MarioSabino

O Mal

11.02.22

Sempre sintonizado com a atualidade dos debates nacionais, perdi tempo nesta semana que termina, explicando a compatriotas sem leitura e sem juízo por que as ideias nazistas não deveriam ser descriminalizadas e por que seria absurdo permitir a criação de um partido nazista, em nome da liberdade de expressão. Publiquei dois artigos sobre o assunto em O Antagonista e prometi não voltar mais a ele. Quebro a minha promessa na Crusoé, porque havia deixado em segundo plano um dos argumentos levantados pela turba: se o nazismo foi proscrito, por causa das atrocidades que cometeu, o comunismo também deveria ser. Afinal de contas, líderes e partidos comunistas mataram muitos mais milhões de pessoas do que o nazismo.

Acho odioso contar mortos como se fossem pontos de partida esportiva — e a partida para os nazistas durou bem menos —, porque não se trata disso, ao contrário do que pensam os energúmenos. Sim, o comunismo cometeu atrocidades incanceláveis na Europa do Leste, na China, no Camboja e na Coreia do Norte. As suas derivações latino-americanas, os regimes de Cuba e Venezuela, causaram e vêm causando imenso sofrimento a milhões de pessoas, e boa parte delas viu-se obrigada a refugiar-se em outros países. Josef Stalin e Mao Tsé-Tung eram carniceiros e transformaram assassinatos em massa em política de estado. É, de fato, inconcebível que haja um cérebro com dois neurônios que ainda defenda essas duas bestas do apocalipse ideológico. Sobre a comparação entre comunismo e nazismo, escrevi apenas, em O Antagonista, que duas monstruosidades não fazem um acerto, nem de um lado nem de outro. O ponto que deveria ser pacífico é que, ao eleger, como alvos de destruição total determinadas etnias, seres humanos com problemas físicos e mentais e pessoas com orientações sexuais diversas, as ideias nazistas são inaceitáveis de qualquer ponto de vista moral ou político. Não passam de apologia a crimes contra a humanidade e sua formalização em programa de partido político é inconstitucional. Encontram-se fora do campo do debate ideológico e, portanto, do domínio da liberdade de expressão”.

Explico melhor aqui. Não direi que stalinismo, maoísmo e correlatos são “desvios” do comunismo, associados ao fenômeno do culto à personalidade. Essa foi a linha de defesa da esquerda, quando os crimes dos venerados timoneiros vieram à tona. Depois da sua morte, Stálin viu-se acusado pelo próprio partido comunista soviético, em 1956, quando o então secretário-geral Nikita Kruschev, em sessão secreta de cinco horas com outros dirigentes comunistas, denunciou os crimes do seu predecessor, a quem havia servido. Mao Tsé-Tung não foi denunciado, mas exilado no passado pelo partido comunista chinês, depois que o regime abraçou relações capitalistas, em consequência do massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial, em 1989, momento limite no qual seus próceres viram que corriam o risco real de ser derrubados. O genocida Mao Tsé-Tung continua a ser formalmente reverenciado, mas o meu intérprete chinês durante a visita que fiz à China, em 2008, riu ao saber que os livros do ditador ainda eram lidos no Brasil. Lembro que, quando estava preparando a edição especial dos 40 anos da Veja, deparei-me com a reportagem que tratava da morte de Mao Tsé-Tung, em 1976. Ele foi descrito como um poeta. Li trechos para Roberto Civita, dono da revista, e perguntei como havia deixado que saísse uma coisa daquelas. Roberto Civita arregalou os olhos, disse que não se recordava da reportagem e que provavelmente estava em Paris, na semana em que foi publicada. Ri como o meu intérprete chinês.

O comunismo é um totalitarismo e, como tal, deve ser condenado, repudiado, combatido. O stalinismo e o maoísmo não foram desvios, mas desdobramentos previsíveis de duas histórias e culturas políticas, a russa e a chinesa, avessas à democracia, como demostram hoje Vladimir Putin e Xi Jinping. Depois de esmagar liberdades na Rússia, o primeiro sonha em restabelecer o império soviético, sem comunismo, e cobiça a mesma Ucrânia que Stálin dizimou com a fome; o segundo permanece firme na execução daquela hibridez lançada por Deng Xiaoping, segundo a qual não importa a cor do gato, desde que ele cace o rato, enquanto persegue minorias que julga perigosas e se prepara para invadir Taiwan. Da mesma forma que a Rússia, a China nunca foi e nunca será uma democracia. Há milênios, os seus gatos mudam de cor. Na Europa Ocidental, a partir das denúncias dos crimes de Stálin, os partidos comunistas, guiados desde o início por Moscou, enfrentaram defecções e rachas e tiveram de se haver com a resistência de sociedades pluralistas.

