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A xerife que enquadrou Bolsonaro

Quem é a delegada federal Denisse Ribeiro, responsável pelo inquérito que acusa o presidente da República de cometer crime em pleno exercício do mandato
04.02.22

Denisse Ribeiro era delegada da Polícia Federal havia apenas um ano quando foi posta no olho do furacão pela primeira vez. Assumiu o comando de uma investigação que tinha no centro do alvo o então governador de Minas Gerais, o petista Fernando Pimentel. O ano era 2015. Pimentel era investigado por suposta participação em um esquema de corrupção envolvendo liberação de empréstimos do BNDES em troca de propina, suspeitas da época em que era ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do governo Dilma Rousseff, sua amiga dileta. O caso expôs também os negócios obscuros de um empresário de Brasília que havia assumido despesas extra-oficiais e pouco ortodoxas da campanha de Dilma. Nessa mesma investigação, Denisse assinou a primeira colaboração premiada feita pela Polícia Federal como parte de um procedimento em tramitação nos tribunais superiores de Brasília.

Sete anos depois, a delegada de 41 anos, que já investigou petistas graúdos, prendeu uma quadrilha de tráfico internacional de mulheres e desarticulou uma organização criminosa de extração ilegal de ouro, passa por uma nova prova de fogo ao liderar uma série de apurações que miram o atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Na semana passada, Denisse se tornou a primeira delegada a apontar que um presidente cometeu um crime em pleno exercício do cargo. Trata-se de um feito que se torna ainda mais relevante quando se leva em conta o atual cenário de interferências do Palácio do Planalto na PF e o desestímulo às investigações que alcançam poderosos.

No caso, Denisse Ribeiro concluiu que Bolsonaro violou o sigilo de um inquérito que apurava um ataque cibernético ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral nas eleições de 2018. Em uma live em agosto do ano passado, o presidente exibiu partes do inquérito para reforçar seu discurso, sem provas, de que o pleito daquele ano – o mesmo em que ele se elegeu – teria sido fraudado e de que as urnas eletrônicas apresentam vulnerabilidades. A delegada concluiu que Bolsonaro agiu de forma “direta, voluntária e consciente”, ao divulgar peças da investigação que corria em segredo de Justiça. Para ela, o presidente atuou em favor da “difusão de informações sabidamente falsas, com repercussões danosas para a administração pública”. O relatório final com o enquadramento criminal da conduta de Bolsonaro foi enviado nesta semana ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. O crime de vazamento de dados sigilosos, previsto no artigo 325 do Código Penal, prevê pena de dois a seis anos de prisão, mais multa.

A convicção da delegada foi formada a partir da coleta de provas materiais e de depoimentos. Como parte dessa mesma investigação, o próprio Bolsonaro deveria ter sido interrogado, por ordem de Moraes, mas não compareceu no dia e hora marcados – o depoimento dele estava agendado para sexta-feira da semana passada. Na condição de funcionário público, o presidente não poderia ter revelado o conteúdo de uma investigação policial que deveria permanecer em segredo até o fim dos trabalhos. Ele só não foi formalmente indiciado por ter foro privilegiado. O caso agora passará pela análise do procurador-geral da República, Augusto Aras, que decidirá se o denuncia perante o STF.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBolsonaro não apareceu para depor, mas foi enquadrado mesmo assim
As recentes represálias da cúpula da PF a delegados que tocavam investigações sensíveis para o Planalto e seus aliados tornam o feito de Denisse Ribeiro ainda mais emblemático. Colegas de polícia dizem que uma das características mais marcantes da delegada é a sua capacidade de raciocinar com tranquilidade em momentos de alta tensão. Ela é descrita como uma profissional centrada, técnica e discreta, capaz de manter a postura inabalável mesmo quando o alvo de suas investigações é ninguém menos que o presidente da República. “Isso é vocação. Não há ambiente favorável, mas ela está fazendo o que tem que fazer”, diz uma delegada que, assim como outros policiais ouvidos por Crusoé para esta reportagem, aceitou falar desde que sua identidade não fosse revelada.

Embora não conte com a simpatia nem o incentivo da atual direção-geral da PF, Denisse está entre os pouquíssimos integrantes da corporação que permanecem intocáveis à frente de apurações relacionadas ao topo do governo. Atualmente, ela trabalha em investigações em andamento no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral que têm Bolsonaro e seu estado-maior como alvos. No inquérito das fake news, presidido por Alexandre de Moraes, executa as demandas encaminhadas pelo STF. Também recebe pedidos de diligências do inquérito administrativo aberto pela Corregedoria-Geral Eleitoral do TSE, para apurar suspeitas de supostas fraudes nas urnas – um outro caso capaz de causar embaraços ao presidente.

Entre os casos que correm no STF, a delegada está encarregada do inquérito que apura a existência de uma organização criminosa empenhada em atacar a democracia por meio da internet. Nessa investigação, ela chegou a pedir autorização ao STF para realizar buscas na Secretaria de Comunicação da Presidência da República. A PGR de Augusto Aras foi contra. A diligência nunca foi possível e Denisse quase perdeu o caso. Quando soube do pedido, o então diretor-geral da PF, Rolando de Souza, tentou retirá-la do caso, mas a delegada seguiu por decisão de Alexandre de Moraes. “Ela tem tido coragem que poucos têm. É muito competente, séria e técnica, o que hoje em dia é pecado”, diz outro delegado.

