AlexandreSoares Silva

Um novíssimo (e triste) limite para as amizades

07.01.22

“Se tivesse que escolher entre trair o meu país e trair um amigo”, escreveu em um ensaio o romancista inglês E.M.Forster, “espero que eu tivesse a coragem de trair o meu país”.

O ensaio é de 1938. Começa dizendo que aquela época desprezava a amizade como um luxo burguês, e que havia no ar a expectativa de que todos se livrassem desse luxo para se dedicarem a alguma grande causa política. Entre a amizade e uma causa política, no entanto, Forster escolhe se manter leal à amizade. “Mas provavelmente ninguém vai me pedir para fazer uma escolha tão difícil”, ele diz lá logo no início do ensaio.

Ele podia ser otimista nesse ponto porque vivia em 1938, uma época em que, se você estivesse fora de certos países, podia viver e se expressar com alguma liberdade, e não em 2021, uma época em que não há nenhum país em que você possa viver ou se expressar com liberdade.

– Ah é? Mas aqui nessas colunas você não diz tudo que pensa, sem sofrer consequência nenhuma?

Não, jamais. Não digo tudo que penso nem para uma samambaia, quanto mais numa coluna.

O caso é que, em 1938, Forster podia ter alguma confiança de que ninguém ia pedir a ele que escolhesse entre trair uma amizade ou trair uma causa política. Agora que todos os dias vemos pessoas rompendo publicamente com membros da família por causa de opiniões políticas, podemos ter a mesma confiança?

Veja por exemplo o caso de Patton Oswalt e Dave Chappelle, dois cômicos americanos. Ano passado Dave Chappelle gravou um especial para a Netflix em que fez algumas piadas com transexuais. Vi esse especial. Essas piadas foram tão inteiramente benignas que não provocariam a ira de Hitler, se Hitler fosse transexual. Não estou exagerando. Se essas piadas fossem ouvidas por um conselho formado pelas versões transexuais dos personagens mais irritáveis que já existiram (o deus Júpiter, o Hulk, o Pato Donald, o Diabo da Tasmânia, o Wolverine, o Ren do Ren & Stimpy, e o Moe dos Três Patetas) nenhum deles se irritaria. Mas os transexuais da vida real, ou pelo menos da internet, se irritaram, e pediram a cabeça de Dave Chappelle.

Na noite do Ano Novo, Patton Oswalt, comediante, guia moral de toda uma geração e a voz do ratinho em Ratatouille, postou no seu Instagram uma foto de si mesmo abraçado em Chappelle. “Que bom encontrar um velho amigo”, escreveu ele inocentemente. Foi muito xingado. Quer dizer, imagino que tenha sido muito xingado, embora no Instagram só apareçam comentários reclamando que ele apagou os xingamentos. Podem ter sido só três xingamentos, pelo que dá pra descobrir. Não importa: em menos de 24 horas ele já tinha postado um pedido de desculpas por ter postado a foto com seu amigo Chappelle:

“Lamento, lamento mesmo, não ter pensado em quanta dor isso ia causar. Ou na PROFUNDIDADE (maiúsculas dele) dessa dor. (…) Nós nos conhecemos desde que somos adolescentes… Mas também discordamos 100% sobre direitos dos transexuais. Eu apoio os direitos das pessoas trans – os direitos de qualquer um – de viver em segurança no mundo… Eu sou um aliado LGBTQ…”

Sou só eu, ou essa parte, “discordamos 100% sobre direitos dos transexuais. Eu apoio os direitos das pessoas trans (…) de viver em segurança no mundo…” dá a entender que Chappelle não apoia isso? Talvez só eu e todas as pessoas que se comunicam com palavras, não?

Enfim, o pedido de desculpas provocou, como sempre, mais fúria; a esta altura a única pessoa que deve ficar surpresa quando um pedido de desculpas não dá certo é Patton Oswalt.

Se você trai um amigo por uma causa, você mais cedo ou mais tarde vai trair a causa – porque vai trair qualquer coisa. Se você trai a conexão mais próxima, por que não trairia as mais distantes? Se não é leal a quem você toca, com quem você bebe, com quem você ri, por que seria leal a pessoas sobre as quais você só lê a respeito de vez em quando?

Enfim, quando as turbas vierem me pegar, não quero que meus amigos passem momentos muito angustiantes tendo que decidir se salvam a amizade ou a própria pele. Escrevi o texto abaixo para que os meus amigos usem:

“Fui amigo do Alexandre durante alguns anos (não diria muitos), mas acho que ele escondia de mim os pensamentos mais horríveis que passavam pela sua cabeça. Se não tivesse escondido, eu teria rompido a amizade faz tempo. Meus próprios pensamentos são invariavelmente puros, e juro que falo sempre tudo que penso, na mesma hora em que o pensamento me ocorre. Esses recentes comentários horríveis dele me pegaram de surpresa. Quando estávamos juntos falávamos só sobre o filme As Aventuras de Buckaroo Banzai, e às vezes sobre tipos de queijo. Por favor, podem persegui-lo, mas eu não tenho nada com isso.”

Peço aos meus amigos que salvem o parágrafo acima para usar quando for conveniente.

E.M.Forster termina o ensaio lembrando que Dante colocou Brutus e Cássio no círculo mais baixo do inferno, pelo crime de traírem um amigo, Júlio César, em vez de traírem Roma. Tem algum círculo ainda mais baixo para colocar Patton Oswalt, que traiu um amigo – nem vou dizer para não irritar os transexuais, porque muitos deles nem devem ter sabido da história – mas para não desagradar alguns ativistas transexuais de internet?

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