Divulgação/AMBEvento do Ieja, o instituto dirigido por uma assessora de Lewandowski e um condenado por estelionato

Associação perigosa

No movimentado mercado dos institutos que promovem convescotes com a cúpula do Judiciário, surge mais um exemplo da mistura indevida: uma entidade dirigida por um condenado por estelionato já reuniu até ministros da Supremo Corte
11.02.22

Atrair ministros de tribunais superiores e autoridades do primeiro escalão do governo federal para eventos corporativos e acadêmicos é garantia de prestígio nos corredores do poder. Magistrados de cortes como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça costumam ser seletivos com convites para palestras e conferências e privilegiam conferências de instituições renomadas ou organizadas por personalidades influentes. O IDP, instituto ligado ao ministro Gilmar Mendes, do STF, por exemplo, cresceu graças à participação sistemática de figurões em suas palestras e no seu corpo docente. Seguindo a mesma lógica, uma entidade criada há pouco mais de dois anos em Brasília vem ganhando projeção. O Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados, o Ieja, é apresentado como um think tank para o debate e o ensino de práticas jurídicas.

Criada por Fabiane Oliveira, uma influente funcionária do Supremo, e por seu companheiro, o empresário Renato Luís de Mello, a entidade já fez eventos com a presença de vários ministros do STF, do STJ, do Superior Tribunal Militar, além de parlamentares, lideranças partidárias e integrantes da cúpula do governo. Os seminários quase sempre têm o patrocínio e a presença de representantes de grandes empresas, bancos públicos e federações representativas do setor produtivo – todos, claro, interessados em manter boas relações com quem decide em Brasília.

Um naco dos bastidores do instituto acabou descoberto casualmente pelo Ministério Público Federal em uma investigação sobre um esquema de corrupção e tráfico de influência na área da saúde. Em uma quebra de sigilo, Renato Mello, o sócio-administrador do Ieja, aparece em conversas com Marconny Faria, um lobista que ganhou fama durante a CPI da Covid. Marconny se aproximou de Mello em busca de ajuda em processos judiciais e na tramitação de indicações para tribunais. Como a relação é sempre de mão dupla, o dirigente do instituto também surge pedindo apoio para construir boas relações com o governo – como mostrou a CPI, Marconny é próximo de filhos de Jair Bolsonaro, de uma advogada do presidente e de parlamentares com trânsito no Planalto.

As trocas de mensagem chamam a atenção para outro aspecto nebuloso. O mesmo Renato Mello, sócio do instituto que têm conseguido reunir em seus eventos a nata do Poder Judiciário, foi condenado a sete anos de reclusão por estelionato e falsidade ideológica e é alvo de ações do Ministério Público Federal. Em paralelo à atuação na entidade, ele é ligado a um emaranhado de empresas com capital social milionário, que vão do ramo de notícias e óticas ao aluguel de aeronaves e clínicas médicas subcontratadas pelo SUS.

Pedro França/Agência SenadoPedro França/Agência SenadoO lobista Marconny Faria procurou o sócio do Ieja em busca de influência em tribunais
A promoção de palestras, seminários e eventos, muitos deles no exterior, com a presença de ministros de tribunais superiores, virou um mercado rentável e bastante concorrido. Empresas com causas milionárias estão sempre dispostas a pagar polpudas cotas de patrocínio para colocar seus executivos em eventos sociais ao lado de ministros, desembargadores e juízes. Como Crusoé já mostrou incontáveis vezes, há casos de magistrados que viajam com despesas pagas, com direito a levar acompanhantes, em tours jurídicos que facilmente descambam para o turismo em cidades atrativas, como Lisboa ou Nova York.

Obviamente, integrantes do Judiciário não são obrigados a ficar encastelados e isolados da sociedade, mas, nos últimos anos, os potenciais conflitos de interesse ficaram patentes, com convescotes reunindo à mesma mesa grandes empresários e magistrados responsáveis por processos de seu interesse. “Isso é muito sério e preocupante. Os integrantes do Judiciário têm que tomar muito cuidado para que suas decisões não sejam depois vistas como parciais. É delicado ter uma situação em que aquele que julga de alguma forma tenha laços com aquele que é julgado”, afirma a diretora do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais e professora doutora da Universidade de São Paulo, Maria Tereza Sadek, uma das principais pesquisadoras sobre o Poder Judiciário do país.

Renato Mello, o sócio do Ieja, começou sua carreira empresarial no Rio Grande do Sul, onde entrou no alvo do MPF por supostas irregularidades em contratos de clínicas médicas com o poder público. Há pouco mais de três anos, já em Brasília, começou um relacionamento com Fabiane Pereira de Oliveira, uma servidora concursada do Supremo Tribunal Federal com prestígio na corte. Hoje assessora no gabinete de Ricardo Lewandowski, Fabiane atuou como secretária-geral do STF e chefiou a equipe de assessores que trabalhou no processo de impeachment de Dilma Rousseff no Senado. Foi em agosto de 2019 que o casal criou o Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados, com sede em uma confortável casa no Lago Sul, área nobre de Brasília. De lá para cá, a entidade só cresceu. Além dos debates sobre temas atuais com a presença de estrelas da República e grandes patrocinadores, o Ieja lançou uma revista chamada Data Venia, que faz perfis elogiosos de personalidades dos mundos político e jurídico e publica artigos sobre temas atuais.

