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Big brother federal

O governo avança, em ritmo acelerado, com uma tecnologia de inteligência que, sem nenhum tipo de controle externo, permite vigiar os passos de qualquer cidadão – inclusive os seus
21.01.22

Em filmes e seriados, são comuns as cenas de agentes secretos e policiais consultando sistemas ultrassofisticados de inteligência capazes de dizer tudo sobre qualquer pessoa, em múltiplas telas e ao alcance de alguns cliques. É evidente que muitos deles exageram. Mas uma grande parte dos recursos tecnológicos de vigilância e investigação que até havia pouco só eram possíveis na ficção já existe no mundo real. Aqui no Brasil, o Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro está expandindo velozmente um desses sistemas, que é capaz de mapear os passos e obter informações pessoais de milhões de brasileiros. E o mais preocupante: o programa tem sido usado pela área de inteligência do governo – aquela que o presidente anunciou que gostaria de controlar – sem qualquer tipo de fiscalização ou verificação externa.

Batizado de Córtex, em alusão à camada externa do cérebro humano responsável por receber e processar os impulsos das áreas sensíveis do organismo, o sistema foi lançado experimentalmente em 2018, mas passou a ganhar mais atenção após a posse de Jair Bolsonaro, no ano seguinte. A ideia, no papel, é ótima: interconectar câmeras de segurança instaladas em vias públicas – sejam ruas, avenidas, viadutos e túneis de cidades, sejam rodovias que cortam o país – e, a partir de recursos de inteligência artificial que fazem a leitura automática de placas, facilitar a localização de veículos roubados e criminosos foragidos ou em rota de fuga. O problema é que, com o passar do tempo, o sistema se transformou em um gigantesco repositório de informações sensíveis sobre todos os cidadãos, com dados de pelo menos 160 diferentes órgãos públicos, e está sendo utilizado de maneira pouco transparente, longe do radar de instituições que têm a atribuição legal de realizar o controle desse tipo de atividade, como o Ministério Público.

Há dois anos, o Córtex recebia imagens de 6 mil câmeras espalhadas pelo país. Hoje, a central do programa, que funciona dentro da Seopi, a Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça, já recebe imagens de pelo menos 26 mil câmeras, incluindo as de radares de velocidade. Para além dos arquivos de vídeo e das imagens placas, que por meio de uma tecnologia conhecida pelo acrônimo OCR são transformadas em dados pesquisáveis, os computadores do sistema congregam dados como a base de CPFs da Receita Federal, que incluei informações pessoais de todos os brasileiros registrados, e outras bases de dados importantes, como a Rais, a Relação Anual de Informações Sociais do Ministério da Economia, com dados trabalhistas fornecidos pelas empresas ao governo, incluindo salários. Até mesmo dados de companhias aéreas já são integrados ao sistema, de modo que é possível saber em quais datas e para onde um cidadão viajou em um determinado período. Hoje, o Córtex monitora nada menos que 360 mil alvos, segundo o próprio Ministério da Justiça informou a Crusoé, em resposta a um pedido baseado na Lei de Acesso à Informação.

A regulamentação do programa é repleta de zonas cinzentas. Tanto é assim que, embora o Córtex tenha sido planejado para servir à área de segurança pública, as informações podem ser tranquilamente acessadas até por oficiais a serviço da Abin, o serviço secreto do governo. À frente do programa, atualmente, estão alguns dos homens de confiança escolhidos a dedo pelo presidente Jair Bolsonaro para cuidar da área federal de inteligência, depois da famosa reunião ministerial do início de 2020, em que ele disse, sem meias palavras, que as agências oficiais de informação não estavam funcionando de acordo com suas necessidades pessoais.

Na hierarquia do Ministério da Justiça, logo abaixo do ministro Anderson Torres, delegado da Polícia Federal conhecido por seu alinhamento político com o clã presidencial, o Córtex está sob a guarda de outro delegado do círculo íntimo dos Bolsonaro, Alfredo Carrijo, que trabalhou na segurança pessoal do presidente da República entre as eleições de 2018 e a posse. Carrijo é o atual secretário da Seopi, dentro da qual o programa foi desenvolvido e está sendo amplificado. A secretaria é a mesma que, no ano passado, produziu dossiês contra funcionários públicos considerados opositores do governo.

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRBolsonaro, com Anderson Torres: jogo afinado
Na prática, a partir de um número de CPF ou de um simples nome, investigadores com uma senha do sistema podem descobrir por onde uma pessoa circulou, desde que se saiba o carro usado nos deslocamentos, e reconstituir seus passos com precisão – e com os registros de imagem. Também conseguem acessar os dados pessoais do alvo. Tudo isso a partir dos computadores interligados diretamente ao sistema, instalados nas bases de operação, ou até remotamente, por meio de aparelhos de telefone celular. Caso queiram saber em tempo real o trajeto de alguém que esteja sob vigilância, eles conseguem ativar no sistema uma ferramenta que envia avisos a cada vez que o carro utilizado passa por alguma das câmeras conectadas ao programa. É possível, ainda, fazer pesquisas sobre o histórico de deslocamentos. O Córtex armazena todas as informações captadas por um período de dez anos. Ou seja: se no próximo mês quiserem descobrir por onde um determinado alvo andou em novembro do ano passado, isso é perfeitamente possível.

