MarioSabino

O homem tem que ser durão

28.01.22

Acordei com a notícia de que, num documentário recém-lançado sobre Nara Leão, para a Globoplay, Chico Buarque afirma que não cantará mais Com Açúcar, Com Afeto, composta em 1967. A decisão foi tomada porque a música seria “machista”. De acordo com Chico Buarque, “Ela (Nara) me pediu a música, ele me encomendou essa música, ela falou ‘Eu quero agora uma música de mulher sofredora’. E deu exemplos de canções de Assis Valente, Ary Barroso, aqueles sambas da antiga, onde os maridos saíam para a gandaia e as mulheres ficavam em casa sofrendo, tipo Amélia, aquela coisa. Ela encomendou e eu fiz”. 

E Chico Buarque completa:

“Eu gostei de fazer (a música). A gente não tinha esse problema. É justo que haja, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que, naquela época, não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar Com Açúcar, com Afeto mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente.”

Quando comecei a trabalhar na Veja, Chico Buarque só podia ser chamado depreciativamente de “sambista” na revista. Ordem do diretor de esquerda. A esquerda era muito dividida na época. Hoje, a esquerda parece estar mais unida, efeito da prisão de Lula, e quem se referia a Chico Buarque como “sambista”, com desprezo, agora indica os seus livros como o suprassumo da literatura. Eu não me lembro se li um ou dois livros de Chico Buarque, só sei que não gostei e esculhambei. Ele também não gostou do meu primeiro romance e esculhambou. Eu li um ou dois livros de Chico Buarque por obrigação profissional, tinha de resenhar; ele leu o meu primeiro romance, ou parte dele, sem ter obrigação nenhuma. Fiquei envaidecido. Ser esculhambado por Chico Buarque não é para qualquer um. Também fui esculhambado por Paulo Coelho, a quem igualmente esculhambei, mas aí é caso mesmo de ter vergonha.

Apesar de não gostar dos arremedos de nouveau roman do Chico Buarque escritor, admiro as suas letras de música, embora faça uns quarenta anos que não o ouça. Prefiro as românticas às engajadas. Quando era criança, adorava ouvir A Banda. Compôs a trilha sonora da minha infância, juntamente com Aquele Abraço, de Gilberto Gil, e Madalena, de Ivan Lins, na voz de Elis Regina. Não foram bons tempos para mim, mas a trilha era bacana.

Porque gosto de letras de Chico Buarque, fiquei penalizado com a decisão do compositor de não cantar mais Com Açúcar, Com Afeto. Ele tem o direito de cantar o que quiser, mas o problema não é esse. O problema é que a sua decisão acaba interditando outros artistas de cantá-la. Afinal de contas, se o criador acha a música tão danosa assim, a ponto de tirá-la do seu repertório, quem se atreveria a incluí-la num disco ou num show? A autocensura tem alcance geral. O dado curioso é que Com Açúcar, Com Afeto, que tem como tema uma mulher submissa a um cafajeste, sempre foi interpretada por todo mundo que conheço — professores de literatura, inclusive — como uma linda crítica oblíqua ao machismo. Pela fala de Chico Buarque no documentário, depreende-se, então, que ele não estava criticando a submissão feminina, quando compôs a canção, mas fazendo uma apologia dela.

Ainda assim, a intenção original de um artista não pode ser encarada como perspectiva única, absoluta. Uma obra de arte, em qualquer campo, sobrevive por meio das diferentes visões que vão se sobrepondo a seu respeito. A beleza da arte é esta: a de não ser propriedade do artista como significado, mas a de pertencer a toda a humanidade ao ser ressignificada, seja no plano estético, social ou cultural. O que o feminismo fez com a música de Chico Buarque, e ele aceitou passivamente, não foi ressignificá-la, mas cancelar os seus ressignificados e jogá-la na lata de lixo como “arte degenerada. A expressão remete aos totalitarismos nazista e socialista — mais especificamente ao título da exposição que Adolf Hitler ordenou que fosse organizada, em 1937, em Munique, com obras de arte moderna que o seu regime condenava. A arte moderna era exemplo de “degeneração racial” para os nazistas e, para os socialistas, atentava contra a a realidade da “pureza proletária”. Sim, estou comparando.

Na semana passada, escrevi contra a censura que se queria fazer na Folha dos textos de Antonio Risério contra o identitarismo racial; nesta semana, estou aqui falando da autocensura de Chico Buarque, revelada num documentário e motivada pelo fanatismo feminista. Tempos difíceis. Como diz Leila Diniz, o homem tem quer ser durão. E eu vou-me embora, vou ler o meu Pasquim.

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