Agência SenadoAgência SenadoO petista Pimentel, ex-ministro de Dilma e ex-governador de Minas: alvo de Denisse na Operação Acrônimo
A conduta de Denisse conquistou a confiança de Moraes, o que tem ajudado a garantir sua permanência nas investigações sensíveis. “Ela teve mérito, coragem racionalizada e jogo de cintura. O inquérito é do Supremo, presidido pelo STF, mas quem faz a investigação é o delegado. Ela conduz a investigação sem melindrar o poder do ministro. É séria e cautelosa. Não cede a pedidos com interesse político. Infelizmente, estamos num momento em que as pessoas cedem por muito pouco. E isso despertou respeito tanto do Alexandre quanto do Barroso”, diz uma colega, referindo-se a Moraes e a Luís Roberto Barroso, presidente do TSE.

Denisse trabalha de dez a doze horas por dia. Até meados de fevereiro, ela pretende ter em mãos pelo menos os relatórios parciais dos inquéritos sob sua responsabilidade que correm no Supremo. Como conduta geral, para evitar tratamento diferente a depender dos alvos de cada procedimento, ela costuma repetir uma frase como mantra: “Só a coerência salva. Assim, não tem como ser contestada”. Discreta, a delegada não tem perfil nas redes sociais, é avessa a fotos e não dá entrevistas. Paulista de Marília, filha de uma policial civil e um policial militar, ela se tornou delegada quando já tinha 16 anos de experiência em segurança pública e investigação. Antes, foi PM em São Paulo e agente da própria PF, período em que integrou o grupo de elite da corporação, dominado por homens, e atuou na área de inteligência.

A passagem pelo Comando de Operações Táticas, o COT, unidade de elite da PF que reúne policiais treinados para atuar em casos de narcotráfico internacional e terrorismo, foi um ponto fora da curva. Àquela altura, nenhuma mulher havia integrado o grupo. Colegas da época lembram que ela cumpria as tarefas com sorriso no rosto e contando piadas. Na formatura, em 2006, raspou o cabelo, como todos os colegas homens. Depois da experiência no COT, Denisse atuou como agente na divisão antiterrorismo, uma das seções da Diretoria de Inteligência da PF, e começou a se preparar para ser delegada. A primeira lotação no novo cargo foi em Roraima. De cara, já caiu em um caso complexo. Coordenou uma das maiores operações realizadas no norte do país contra o contrabando de ouro e pedras preciosas. Tinha sob seu comando uma equipe de 150 policiais. Na mesma época, investigou uma quadrilha que trazia mulheres venezuelanas e guianenses para exploração sexual no Brasil.

Nelson Jr SCO/STFNelson Jr SCO/STFAlexandre de Moraes gosta do trabalho da delegada
Logo veio o convite para atuar em Brasília, onde correm investigações que fazem parte dos sonhos de qualquer delegado. Bastou uma ligação telefônica e ela topou assumir a chefia do núcleo de inteligência da superintendência local da PF. Foi quando assumiu a operação que tinha o petista Fernando Pimentel entre os alvos. Mais tarde, em 2018, mudou-se para o órgão central, onde despacha a cúpula da corporação. Foi chamada para uma posição na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado. Hoje, está novamente na superintendência do DF, para onde quis voltar após o estresse com o então diretor Rolando de Souza, em razão do inquérito das milícias digitais.

“A sociedade é machista e a polícia, muito mais. Não é fácil para ela sobreviver nesse ambiente e ela paga o preço por isso. A postura da Denisse desperta antipatia, mas ela se mantém firme e é coerente. Quando querem criticar, não conseguem fazer isso tecnicamente”, afirma um delegado. “Ela é uma mulher de 1,60m que tem uma força mental muito grande e a capacidade de dizer em um relatório que o presidente da República cometeu crime. Em um ambiente complicado e conservador, ela está conseguindo ser independente e autônoma. Chamá-la de linha-dura não é um elogio. Ela é técnica e trabalhadora”, define um agente. “A Denisse é assertiva nos autos. Faz valer seu ponto de vista, mas não é de brigar. É fácil de conversar, aberta ao diálogo. Se você falar que dois mais dois são cinco, ela não vai rir da sua cara, vai querer entender por que acha que é cinco. Isso é postura de investigador. Está aberta a compreender o que aconteceu”, diz um ex-chefe.

Acusar de crime um presidente da República no exercício do mandato é algo raro. Na história recente, apenas Michel Temer passou por isso, no chamado inquérito dos portos, mas em razão de suspeitas anteriores à posse. Antes, era algo impensável. No escândalo que levou ao impeachment de Collor, por exemplo, a Polícia Federal chegou perto do então presidente, mas ele não foi mencionado no resultado final da investigação, que, genericamente, falou apenas em “evidências de crimes envolvendo autoridades com foro privilegiado”. Anos depois, Lula também passou incólume pelas investigações do mensalão. Para além de enquadrar um presidente, o inquérito concluído dias atrás por Denisse Ribeiro tem outra peculiaridade: aponta um crime que o ocupante do Planalto teria cometido quando já estava na cadeira presidencial. Bolsonaro teve o azar de cair nas mãos de uma xerife que não aceita pressão.

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