O programa nasceu de uma experiência da Polícia Rodoviária Federal, o Alerta Brasil, sistema similar por meio do qual os agentes da corporação podiam consultar dados de veículos roubados ou envolvidos em ilícitos cujas placas eram captadas por um número bem menor de câmeras integradas. Em 2019, ainda sob o comando de Sergio Moro, o ministério incorporou o Alerta Brasil ao novo programa, o Córtex, que ainda engatinhava. Nos últimos tempos, com a pasta sob nova administração, o sistema decolou. E ainda está em franca expansão.

Para ampliar a base de dados, incluindo o número de câmeras que formam esse Big Brother da vida real, o ministério tem feito convênios com governos estaduais, que ajudam a abastecer os computadores com informações e imagens. Em retribuição, as forças de segurança dos estados também recebem senhas restritas para utilizar o programa. Hoje, para além dos oficiais dos órgãos federais habilitados, há integrantes de polícias militares e civis e até guardas municipais com autorização para usar o Córtex – obviamente, há diferentes camadas de acesso aos dados, que dependem do nível hierárquico e da corporação de cada usuário.

Nas últimas semanas, Crusoé conversou com investigadores acostumados a explorar as ferramentas do sistema. Ao mesmo tempo que defendem a utilidade do Córtex para a captura de bandidos, eles admitem, sob reserva, que a plataforma permite a pesquisa de informações sobre qualquer pessoa, sem nenhum tipo de restrição ou justificativa para a busca. Há relatos ilustrativos do quão vulnerável é o sistema – e do quanto ele pode ser usado indevidamente, ao bel-prazer de seus operadores, para escarafunchar a vida de quem não deveria ser alvo. Consultas são feitas sem qualquer relação com investigações em andamento. Em uma das situações relatadas à reportagem, policiais recorreram ao Córtex para buscar informações sobre um colega de trabalho que seriam impossíveis de ser obtidas de outra maneira. Ou seja: é uma situação clara de uso impróprio. Especialistas chamam atenção para o risco de o programa ser utilizado para fins escusos, inclusive políticos, já que é possível rastrear e obter informações sobre qualquer pessoa, indiscriminadamente.

ReproduçãoReproduçãoAté imagens de radares são integradas ao sistema; placas ficam registradas
“O Córtex é uma das inovações mais enigmáticas dentro desse conjunto de softwares e plataformas usadas dentro do Ministério da Justiça. Isso está relacionado a movimentações mais amplas, de outros sistemas implementados, de reconhecimento biométrico e monitoramento de contra-inteligência, uma tendência muito preocupante de um processo de automação e unificação de base dados dentro do ministério, combinando atividades de segurança pública, investigação criminal e inteligência”, afirma Rafael Zanatta, diretor do Data Privacy Brasil, entidade que há dois anos pesquisa a relação de novas tecnologias com autoritarismo no país.

“Não há controle nenhum de quem acessa e os motivos pelos quais irá acessar. Isso é o mais grave. Com a quantidade de dados ofertados, poderá abrir brecha para perseguição de opositores e uso para fins pessoais. O próprio crime organizado pode ter acesso à ferramenta. Basta que haja um policial corrupto com acesso. A falta de um sistema para prevenir isso nos deixa bastante expostos”, acrescenta Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil, que toca um projeto destinado a monitorar o uso de algoritmos e de ferramentas de inteligência artificial pelo governo.

Nos últimos tempos, o Ministério da Justiça vem investindo em recursos de inteligência com potencial de expor a privacidade dos cidadãos. Em novembro, o Tribunal de Contas da União teve de suspender uma licitação para a compra de um sistema de espionagem cibernética pela pasta, o Harpia. A decisão foi em resposta a uma mobilização que envolveu 35 organizações da sociedade civil para impedir a compra, sob o argumento de que o sistema poderia dar acesso aos telefones celulares e às interações em redes sociais de qualquer pessoa, sem autorização legal. “Tem que haver suspeita fundada para averiguar informação pessoal de alguém. Isso deveria ser obrigatório. Se houvesse a obrigação de prestação de contas da atividade policial, seria possível fazer o controle e até a revisão judicial”, diz Manoel Galdino.

Cena do seriado americano ‘Designated Survivor’, em que agentes usam um sistema capaz de descobrir quase tudo sobre todo mundo
No caso do Córtex, desde a sua criação, a plataforma funcionou na maior parte do tempo sem nenhum tipo de regulamentação. Até que, em 29 de setembro do ano passado, o ministro Anderson Torres assinou uma portaria estabelecendo o que seriam – ou deveriam ser – as regras de utilização. O texto, genérico, define o programa como uma ferramenta destinada a monitorar e buscar informações sobre “alvos móveis”. O chamado “cercamento eletrônico”, diz o expediente oficial, serve para que policiais monitorem “alvos de interesse de segurança pública” e recebam alertas de movimentações desses alvos “com indicativo de criminalidade”. A indefinição conceitual do que pode ser considerado um “alvo móvel”, porém, abre caminho para o uso indevido do programa – inclusive para ações de arapongagem contra quem é considerado adversário do governo –, em razão da “amplitude semântica do termo ‘segurança pública’ no Brasil”, avalia Zanatta.

