Miséria às portas do poder
A família da diarista Vanessa Bonfim dos Santos, 36 anos, tinha acabado de se acomodar no gramado da Esplanada dos Ministérios, no começo da tarde do dia 24 de novembro, quando uma caminhonete dobrou a esquina, ligou o pisca alerta e parou perto do meio-fio. Foi a senha para que um dos cinco filhos de Vanessa gritasse: “Corre que é marmita!”.
Como se uma campainha tivesse sido acionada, sem perder tempo, outros dois meninos saíram em disparada em direção ao veículo, pegaram os recipientes de alumínio que embalavam a refeição e retornaram. Na quentinha, arroz, feijão, carne, batata frita, tomate e alface – comida que, em poucos minutos, seria devorada. A sorte havia sorrido aquele dia para os Bonfim dos Santos, que percorrem 50 quilômetros todos os dias de ônibus para conseguir desembarcar em frente ao prédio do Ministério da Economia, local onde erguem cartazes, escritos com caneta hidrográfica azul, com pedidos de cestas básicas. Não fosse a doação das marmitas, eles teriam passado fome mais uma vez – uma realidade que faz parte do cotidiano de várias famílias que sobrevivem perto dos gabinetes do poder em Brasília. “Muitas vezes, temos que abrir mão das nossas refeições para que as crianças possam comer”, admite Vanessa, que perdeu as quatro faxinas semanais que costumava fazer até 2019.
A desgraça da miséria, que deploravelmente contrasta com a capital federal das regalias sem fim, dos cartões corporativos, dos orçamentos secretos e fundões eleitorais desfrutados pelas excelências, agravou-se com a pandemia.
Os motivos que levaram a família de Vanessa a procurar comida em plena Esplanada dos Ministérios são hoje comuns a muitos brasileiros. Atualmente, 19 milhões de pessoas no país passam fome, o que representa 9% da população brasileira, segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. O número saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões de pessoas, entre 2018 e 2020. Esse contingente enfrenta o que é chamado por especialistas de insegurança alimentar grave, quando não há comida no domicílio e a pessoa é obrigada a pedir doações ou buscar alternativas para se alimentar.
Na avaliação do economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, Brasília reflete a mesma situação de penúria vivida por famílias de baixíssima renda que moram em grandes metrópoles do país, como São Paulo e Rio de Janeiro. São pessoas que dependem exclusivamente do mercado de trabalho, por não se enquadrar nos critérios exigidos pelos programas de transferência de renda do governo. “Quem tinha renda dependente do mercado de trabalho e pouca participação em programas sociais sofreu impacto forte, pois não tinha um colchão social ou renda alternativa”, afirma.
Foi justamente a falta de oportunidades de emprego que levou Jeferson Alves Barbosa da Silva, 25 anos, a um semáforo próximo a um shopping da capital federal, a dois quilômetros do Ministério do Desenvolvimento Regional. Ao lado do filho de 4 anos, Silva pede roupas, brinquedos, cesta básica ou qualquer doação em dinheiro, que pode ser feito via PIX. “Aceito o que vier”, resume.
Morador de Águas Lindas, cidade do entorno de Goiás localizada a 50 quilômetros de Brasília, Silva perdeu há três meses o trabalho de descarregador de bebidas. “Começou a acabar o alimento, fiquei até sem gás de cozinha. Entreguei muito currículo, mas não tenho retorno”. Com o que ganha como pedinte no semáforo, às vezes 150 reais numa tarde, ele consegue quitar o aluguel, mas nem sempre sobra para alimentar a família – além do menino de 4 anos, Silva tem uma filha de 7, que fica em casa com sua mulher, Maria Luana da Silva Araújo, 22.
“A baixa do consumo que fluía para restaurantes, serviços, comércios e empreendimentos que empregam trabalhadores de baixa qualificação desencadeou uma perda de renda e emprego para famílias. Muito emprego vinha desse consumo de Brasília. O que aconteceu foi que esse consumo diminuiu muito mais em Brasília do que em outras regiões e todas as cidades do entorno foram afetadas por isso. Eram empregos que colocavam essas famílias acima da linha da pobreza. Agora, elas perderam isso”, lamenta Duque.
Dados de outubro da Secretaria de Desenvolvimento Social do DF revelam que 2.328 pessoas se autodeclaram em situação de rua na capital do país. Entre eles, está Carlos Jefferson Neves Pereira, 57 anos, que há um mês pede dinheiro em frente à Catedral de Brasília, monumento projetado por Oscar Niemeyer. “Venho para conseguir comer”, reconhece. Nascido em Sergipe e criado no Rio de Janeiro, Pereira vive há sete anos em Brasília. Em seu caso, há um agravante: ele é cego do olho esquerdo e tem a mão direita imobilizada devido a um acidente que sofreu em 2016. No dia em que tudo “dá certo”, ele consegue voltar para casa com 80 reais no bolso, além de receber frutas, biscoitos e quentinha. “Se está ruim para você, imagina para mim que moro na rua e sou deficiente da mão e do olho”, diz o cartaz que exibe em frente ao sinal.
Gomes já trabalhou também como atendente de balcão e auxiliar de bombeiro hidráulico. Mais recentemente, atuou como chapeiro em uma lanchonete em Taguatinga, cidade-satélite de Brasília. O estabelecimento, no entanto, não suportou as restrições impostas pela pandemia e Gomes foi demitido. Há poucos dias, foi recusado na seleção de uma vaga temporária. “Não como carne, para deixar para os meus filhos. Às vezes fico só com arroz”. Gomes conta que escolheu “como ponto” o semáforo do memorial JK porque, segundo ele, é onde o sinal fica mais tempo “no vermelho”, o que permite que os motoristas leiam a mensagem da placa e, quem sabe, se sensibilizem com sua situação.
“A menos que o Auxílio Brasil venha com recursos maiores de forma permanente, haverá impacto importante na pobreza extrema, mas não vai tirar as pessoas das ruas, principalmente em cidades como Brasília, São Paulo e Rio. São as principais candidatas a ficarem em situação pior do que antes da pandemia”, avalia o economista Daniel Duque.
No fim do ano, houve um pequeno alento. Impulsionado pelo avanço da vacinação e por incentivos fiscais na área da construção civil, o setor de serviços iniciou um movimento de reaquecimento. Mas ainda está longe de representar uma virada no quadro atual. “O que vai garantir a mudança é o desenvolvimento da economia em âmbito nacional. O DF não está isolado do país. Precisamos de crescimento do PIB para manter geração de emprego e renda, além da transferência de renda. São medidas macro para superar a crise e melhorar indicadores de inflação que afetam os mais pobres”, diz Jean Lima, presidente da Companhia de Planejamento do Distrito Federal.
Enquanto isso, a bolha dos poderosos de Brasília, com seus incontáveis privilégios, seguirá vizinha da miséria que as excelências insistem em não querer enxergar.
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