Pedro Ladeira/Folhapress

O ódio, a mentira e a democracia

30.12.21
LUÍS ROBERTO BARROSO

I. A revolução digital

O mundo vive sob a Terceira Revolução Industrial – a Revolução Tecnológica ou Digital –, iniciada nas décadas finais do século XX e que se caracteriza pela massificação dos computadores pessoais, pelos telefones inteligentes e, muito notadamente, pela internet, conectando bilhões de pessoas em todo o planeta. A internet revolucionou o mundo da comunicação social e interpessoal, ampliando de maneira exponencial o acesso à informação, ao conhecimento e à esfera pública. Nos dias de hoje, qualquer pessoa pode expressar suas ideias, opiniões e divulgar fatos em escala global.

Anteriormente à internet, a difusão de notícias e de opiniões dependia, em grande medida, da imprensa profissional. Cabia a ela apurar fatos, divulgar informações e filtrar opiniões pelos critérios da ética jornalista. A internet, com o surgimento de sites, blogs pessoais e, sobretudo, das mídias sociais, possibilitou a ampla divulgação e circulação de ideias, opiniões e informações sem qualquer filtro. A consequência negativa, porém, foi que também permitiu a difusão da ignorância, da mentira e a prática de crimes de natureza diversa.

II. Ascensão das mídias sociais

Uma das mais significativas implicações da Revolução Digital foi o surgimento das mídias sociais e dos aplicativos de mensagem. O Facebook tem mais de 3 bilhões de contas. O YouTube, mais de 2,5 bilhões. No Brasil, de acordo com pesquisa do Congresso Nacional, 79% da população tem o WhatsApp como principal fonte de informação. A televisão vem em um distante segundo lugar, com 50%. Veículos impressos, que vivem uma crise no seu modelo de negócios, são utilizados por apenas 8%. O peso crescente das plataformas tecnológicas em todo o planeta e os muitos riscos que podem advir do seu uso abusivo têm levado a maior parte das democracias do mundo a debaterem a melhor forma de regulação para elas. No Brasil, já há projeto de lei aprovado no Senado Federal e em debate na Câmara dos Deputados.

É interessante observar que, no início, cultivou-se a crença de que a internet deveria ser um espaço “aberto, livre e não regulado”, mas essa percepção se desfez inteiramente. Existe consenso hoje da necessidade de regulação em planos diferentes: a) econômico, para impedir a dominação de mercados, proteger direitos autorais e estabelecer tributação justa; b) privacidade, para impedir o uso indevido das informações acumuladas pelas plataformas tecnológicas acerca das pessoas que ali navegam; e c) controle de comportamentos e de conteúdos, de modo a encontrar o ponto adequado de equilíbrio entre a liberdade de expressão e a repressão a condutas ilegais. Esse último ponto é o que interessa para fins da presente reflexão.

III. Regulação das mídias sociais

A regulação das mídias sociais deve procurar coibir: a) os comportamentos inautênticos, que envolvem o uso de sistemas automatizados – robôs ou bots –, perfis falsos ou pessoas contratadas – trolls – para forjar engajamento e/ou afogar manifestações de terceiros; b) os conteúdos ilícitos, que incluem terrorismo, abuso sexual infantil, incitação ao crime e à violência, discursos de ódio ou discriminatórios, ataques antidemocráticos, compartilhamento não consentido de imagens íntimas (revenge porn) etc.; e c) a desinformação, que consiste na criação ou difusão deliberada de notícias falsas, geralmente com o propósito de obtenção de proveito próprio – político, econômico, pessoal –, causando dano a outras pessoas.

Dentro de uma moldura legal básica estabelecida pelo Estado, o ideal é a autorregulação pelas próprias plataformas, minimizando a ingerência do poder público. Porém, após as democracias haverem superado a censura estatal à liberdade de expressão, não se deseja que ela seja substituída pela censura privada. Por essa razão, quando estiverem moderando conteúdo com base nos seus termos de uso, as plataformas devem ter deveres de transparência e isonomia, além de tornar claros os procedimentos que levaram à remoção de conteúdos.

