MarioSabino

Monica Vitti

04.02.22

Sei que, para alguns leitores, talvez até a maior parte deles, eu devesse falar de eleição presidencial, corrupção, acidente no metrô de São Paulo (agora também querem culpar a Lava Jato por isso) ou o assassinato bárbaro do rapaz congolês no Rio de Janeiro. Mas peço permissão à realidade brasileira, o meu assunto de todos os dias, para falar de Monica Vitti, a atriz que morreu nesta semana, aos 90 anos. Recém-saído da adolescência, eu era vidrado nela. Troquei a americana Lauren Bacall pela italiana Monica Vitti. Ou melhor, pela romana Monica Vitti.

Ela era de uma beleza nada óbvia, a começar pelo nariz proeminente, do tipo romano, justamente. Não que não se incomodasse com isso: evitava que a filmassem de perfil, por exemplo. Mas nunca pensou, e se pensou não o fez, em submeter-se a uma plástica (o máximo que fez foi arrebitar o nariz com o dedo, diante do espelho, numa cena de L’Avventura). Eu não seria vidrado em Monica Vitti, se ela não tivesse um nariz proeminente. Ele me fascinava, porque, além de dar força expressiva ao seu rosto, era como uma ponta de lança. Com seu nariz, Monica Vitti parecia romper a incomunicabilidade, matéria-prima de certa miséria existencial e maior assunto dos filmes que fez com o diretor Michelangelo Antonioni, de quem foi mulher. Era um rompimento efêmero, durava o tempo de uma sessão de cinema, mas era lindo assisti-la arremetendo o nariz contra um vazio que eu já pressentia na juventude. Também era ligeiramente estrábica, o que lhe conferia um olhar que me seduzia e que Michelangelo Antonioni descreveu da seguinte forma: “É o que há de mais estranho nela. Os seus olhos não se detêm em nenhum objeto, mas fixam segredos distantes. É o olhar de uma pessoa que está procurando onde terminar o seu voo e não consegue encontrá-lo”.

Michelangelo Antonioni ainda disse que Monica Vitti tinha “o rosto da angústia”. E, como publicou o jornal Le Monde, esse rosto lhe permitia “encarnar a passionária das neuroses, com a misteriosa graça das mulheres emancipadas que parecem aleijadas de um amor perdido”. Vanessa Redgrave, quando fez Blow-Up, do diretor italiano, disse ter querido “ser como Monica Vitti”. Não conseguiu.

Depois de se separar de Michelangelo Antonioni, ela adentrou a comédia. Diziam que ser divertida era a sua verdadeira natureza, mas desconfio de que era apenas um papel que interpretava para si própria. Afinal de contas, ela mesma afirmou que quis ser atriz “para não morrer”, para “reinventar, apagar e reconstruir tudo, rir comigo mesma” — e que interpretar era a sua maneira de existir: “Para mim, quando a representação chega ao fim, a realidade termina”. Monica Vitti decidiu ser atriz para fingir continuamente ser outra pessoa. Entre as representações, portanto, ser divertida talvez fosse a única maneira de ela existir.

Em 1962, ano em que nasci, Monica Vitti dizia a Alain Delon, em L’Eclisse, de Michelangelo Antonioni: “Por que será que fazemos tantas perguntas? Acho que não é preciso conhecer para amar. E talvez não seja preciso amar.” E também: “Eu gostaria de não te amar… ou de te amar muito melhor”. Eu não posso imaginar essas palavras na boca de outra atriz que não fosse ela, que não tivesse o nariz ela. Nem Michelangelo Antonioni, possivelmente.

Ser ou não ser; amar, não amar ou amar muito melhor. Obrigado, Monica, por não ter existido com tanta intensidade.

Monica Vitti (1931-2022)

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