O instituto também oferece cursos de atualização e tem em seu quadro de professores o ministro do STJ Antônio Saldanha Palheiro, o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça Luiz Fernando Bandeira de Mello, advogados renomados e a própria Fabiane Oliveira. Desde 2019, quando foi criado, o Ieja realizou três edições de um evento chamado “STF em Ação”. Essa é a joia da coroa da entidade. A última edição ocorreu no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e contou com a presença do presidente do STF, ministro Luiz Fux, do governador do Rio, Cláudio Castro, e do prefeito Eduardo Paes. O presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, também discursou. Em 2021, a Caixa gastou 190 mil reais para patrocinar o evento do Ieja – um aumento considerável em comparação aos dois anos anteriores, quando o banco público repassou uma média de 11 mil reais para a realização do seminário.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPedro Guimarães, presidente da Caixa: o banco deu R$ 190 mil ao Ieja
A elevação da cota de patrocínio da Caixa é um indicativo da crescente influência política da entidade. Um mês antes, o Ieja realizou outro seminário, o “STJ em Ação”, que reuniu os ministros Paulo Sanseverino, Villas Boas Cueva, Sergio Kukina e Moura Ribeiro, além do presidente da corte, Humberto Martins, e o ministro aposentado Nefi Cordeiro. O advogado-geral da União, Bruno Bianco, também participou. Um dos principais patrocinadores foi a Federação Brasileira de Bancos, a Febraban – o setor, vale dizer, tem causas bilionárias em tramitação nas turmas de direito privado compostas por alguns dos ministros participantes.

Com currículo extenso e respeitada no meio jurídico, Fabiane Oliveira é o rosto do Ieja e lidera as iniciativas acadêmicas, além dos seminários. Renato Mello aparece como sócio, mas não atua na linha de frente, embora marque presença nos bastidores dos encontros mais relevantes – no simpósio “STF em Ação”, por exemplo, ele tirou fotos com Fux, Paes e Cláudio Castro.

Nas conversas com o lobista Marconny Faria, há sinais de que Mello opera para tentar alavancar a entidade. Em um dos primeiros contatos, em maio de 2020, Renato demonstra intimidade e pede ajuda ao lobista para ampliar a interlocução com o governo. “Gostaria de trocar uma ideia com você sobre o instituto… preciso construir um apoio com o governo”, escreve. “Vamos marcar, sim”, responde o lobista. Um mês depois, a conversa é retomada e, sem fazer nenhuma introdução, Marconny envia a Mello os números de uma série de processos judiciais. A conversa sugere que o lobista pediu apoio ao sócio do Ieja. “Boa noite, irmão, o tema ainda não foi despachado. Estarei com ele pessoalmente no sábado”, responde Renato Mello, sem explicitar quem é a pessoa com quem estaria no sábado. Três dias depois, Marconny manda mensagem a Renato: “Boa noite, meu amigo. Agora o processo da Dra Tatiane está maduro para julgar! Olhe aí”. O lobista da Precisa fazia referência à advogada Tatiane Alves da Silva, que, juntamente com ele, foi denunciada por corrupção na Operação Hospedeiro, deflagrada pelo Ministério Público Federal no Pará. A dupla articulava politicamente para emplacar Tatiane como juíza do Tribunal Regional Eleitoral do Pará. Em razão dos escândalos, a indicação estava sob risco. Ambos, então, atuavam em dois frontes para resolver o problema: tentava suspender o processo e, ao mesmo tempo, buscava apoio político para tentar garantir a nomeação. No fim das contas, o esforço não deu certo.

Reprodução/Redes sociaisReprodução/Redes sociaisO presidente do STF, Luiz Fux, o governador do Rio, Cláudio Castro, e o prefeito Eduardo Paes prestigiaram uma das conferências
Renato Mello nega ter atuado junto a integrantes do Judiciário a pedido do lobista Marconny Faria. Ele alega que sua função no Ieja é gerir a revista do instituto e tocar tarefas administrativas, como o pagamento de contas. “O que me lembro de tratar com ele (Marconny) na época é sobre o projeto de montar a revista, queria realizar um evento para apresentar ao governo, a todos os poderes, e à época ele se apresentou a mim como advogado. Ele se dizia muito próximo do governo, dizia que era advogado do filho do presidente. Tive contato com ele pessoalmente uma ou duas vezes, tanto que nem me recordo de mensagens”, diz. “Em função do modus operandi dele de trabalhar, até pelo que vimos na CPI, ele usava muito o nome de pessoas para tentar viabilizar coisas de seu interesse. A minha posição no instituto é administrativa, a gente não trata de processos e eu não tenho acesso aos juristas, a eventos acadêmicos que a gente produz, minha função é mais de contas a pagar e a receber, não tenho essa condição institucional”, prossegue Mello. Também procurada por Crusoé, Fabiane Oliveira não quis falar. Marconny Faria não foi localizado.

A despeito das críticas a cada vez que casos ilustrativos da mistura indevida de interesses são expostos, ela continua. E não há sinal nos tribunais de qualquer movimento para impedir ou ao menos limitar os convescotes e as impropriedades que deles derivam. “Essa participação indiscriminada (de magistrados) em eventos patrocinados é um problema que precisa ser enfrentado. Isso não pode acontecer na moita, sem transparência. É um problema para a imagem daqueles que participam, que redunda em ameaças à imagem do Judiciário como um todo”, afirma a professora Maria Tereza Sadek. “O CNJ tomou algumas providências, publicou resoluções, mas parece que não surtiram efeito, está tudo junto e misturado. Antes, o Supremo Tribunal Federal se preservava mais. Agora, caiu tudo na gandaia”, diz a ex-ministra do STJ Eliana Calmon, que foi corregedora nacional de Justiça. “É preciso falar sobre isso e frear um pouco essa prática”, defende.

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