Cavalos de Troia na terceira via
Em política, toda vez que um candidato à Presidência é traído dentro do próprio partido diz-se que ele foi cristianizado. O termo remete a 1950, quando Cristiano Machado, então candidato do PSD à Presidência, acabou abandonado pela legenda em favor de Getúlio Vargas. Nas eleições deste ano, o fenômeno tem tudo para se repetir. Em especial, na chamada terceira via. Como ainda pairam dúvidas se muitas das candidaturas irão de fato deslanchar, a maioria dos pré-candidatos reúne, dentro de suas agremiações, figuras que já trabalham abertamente contra eles – ou que, nos bastidores, se articulam em favor de seus adversários. Há “cavalos de Troia” em quase todos os partidos. O que abriga o maior número de potenciais desertores é o PSDB, em razão, principalmente, dos sintomas de fragilidade da candidatura de João Doria.
Não é de hoje que o partido cultiva o hábito de cristianizar seus candidatos à Presidência. Em 2002, setores da legenda capitaneados por Tasso Jereissati preferiram apoiar Ciro Gomes, então no PPS, em detrimento de José Serra, cuja candidatura claudicava desde o nascedouro. De lá para cá, o partido jamais conseguiu alcançar a unidade interna em torno de um nome. Em 2018, a notória aliança informal Bolsodoria — João Doria para governador de São Paulo e Bolsonaro para presidente – contribuiu para que o partido amargasse o pior resultado eleitoral de sua história: o candidato Geraldo Alckmin, hoje cotado para vice de Lula, não teve nem 5% dos votos. Agora é Doria quem corre sério risco de ser abandonado à própria sorte pelos tucanos.
Na esteira da divulgação das primeiras pesquisas de opinião deste ano, setores do PSDB passaram a defender internamente que Doria componha como vice na chapa de Sergio Moro, do Podemos, hoje o nome mais bem colocado da terceira via, com cerca de 11% das intenções de voto. Por ora, no entanto, o governador de São Paulo nem cogita a hipótese de abrir mão da candidatura – no PSDB, dada a obstinação de Doria pelo projeto presidencial, muitos duvidam de que, em algum momento, o tucano irá considerar a possibilidade de desistir. De todo modo, as pressões internas se intensificam toda vez que uma nova pesquisa reforça a possível inviabilidade da candidatura.
Deputados federais que buscam a reeleição reconhecem a dificuldade em colar sua imagem à do governador paulista. “Será difícil andar o Brasil levando o nome de Doria. Faz uma boa gestão em São Paulo, administra o estado mais rico, maior PIB do Brasil, mas falta ele se comunicar melhor com boa parcela da população”, diagnostica outro parlamentar tucano, que pediu para não ser identificado por temer represálias. Caso a campanha não ganhe tração até março, quando será aberta a janela partidária para a troca de partido, o risco de debandada é real. Confirmada a cristianização, a tendência é que os dissidentes se dividam entre as candidaturas de Jair Bolsonaro e de Moro. “Há, de fato, um momento de desânimo ideológico com o PSDB”, resume Orlando Faria, ex-secretário de Habitação de São Paulo e presidente do conselho de ética do partido no estado. Para o senador Izalci Lucas, integrante da executiva nacional tucana, “é natural que haja divisão”. “Nunca há unanimidade. O nome já diz: partido. Não é inteiro.”
O PSD de Gilberto Kassab é outro partido que dificilmente marchará “inteiro” nas eleições. Lançado em outubro como pré-candidato à Presidência pela sigla, Rodrigo Pacheco faz até aqui uma campanha acanhadíssima. Seus índices eleitorais também estão muito longe de empolgar: o melhor desempenho é em Minas Gerais, seu estado, com apenas 2% das intenções de voto. No restante do país, seus números oscilam entre o traço e 1%. O desempenho pífio faz com que a legenda privilegie as composições regionais. As maiores defecções estão no Nordeste, sobretudo na Bahia, onde o PSD deve estar com Lula.
O PDT talvez seja o partido que melhor ilustra o contraste entre o projeto nacional e as alianças regionais. Apesar de o pré-candidato do partido, Ciro Gomes, tentar se apresentar como alternativa ao PT, importantes pedetistas de estados como Rio de Janeiro, Maranhão e Sergipe não escondem a preferência por Lula. Recentemente, o principal nome do PDT fluminense, Rodrigo Neves, ex-prefeito de Niterói, publicou uma foto ao lado do petista. “Conversamos sobre a importância de se construir uma ampla aliança regional para derrotar o bolsonarismo e reconstruir o nosso estado a partir das eleições”, disse. Para além do encontro e da manifestação nas redes, Neves tem costurado um robusto palanque para Lula no estado. As negociações são feitas com Washington Quaquá, presidente do partido no Rio e vice-presidente nacional do PT.
O presidente do MDB, Baleia Rossi, adota um discurso semelhante. A sigla, historicamente rachada, não se oporá a abrir palanques para vários candidatos caso a candidatura de Simone Tebet, ao fim e ao cabo, não emplaque. Hoje, o partido está mais próximo de Lula no Nordeste e de Bolsonaro no Centro-Sul do país. “Simone foi lançada com amplo apoio da Executiva Nacional. A característica do MDB é de respeito às decisões tomadas, sem ignorar as divergências e as minorias. As posições individuais sempre serão respeitadas”, afirmou.
A candidatura de Sergio Moro também está exposta às traições. No Podemos, partido ao qual o ex-juiz se filiou no fim de 2021, há grupos consolidados de bolsonaristas e lulistas que não abrem mão das conveniências regionais. Os principais rachas ocorrem na Bahia, em Mato Grosso e em Pernambuco. Em sua seção baiana, o Podemos compõe a base de apoio do governador Rui Costa, do PT. Líder do partido no estado, o deputado João Carlos Bacelar, embora diga concordar com as ideias econômicas e de combate à corrupção defendidas por Moro, já avisou: estará com Lula desde o primeiro turno. “Não vejo uma grande rejeição e nem entusiasmo em relação a Moro. O Podemos ainda não conseguiu apresentar uma proposta”, afirma. Já para José Medeiros, deputado pelo Podemos do Mato Grosso e aliado de Bolsonaro desde a campanha de 2018, é questão de coerência eleitoral manter o apoio ao presidente. “Ficaria muito difícil fazer uma manobra dessas, deixar de apoiar Bolsonaro e mudar. Meu público não entenderia. Senão, quem não se reelege sou eu”, justifica.
“Hoje, o fator principal que fortalece uma candidatura é o desempenho nas pesquisas. Afinal, o que enfraquece a candidatura é a debandada interna ou a debandada interna é consequência do desempenho nas pesquisas? Para mim, está claro que é a segunda opção. Avalio que, na terceira via, a maior possibilidade é o crescimento de Moro como consequência da queda de Bolsonaro”, entende Geraldo Tadeu Monteiro, cientista político e professor da UERJ. Ou seja, se não quiser conviver com cavalos de Troia na campanha, cabe ao candidato, qualquer que seja ele, mostrar que realmente pode chegar lá.
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