“É muito amplo o conceito de ‘alvo móvel’. Se estamos falando de 160 bases de dados, é uma quantidade brutal de dados que oferece uma possibilidade de uso tão ampla que é difícil qualquer tipo de controle estrito da atividade. Isso é muito problemático”, afirma ainda o pesquisador. A portaria assinada por Torres não diz claramente quem pode acessar o sistema. “É muito fácil vislumbrar, por exemplo, um policial que quer ver se a namorada está sendo infiel, acessar a ferramenta. Não há nada na instrução normativa que mostre que esse tipo de acesso será identificado e coibido. É grave uma lacuna desse tipo numa ferramenta que permite acesso de policiais a todos os brasileiros em potencial”, exemplifica Galdino.

Em nota enviada a Crusoé, o Ministério da Justiça foi ainda mais genérico ao responder a perguntas sobre o funcionamento do programa. O texto diz que o Córtex é usado “para cadastro de indicadores de produtividade das ações policiais, operações, modelagem de atividades e ações que permitem o acompanhamento de operações em tempo real”. Afirma ainda que “por ser um sistema de inteligência, ele segue a normatização do Sistema Brasileiro de Inteligência, o Sisbin, e os órgãos que fornecem informações ao sistema são os integrantes do Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP”. Eis aí outro ponto nebuloso que contribuiu ainda mais para que o Córtex se situe em uma zona cinzenta, livre de fiscalização externa. Como ferramenta de uso das polícias, o programa deveria estar submetido à lupa do Ministério Público, que por força da Constituição tem a atribuição de exercer o chamado “controle externo da atividade policial”. Como ferramenta de inteligência, teria de estar sob a fiscalização da CCAI, a Comissão de Controle da Atividade de Inteligência, do Congresso Nacional. Não se tem notícia, porém, de que ele seja fiscalizado em nenhuma das duas frentes. Pelo contrário. Hoje, o Córtex mal é conhecido por quem deveria monitorá-lo de perto.

SESP-PRSESP-PRO delegado Alfredo Carrijo, que trabalhou na segurança de Bolsonaro, coordena o projeto
“Quais são as normas para uso interno? Não se pode mexericar a vida do outro. Tem que ter um procedimento aberto se a informação for usada como prova. Sistemas como esse existem para prevenir crimes e obter provas de ilícitos, mas tem que justificar o porquê. O problema não é o sistema, mas as regras para a operação dele e as regras internas de acesso aos dados”, observa a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen. “O governo Bolsonaro tenta introduzir um mecanismo paralelo de monitoramento da sociedade. Esse programa está alinhado à perspectiva de estado policial, de estrutura paralela do estado que tudo pretende ver, monitorar e controlar. Isso viola a democracia. Toda ação pública do estado democrático de direito tem que ter previsão legal e tem que ter algum tipo de controle público”, afirma o deputado federal Orlando Silva, do PCdoB de São Paulo, integrante da CCAI. O parlamentar diz não ter conhecimento de qualquer discussão entre os congressistas da comissão a respeito do sistema.

Programas comparáveis ao Córtex são usados em países como Alemanha e Estados Unidos para inteligência e análise preventiva de ações de terrorismo. Em 2008, a corte constitucional alemã determinou que qualquer monitoramento de cidadãos seja realizado apenas se houver base legal, autorização judicial e identificação de perigo concreto à vida ou à segurança coletiva. Por aqui, ao menos até o momento, não há nenhuma ação similar das instituições capaz de frear o ímpeto dos arapongas bolsonaristas.

A escalada de investimentos do Ministério da Justiça em plataformas que, pela absoluta falta de controle, põem em risco a privacidade dos cidadãos coincide com o interesse declarado de Jair Bolsonaro de colocar os serviços oficiais de inteligência para funcionar de acordo com as suas vontades. Na rumorosa reunião ministerial de abril de 2020, a mesma que decretou a saída do então ministro Sergio Moro do governo, o presidente expôs claramente sua obsessão por expandir e controlar o sistema de inteligência estatal. Àquela altura, ele classificou o trabalho dos órgãos oficiais como “uma vergonha” e, referindo-se aos seus contatos na área, afirmou que sua rede de informações particular era bem mais efetiva. A partir de então, Bolsonaro cumpriu a promessa de instalar pessoas de sua estrita confiança nos mais diversos órgãos que atuam de alguma maneira no setor, como o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e a própria Abin – a nova gestão da agência, por sinal, chegou a atuar, inclusive, na elaboração de relatórios destinados a orientar a defesa de Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente, nas investigações sobre desvios em seu antigo gabinete na Assembleia do Rio de Janeiro. A dinâmica do Córtex não é diferente. E é preciso enfatizar que os presidentes passam, mas o programa ficará à disposição dos próximos presidentes.

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