atuação do grupo majoritário da comissão não se resume aos discursos raivosos dos radicais: graças a uma manobra da base governista, o Planalto tem maioria para transformar o ódio em ações concretas. Um exemplo disso está no plano de revogar a chamada PEC da Bengala, visto como uma vingança dos bolsonaristas contra o Supremo Tribunal Federal. A proposta de emenda à Constituição antecipa a aposentadoria de integrantes da corte e abre brecha para que Bolsonaro possa indicar mais dois ministros antes do final de seu mandato. Não foi a primeira ofensiva contra o STF, nem deve ser a última. A atuação dos extremistas na CCJ também inclui apoio à proposta que libera a educação domiciliar, uma antiga demanda de grupos religiosos, à flexibilização do porte de armas e à PEC que permite o trabalho aos 14 anos, bandeiras de Bolsonaro.

“Se um marciano descesse hoje na CCJ da Câmara, certamente se perguntaria: com tudo o que está acontecendo no país, é isso que os deputados estão discutindo? Enfrentamos o risco da quarta onda, o povo está passando fome e a gasolina chegou a oito reais. É ridículo que tenhamos que discutir pautas como a revogação da PEC da Bengala só porque eles querem afrontar o Supremo”, diz o deputado Júlio Delgado, do PSB mineiro. “Esse pessoal está na Terra ou em outro planeta?”, indaga. “Propostas para destravar a economia, para moralizar a administração pública e para combater a fome ficaram paradas”, afirma o deputado Kim Kataguiri, do DEM. Kataguiri compara a atuação da CCJ com a da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, que conseguiu dar vazão a temas estratégicos. “Lá, aprovamos, por exemplo, o ponto eletrônico para servidores.”

Fellipe Sampaio /SCO/STFFellipe Sampaio /SCO/STFPlenário do STF: deputados querem dar troco na corte por ações que desagradam ao governo
Para além dos temas prioritários para Bia Kicis e companhia, a CCJ perdeu tempo debatendo projetos como o que cria o Dia Nacional do Pastor e o que concede o título de capital do churrasco para a cidade gaúcha de Lagoa Vermelha. Também conferiu ao município de Urupema, no estado de Santa Catarina, o título de Capital do Frio, e deu à cidade mineira de Monte Sião o título de Capital Nacional da Moda Tricô.

As provocações constantes de bolsonaristas resultaram em cenas constrangedoras nas reuniões. Em março, pouco depois da eleição de Bia Kicis para o comando da comissão, o deputado Carlos Jordy, do PSL, protagonizou um dos maiores barracos do ano no Congresso, ao sair em defesa de Jair Bolsonaro. O petista Paulo Teixeira, que defende o reto e vertical Lula, havia chamado o presidente de “genocida”. “Se ele é genocida, você é vagabundo”, gritou o parlamentar da tropa de choque bolsonarista, com dedo em riste. A confusão quase acabou em briga generalizada. Kicis determinou que as menções à palavra “genocida” fossem retiradas de todas as notas taquigráficas das reuniões.

Aliado de primeira hora de Bolsonaro, o deputado Eder Mauro, do PSD do Pará, é outro que aproveita o domínio bolsonarista na comissão para travar embates ruidosos que, quase sempre, são usados em seguida para animar nas redes o eleitorado mais radical. “Vocês, comunistas, destruíram a família neste país, inclusive fazendo com que criança aprendesse sexo na escola”, afirmou em maio, durante uma discussão com a deputada Sâmia Bonfim, do PSOL. Como o bate-boca é garantido, alguns parlamentares se incumbiram do papel de mediar a solução das confusões. “Meu papel tem sido o de algodão entre cristais. Sou daqueles que primam por mais debate e menos briga. É o que tenho procurado construir nos últimos meses, mas o ambiente das reuniões ficou realmente muito belicoso”, afirma o deputado Pompeo de Mattos, do PDT gaúcho.

