Alan Marques/FolhapressBruno Dantas: pupilo de Renan e querido por Gilmar, ele mira uma vaga futura no STF

Cadê o Gilmar?

A cruzada de um ministro e um procurador do TCU contra Sergio Moro é uma amostra de que a defesa do garantismo e do Estado de Direito pelos detratores da Lava Jato só vale quando lhes convém
11.02.22

Renan Calheiros presidia o Senado quando decidiu desengavetar um projeto que estava parado na casa havia sete anos para aprovar uma nova lei de abuso de autoridade. Era 2016 e a iniciativa causou enorme repercussão ao escancarar a contraofensiva da classe política às prisões e condenações realizadas pela Operação Lava Jato. No fim daquele ano, uma sessão comandada pelo senador no plenário marcou o primeiro embate público entre duas figuras centrais na discussão: Gilmar Mendes e Sergio Moro. Enquanto o ministro do Supremo Tribunal Federal defendeu que era preciso aprovar a lei para impor “limites” às operações de combate à corrupção, postura que ele adotou depois que Michel Temer assumiu o Palácio do Planalto, meses antes, o então juiz federal via na proposta uma clara tentativa de “criminalizar” as investigações.

Quando a lei patrocinada por Renan e Gilmar foi aprovada e sancionada, em 2019, o contexto político do país já era outro. A Lava Jato sofria uma série de ataques, abastecidos pelas mensagens hackeadas dos procuradores da extinta força-tarefa de Curitiba, e a agenda anticorrupção defendida por Sergio Moro no Ministério da Justiça enfrentava sucessivos boicotes do presidente Jair Bolsonaro e de seus neoaliados no Congresso. Para camuflar as ações que resgatavam a impunidade nos crimes de colarinho branco, os detratores da Lava Jato se apropriaram de um polido discurso de defesa do estado de direito e das garantias fundamentais dos acusados. A recente cruzada no Tribunal de Contas da União contra o ex-juiz, agora pré-candidato à Presidência, mostra que no Brasil até o garantismo é de ocasião. Ou seja, a depender do alvo, vale a conduta que os garantistas tanto condenam.

Sergio Moro virou alvo de uma investigação no TCU por suposto conflito de interesse em sua atuação como consultor da empresa Alvarez & Marsal por um ano, depois que ele pediu demissão do governo em 2020 e cumpriu seis meses de quarentena. A suspeita foi levantada por Lucas Furtado, subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, porque a firma de consultoria americana foi indicada pela Justiça de São Paulo como administradora do processo de recuperação judicial da Odebrecht, financeiramente abalada pelas condenações aplicadas por Moro enquanto juiz da Lava Jato no Paraná. O procedimento na corte de contas ficou sob relatoria do ministro Bruno Dantas, que chegou ao posto em 2014 pelas mãos de Renan Calheiros.

TCUTCULucas Furtado arquivou o caso e depois voltou atrás
A pedido do subprocurador, Dantas determinou uma série de diligências para fechar o cerco sobre Moro e a empresa americana, incluindo o compartilhamento das mensagens hackeadas, dados sobre todas as atuações da Alvarez & Marsal na administração de processos de recuperação judicial de empresas privadas desde 2013 e cópia do contrato celebrado em novembro de 2020 com o ex-juiz. Diante da exploração política do caso, tanto por petistas quanto por bolsonaristas, Moro divulgou nas redes sociais o montante que recebeu pelos serviços prestados à consultoria durante um ano. Foram 3,5 milhões de reais, somando os honorários mensais e um bônus de contratação. Na sequência, ele provocou seus principais adversários na disputa. “Vai abrir as contas dos gabinetes e da rachadinha, Bolsonaro? E você, Lula? Vai abrir as contas das suas palestras e do sítio de Atibaia?”, escreveu nas redes.

