Palácio do PlanaltoBolsonaro acolhe Putin em Brasília, em 2019: russo quer mostrar, especialmente aos americanos, que tem amigos por aqui

Do jeito que Putin gosta

Ao receber Bolsonaro em Moscou, o presidente russo usa o Brasil em seu complicado jogo contra as potências ocidentais. O plano é mostrar que ele pode ter outros aliados na América Latina para além de Cuba e Venezuela
11.02.22

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro tem uma audiência marcada com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, na manhã da próxima quarta-feira, 16, em Moscou. Na sequência, os dois devem almoçar juntos no Kremlin, a sede do governo. Ansioso para mostrar que não se tornou um pária mundial, Bolsonaro não titubeou ao aceitar o convite formalizado pelo governo russo ainda no ano passado. Mas, salvo um ou outro compromisso vago na área de comércio ou algum tipo de cooperação, não há muito o que o Brasil possa extrair do encontro. Para Putin, por outro lado, os benefícios a serem auferidos são múltiplos, especialmente após ele ter deslocado mais de 100 mil soldados para a fronteira com a Ucrânia e ter deflagrado uma crise mundial.

A viagem de Bolsonaro ocorrerá bem em meio à disputa entre os Estados Unidos e a Rússia por influência no leste europeu. Já no início de novembro do ano passado, fotos de satélite denunciaram a concentração de tanques e soldados russos perto da fronteira com a Ucrânia, indicando uma invasão iminente. Oficiais russos então insinuaram que as manobras ocorriam por causa do incômodo com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. O convite de Putin a Bolsonaro chegou no final de novembro, com as cartas abertas e a crise já deflagrada.

A recepção ao presidente brasileiro em Moscou será uma forma de os russos descontarem aquilo que eles perceberam como uma invasão da Otan em sua própria área de influência, demarcada pelas antigas fronteiras da União Soviética e de seus antigos aliados. Esse troco já começou, com a viagem do presidente da Argentina, Alberto Fernández, à Rússia no dia 3 de fevereiro. Apenas treze dias irão separar os dois encontros dos governantes latino-americanos. “O Kremlin quer dizer aos americanos que, assim como eles interferiram com a Otan na área deles, os russos podem avançar no quintal dos americanos, a América Latina. É esse o principal simbolismo dessas visitas”, diz a cientista política Regina Smyth, que dá aulas de autoritarismo na Universidade Indiana e escreveu um livro sobre o sistema político russo.

Após o anúncio da viagem de Bolsonaro, os Estados Unidos deram seguidos sinais de desconforto. O secretário de estado americano, Antony Blinken, chegou a telefonar para o ministro de Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, para manifestar descontentamento. Blinken aproveitou para pedir que o Brasil assumisse uma postura mais incisiva contra uma possível invasão da Ucrânia. A demanda parece não ter surtido efeito. Até a publicação desta edição, o Itamaraty não havia emitido nenhuma nota pedindo uma solução diplomática ou algo do tipo. Com a realização da viagem de Bolsonaro, a chance de isso acontecer fica ainda menor. “Brasil é Brasil. Rússia é Rússia. Faço um bom relacionamento com o mundo todo. Assim como se o Joe Biden me convidar, estarei nos EUA com o maior prazer”, disse o presidente brasileiro.

Casa RosadaCasa RosadaO argentino Alberto Fernández também foi se encontrar com Putin em Moscou
Está claro que Bolsonaro deseja enviar um recado aos Estados Unidos de Biden, ao aceitar se reunir com Putin neste momento. Mas não deixa de ser inusitado que, ao entrar no jogo russo, ele está pondo o Brasil para desempenhar um papel relativamente similar ao que exercem Venezuela e Cuba – países comandados por ditaduras de esquerda, aquelas que ele não cansa de mencionar em seus discursos, e que há décadas se submetem à influência russa. Em meados de janeiro, o vice-chanceler da Rússia, Sergei Ryabkov, chegou a dizer que não descartava enviar tropas e armamentos para os territórios cubano e venezuelano, caso um acordo não fosse alcançado na Ucrânia, uma evidente ameaça a Washington. A Rússia quer que haja um compromisso formal dos Estados Unidos e aliados de que o seu antigo satélite jamais integrará a Otan. Nenhuma das duas ditaduras latino-americanos fez qualquer contestação.