Billy Boss/Câmara dos DeputadosBilly Boss/Câmara dos DeputadosCaroline de Toni usou a comissão para disseminar fake news
A divulgação de informações falsas sobre a pandemia foi outra constante na CCJ ao longo de 2021. Aliados de Bolsonaro usaram a tribuna da comissão para questionar a efetividade e a segurança das vacinas e das máscaras de proteção. “As pessoas viviam dizendo que a máscara resolvia, assim como a vacina, e agora vemos que não está imunizando. E dizem que ela não é eficaz em relação à nova cepa, não garante a imunização”, declarou no fim de novembro a deputada Caroline de Toni, do PSL catarinense – a afirmação da parlamentar é refutada pela comunidade científica. Também neste ano, o deputado Giovani Cherini, do PL do Rio Grande do Sul, discursou contra o uso de máscaras e afirmou que o tucano Bruno Covas, morto de câncer um dia antes, teria sido vítima do equipamento de proteção – um óbvio disparate, chocante até mesmo para os elevados padrões de estupidez da CCJ. “A máscara que ele usou durante toda a campanha pode ter prejudicado o câncer que ele teve, porque as células precisam de respiração”, declarou Cherini. O gaúcho disse ainda que o uso de máscara causaria “uma matança de pessoas, vítimas de doenças mentais”.

A própria presidente da comissão sofreu reprimendas de colegas porque se recusava a cobrir o nariz e a boca durante as sessões – no começo do ano, a deputada brasiliense gravou um vídeo para ensinar “truques” para burlar a exigência do uso de máscara.  Os debates do Brasil paralelo que têm dominado as sessões da comissão são tão fora do esquadro que, muitas vezes, não chegam à pauta do plenário da Câmara. A revogação da PEC da Bengala é um exemplo. Logo depois que a proposta foi aprovada na comissão, o presidente da casa, Arthur Lira, correu para anunciar que não pautaria o texto em plenário. “Tudo o que é pautado na comissão motiva embates ideológicos. Isso atrapalha muito, a CCJ perdeu a graça este ano”, diz o deputado Geninho Zuliani, do DEM paulista. “O comando da comissão prefere ficar remoendo pautas sem consenso e, na maioria das vezes, não chega a lugar nenhum, porque são temas que nem sequer serão submetidos ao plenário. Com isso, perdemos horas e horas discutindo projetos que muitas vezes serão engavetados, só para que os extremistas possam jogar para a torcida e fazer discursos para as redes sociais. Isso não é nada produtivo”, segue Zuliani.

Antonio Araujo/Câmara dos DeputadosAntonio Araujo/Câmara dos DeputadosÉder Mauro: as discussões com adversários vão para as redes sociais
Dos 66 integrantes da CCJ hoje, 35 são de partidos que integram a base governista – além desses, há outros bolsonaristas filiados a siglas que se opõem ao Planalto. Os parlamentares da comissão aprovaram 223 propostas neste ano e rejeitaram apenas uma. Entre as relacionadas ao Supremo, o projeto que abria as portas para pedidos de impeachment de ministros da corte foi considerado ultrajante até mesmo na comissão. A rejeição ocorreu por pequena margem: 33 parlamentares votaram contra e 32 a favor. A proposta previa que “usurpar competência do Congresso Nacional” seria crime de responsabilidade dos ministros do Supremo.

Entre os exemplos mencionados pelos próprios defensores do projeto, estava a decisão da corte que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, a liberação de pesquisas com células-tronco e o reconhecimento da união estável homoafetiva. “A impressão que eu tenho é que eles sempre precisam de um novo ‘voto auditável’, ou seja, de um novo tema para polemizar. Infelizmente são coisas irrelevantes, que não resolvem os problemas do país”, diz o deputado federal Gilson Marques, do Partido Novo. “Ao discutir matérias sem importância, a comissão deixa de debater temas relevantes. Dá vontade de chorar ao ver a pauta. Eu me sinto um inútil, para falar a verdade: tenho vergonha de receber salário votando essas propostas”, afirma Marques.

O comando da comissão mudará no início de 2022, mas o padrão de atuação seguirá o mesmo: quem deve assumir o posto em substituição a Bia Kicis é o deputado Vitor Hugo, do PSL goiano, um dos mais fiéis parlamentares bolsonaristas. Enquanto os radicais da CCJ usam a comissão mais importante da Câmara como palanque para animar o eleitorado, a população miserável cata miúdos e pés de galinha nos açougues e 15 milhões de brasileiros estão em busca de emprego. A atuação da CCJ passa longe dos preceitos da Constituição e das noções mais básicas de Justiça.

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