Lucas Furtado, que nem sequer era o procurador natural do caso, chegou a pedir o arquivamento do procedimento no fim de janeiro, admitindo que o TCU não tinha competência para investigar um contrato que não guardava nenhuma relação com o poder público. Mas, diante da pressão dos opositores de Moro, que viram no caso uma grande oportunidade para fustigar a imagem do rival de Lula e Bolsonaro na corrida ao Planalto, o subprocurador voltou à carga cinco dias depois. Desistiu do arquivamento, solicitou que a Receita Federal apure se Moro deixou de recolher impostos no Brasil e pediu que o ministro Bruno Dantas bloqueie os bens do ex-juiz até a conclusão da investigação. Senadores do Podemos, partido de Moro, pediram para que a Procuradoria-Geral da República investigue Furtado pelo crime de abuso de autoridade. O presidenciável também disse que processará o subprocurador.

Ao longo da semana, vários juristas se manifestaram publicamente ou em conversas reservadas sobre a atuação do TCU. “É um abuso de autoridade absoluto praticado por esse subprocurador sob o manto do ministro Bruno Dantas, que também está cometendo crime de responsabilidade ao dar guarida para essa ação. Não é da competência do tribunal de contas fiscalizar contas privadas. É um absurdo que o TCU se envolva nisso”, afirmou o jurista Modesto Carvalhosa. “Eles querem transformar essa questão do contrato do Moro, que é puramente política, em uma discussão técnica no tribunal. Não tem o menor cabimento. É só para tentar desgastar a imagem do Moro por causa da eleição”, disse um professor de Direito Constitucional que falou sob reserva.

Nelson JR./SCO/STFNelson JR./SCO/STFGilmar costuma levantar a voz quando enxerga abuso, mas desta vez se calou
Na visão de juristas ouvidos por Crusoé, a atuação flagrantemente fora da competência do tribunal de Dantas e Furtado pode ser enquadrada no artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade, que estabelece como crime, com pena de um a quatro anos de detenção, “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”. A legislação prevê ainda pagamento de indenização pelo dano causado à vítima e inabilitação para o exercício da função por até cinco anos ou perda do cargo público.

Líder da ala garantista no STF e um dos responsáveis pela série de anulações de sentenças da Lava Jato com o argumento da incompetência da Justiça Federal do Paraná para julgar diversos casos envolvendo as empreiteiras apanhadas no petrolão, o ministro Gilmar Mendes – que, assim como Renan Calheiros, tem um ótimo relacionamento com Bruno Dantas – deixou o assunto de fora dos seus comentários sobre quase tudo que é polêmico na atuação de Sergio Moro. Há cinco anos, quando se contrapôs ao ex-juiz da Lava Jato no debate promovido por Renan, Gilmar defendeu a inclusão de integrantes do tribunal de contas no rol de autoridades passíveis de punição na nova lei do abuso, o que acabou incorporado ao texto que virou lei. “Acho bem-vinda a sugestão de trazer o Tribunal de Contas porque ele hoje exerce um poder significativo e, muitas vezes, é capaz de perpetrar abuso de autoridade”, discursou Gilmar na ocasião.

O viés político do cerco a Moro no TCU ficou nítido com a reação daqueles que se diziam vítimas de abuso de autoridade por parte da Lava Jato, em especial do próprio Renan Calheiros, que desengavetou o projeto em 2016 e é o padrinho político de Bruno Dantas – ambos estiveram juntos no famoso jantar de homenagem a Lula realizado em dezembro por advogados anti-Lava Jato que se dizem defensores das prerrogativas dos réus e investigados. “O TCU deve aprofundar as investigações do “marsalão”, escritório onde Sergio Moro embolsou R$ 3,5 milhões. Descobrir os serviços, os clientes… já que o conflito de interesse é flagrante. Saquearam a democracia”, afirmou o ex-presidente do Senado, que sonha em voltar a comandar o Congresso em caso de vitória do chefe petista nas urnas.

Já Bruno Dantas, que mira a primeira vaga que surgir no Supremo em um eventual governo Lula, usou as redes para provocar Moro. Um dos três ministros do TCU delatados pelo ex-governador Sergio Cabral por suposta venda de decisões favoráveis à Fecomércio do Rio de Janeiro – a delação foi anulada pelo STF no ano passado –, Dantas afirmou que “o Direito é produto da cultura e da história” e que a “sua régua, assim como a das garantias fundamentais, não muda de uma hora para a outra”. Pelo visto, o ministro estava se referindo àquele velho hábito brasileiro em que a régua varia não conforme o tempo, mas de acordo com o alvo levado ao tribunal.

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