Após a declaração de Ryabkov, um ex-diretor do serviço de inteligência da Venezuela afirmou que duas bases militares russas já funcionam no país. No final do ano passado, um general venezuelano disse que instrutores da companhia privada russa Vega treinavam membros da Guarda Nacional Bolivariana. Na semana passada, o ministro da Defesa da Colômbia, Diego Molano, declarou que o Irã e a Rússia estão ajudando na mobilização de soldados venezuelanos próximos à fronteira com a Colômbia.

Como o presidente brasileiro e seus filhos costumavam se gabar de ter evitado que o Brasil se tornasse uma Venezuela sob o governo do PT, a aproximação com o aliado de Nicolás Maduro é paradoxal.  “Essa é uma contradição evidente, que deve ter sido notada pelo Itamaraty e comunicada ao presidente”, diz o embaixador Paulo Roberto de Almeida. “Mas acho que, no final, prevaleceu o desejo do ministro de Relações Exteriores, Carlos França, de mostrar que está trabalhando arduamente para reduzir o isolamento do Brasil.”

A lista de convidados do Kremlin vai além da América Latina, e a parte mais relevante aceitou ir a Moscou para discutir concretamente a crise na Ucrânia. Apenas neste mês de fevereiro, passaram por lá o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, o presidente francês, Emmanuel Macron, e o presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev. Estão sendo esperados o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, e o presidente do Paquistão, Imran Khan. Putin esteve em Pequim, para encontrar-se com o ditador chinês Xi Jinping, e pode passar pela Turquia, para um encontro com presidente Recep Erdogan.

ReproduçãoReproduçãoRival ideológico de Bolsonaro, Maduro recebe ajuda de militares russos
Com todos esses compromissos, Putin quer se colocar como um líder global com inúmeras amizades e emplacar a leitura de que tem sido injustamente espezinhado pelos Estados Unidos e pelos britânicos. Trata-se de uma forma de tentar enfraquecer a posição americana e da Otan. Para o público interno, jornais e canais de televisão russos já formataram aquilo que precisa ser dito, ao mostrar o presidente com tantos convidados ilustres. “O que os veículos de imprensa têm contado são histórias de aliados que, heroicamente, têm driblado as pressões do malvado Departamento de Estado americano para se solidarizar com Putin”, diz Roman Osadchuk, pesquisador do Laboratório de Pesquisas Forenses Digitais, do Atlantic Council, em Kiev, capital da Ucrânia. “Nessa narrativa, o Brasil é mostrado como um aliado da Rússia e o bloco dos Brics é retratado como uma união poderosa capaz de lutar contra o mundo unipolar, dominado pelos Estados Unidos”, acrescenta o pesquisador, que acompanha a propaganda russa nas redes e nos veículos de comunicação.

Na próxima semana, Putin terá a oportunidade de emitir todos esses sinais, para seu público interno e para o mundo, mesmo que ele e Bolsonaro passem a maior parte do tempo falando de bifes, de fertilizantes ou de possíveis acordos de cooperação nas áreas cultural e acadêmica. Mas o líder russo pode se dar ainda melhor, caso seu colega brasileiro se arrisque em declarações improvisadas. “Putin não tem apreço por governantes sem conhecimento do mundo e que falam de maneira coloquial, mas ele costuma tirar proveito dessas características. Ele fez isso com o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump e poderá repetir com Bolsonaro”, diz Regina Smyth, da Universidade Indiana.

Como presidente, Donald Trump esteve pessoalmente com Vladimir Putin cinco vezes. Em todas elas, o americano cuidou para que o teor das conversas não fosse revelado aos demais funcionários do Departamento de Estado ou ao público. Trump ainda assumiu, sem pestanejar, a versão de Putin de que a Rússia não interferiu nas eleições americanas de 2016, contrariando as conclusões das agências de inteligência americanas. “Putin disse que não foi a Rússia (a culpada). Não vejo qualquer razão por que seria”, disse Trump em uma entrevista coletiva ao lado do presidente russo, na Finlândia, em 2018.

Em janeiro deste ano, Jair Bolsonaro foi indagado por um apoiador se Putin era conservador – “gente como a gente”, nas palavras do militante. A resposta do presidente foi a de que o russo “é conservador, sim”. A se considerar o significado do termo apenas na área comportamental, seu emprego foi correto. Putin reprime gays, é contra o aborto, defende a família e aliou-se com a Igreja Ortodoxa para perpetuar-se no poder. Contudo, ao ignorar completamente a parceria russa com Venezuela e Cuba e seu forte componente ideológico, Bolsonaro demonstra que está relativizando as características de seu anfitrião. É um mau presságio. E no momento errado.

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