IV. Ameaças à democracia e ataques ao processo eleitoral

A democracia brasileira viveu momentos graves nos últimos tempos. Alguns deles: a) comício na porta do quartel-general do Exército, com pedidos de intervenção das Forças Armadas no processo político; b) manifestações no dia 7 de setembro de 2021, com convocações ameaçadoras e intimidatórias contra as instituições e incitação à insubordinação das Polícias Militares; c) ameaças de invasão e fechamento do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e de descumprimento de decisões judiciais; d) desfile de tanques na Praça dos Três Poderes; e) pedido de impeachment de ministro do Supremo Tribunal Federal. O atraso rondou nossas vidas ameaçadoramente.

A Justiça Eleitoral, que operacionaliza com integridade a democracia brasileira, sofreu ataques repetidos, com acusações falsas de fraude e ofensas a seus integrantes, num esforço de trazer descrédito para o processo político democrático. Por meses a fio, o país assistiu a uma absurda campanha que pregava a volta ao voto impresso, com contagem pública manual. De novo, uma aposta no atraso. Uma volta ao tempo de fraudes, em que urnas desapareciam, outras apareciam com mais votos do que eleitores e mapas eram manipulados em favor de gente desonesta. Felizmente, o Congresso Nacional, com altivez, rejeitou a mudança para pior, que trazia a suspeita de intenções sombrias de desrespeito ao resultado eleitoral.

A pior consequência de tudo isso, no entanto, foi que ao longo do ano o país teve que gastar imensa energia debatendo as questões erradas. Discutimos não retornar ao voto de papel, quando precisávamos estar refletindo, em matéria eleitoral, sobre: a) democratização dos partidos, que não podem ter donos ou comissões provisórias eternizadas; b) necessidade de mais mulheres nos órgãos dirigentes partidários; c) critérios objetivos e transparentes de distribuição do fundo eleitoral e de prestação de contas desse gasto de dinheiro público; d) violência política de gênero, com agressões físicas e morais às mulheres que têm a coragem de ingressar na política; e) o sistema eleitoral, que é excessivamente caro, tem problemas de baixa representatividade e que dificulta a governabilidade, em meio a outros temas.

Tudo em meio a déficits civilizatórios e cognitivos.

V. O combate à desinformação

Em múltiplas ocasiões, nos últimos tempos, o processo político foi dominado por discursos de ódio, campanhas de desinformação e teorias conspiratórias. Para o Tribunal Superior Eleitoral, no entanto, foi um período de profundo aprendizado e do desenvolvimento de novas capacidades para lidar com os problemas trazidos pelo uso desvirtuado das mídias sociais. As eleições de 2018 representaram uma mudança profunda nos padrões do processo eleitoral, tendo ficado marcadas pela migração das campanhas da televisão e do rádio para as redes sociais. A verdade é que nem a legislação nem a jurisprudência estavam preparadas para essa nova realidade.

Nas eleições de 2020, no entanto, muitas lições já haviam sido aprendidas e o Tribunal Superior Eleitoral se preparou para uma verdadeira guerra, em múltiplas frentes. De fato, foi preciso convencer as pessoas a irem votar em plena pandemia, elaborar um megaplano de segurança sanitária, com distribuição de equipamentos de segurança e, muito particularmente, preparar um grande programa de enfrentamento à desinformação. O programa se desenvolveu em três eixos: a) combater a informação falsa inundando o mercado com informação verdadeira; b) foco prioritário no controle de comportamentos inautênticos, e não no conteúdo das manifestações; e c) educação midiática, procurando conscientizar a sociedade acerca do problema. A batalha contra a desinformação que visava a tirar a credibilidade do processo eleitoral foi vencida – mas apenas provisoriamente.

A verdade é que a revolução digital e a ascensão das mídias sociais permitiram o aparecimento de verdadeiras milícias digitais, terroristas verbais que disseminam o ódio, mentiras, teorias conspiratórias e ataques às pessoas e à democracia. Alguns se apresentam como jornalistas, mas são traficantes de notícias falsas. Alguma coisa parece ter acontecido no mundo que subitamente liberou todos os demônios que viviam nas sombras. E, assim, saíram à luz do dia, sem cerimônia, os racistas, os fascistas, os homofóbicos, os misóginos, os desmatadores, os grileiros e supremacistas variados. É preciso enfrentá-los, lembrando da advertência de Nietzsche: “Quem luta com monstros deve cuidar para que no processo não se transforme em monstro”. Mas o mundo anda precisando, mesmo, é de um choque de humanismo, civilidade e iluminismo.

Luís Roberto Barroso é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

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