Na Itália, a partir da década de 1970, o PCI, na época a maior agremiação esquerdista do Ocidente, rompeu com os soviéticos e criou os conceitos de “eurocomunismo” e “terceira via” (sim, a invenção do termo é deles), em busca de um caminho democrático para o marxismo, como se tal possibilidade houvesse. As Brigadas Vermelhas mataram Aldo Moro, em 1978, porque viram no sequestro e assassinato do expoente da democracia cristã a maneira de evitar que a centro-direita formasse uma coalizão com o PCI e pusesse a “revolução proletária” a perder. Quatro anos depois, assisti a uma palestra de um senador comunista italiano na PUC, em São Paulo. Impecável no seu terno bem cortado e emoldurado por uma gravata Marinella, em contraste com os barbudos petistas, Armando Cossutta causou indignação barulhenta na plateia ao responder a uma pergunta sobre como o PCI via o conceito marxista de ditadura do proletariado. Ele declarou: “O PCI considera a ditadura do proletariado uma ideia morta”. Depois da queda do Muro de Berlim, e já havia muito transformado em braço da social-democracia, o partido comunista italiano finalmente mudou de nome, para continuar existindo como agremiação. Outras grandes agremiações comunistas, em diversos países, simplesmente desapareceram.

Não estou passando pano (odeio essa expressão, mas devo me adequar) para o comunismo e seus criminosos. A ideologia é intrinsecamente ditatorial, produziu monstros, deu margem a genocídios, mas a história mostra que houve circunstâncias geográfico-culturais para as suas configurações, conflitos internos e divisões no seu âmbito, defecçōes — e que muitos dos seus crimes hediondos foram revelados por comunistas. É natural que, do ponto de vista da vítima, no lugar da qual os espíritos decentes precisam colocar-se, não importa se quem a está torturando e matando o faz por motivações étnicas ou políticas. É imoral e ponto. Mas o mal nunca foi uma banalidade institucionalizada (empresto a expressão de Hannah Arendt) nos regimes comunistas. A distinção entre certo e errado continuou a existir, sem promiscuidade, entre os cidadãos que viviam sob seu jugo, por mais que a doutrinação fosse pesada, e ela não desapareceu entre vários dos seus líderes, mesmo entre aqueles que escolhiam a ignomínia, o que certamente não lhes reservou um lugar no paraíso, mas em algum círculo do inferno. Os stalinistas escondiam os seus crimes; os hitleristas propagandeavam os deles. Só passaram a tentar escondê-los diante da inevitável derrota para os aliados, que os julgariam pelo velho metro que o Fuehrer queria abolir. Os comunistas perseguiam (e perseguem) quem era contra. Os nazistas perseguiam quem era o que era, simplesmente. Para ficar mais claro: quando os soldados soviéticos chegaram a Auschwitz, eles não acharam lá a mesma abjeção dos gulags de Stálin. Encontraram algo muito pior, o horror absoluto, e se chocaram com isso — ao contrário dos alemães nazificados, que só faziam de conta que não sabiam de tudo.

O resumo é este: o comunismo faz muito mal, mas pode ser combatido no campo das ideias (o combate tem sido bastante exitoso, convenhamos) e tem uma atenuação civilizada, a social-democracia; o nazismo é O Mal e, desse modo, não pode ser combatido no campo das ideias nem existe atenuação para ele. Não se discute com quem faz da eliminação de um povo — o judaico — um dos dois pilares da sua existência, ao lado da “supremacia ariana”. É uma barbaridade que está inteiramente no terreno da psicopatia e da marginalidade. A prova é que existe ex-comunista sincero, mas não existe ex-nazista sincero. Por não poder ser combatido no campo das ideias, o nazismo não é ideologia. Por não ser ideologia, deve permanecer inscrito no Código Penal.

Em 1942, ocorreu uma conferência em Wannsee, nos arredores de Berlim, dos chefões encarregados por Adolf Hitler de planejar a “Solução Final” para os judeus. O mestre de cerimônias foi Reinhard Heidrych, que ficaria conhecido como um dos arquitetos do Holocausto. Adolf Eichmann, cuja condenação propiciou a Hannah Arendt escrever o seu livro sobre o julgamento desse burocrata nazista em Jerusalém, fez as vezes de secretário da conferência. Como relata a pensadora, Adolf Eichmann ficou maravilhado com o que presenciou:

“Embora estivesse dando o melhor de si para ajudar na Solução Final, ele ainda tinha algumas dúvidas a respeito de ‘uma solução sangrenta por meio da violência’, e essas dúvidas agora haviam sido dissipadas. ‘Ali, naquela conferência, as pessoas mais importantes tinham falado, os papas do Terceiro Reich’. Agora ele podia ver com os próprios olhos e ouvir com os próprios ouvidos não apenas Hitler, não apenas Heydrich ou a ‘esfinge’ Mueller, não apenas a SS e o Partido, mas a elite do bom e velho serviço público disputando e brigando entre si pela honra de assumir a liderança dessa questão ‘sangrenta’. ‘Naquele momento, eu tive uma espécie de sensação de Pôncio Pilatos, pois me senti livre de toda culpa’. Quem haveria de ser o juiz? Quem era ele para ‘ter suas próprias ideias sobre o assunto’? Bem, ele não era o primeiro nem o último a ser corrompido pela modéstia.”

O nazismo corrompia pela modéstia, uma ironia de Hannah Arendt para o fato de toda uma nação ter aceitado “cumprir ordens” de criminosos sádicos pretensamente superiores, cujo único propósito era a destruição em escala industrial de tudo que significasse humanidade e civilização fora dos gostos pessoais de Adolf Hitler. O escritor Thomas Mann mostrou o seu nojo pelos nazistas quando leu que um deles havia dito que iriam “fazer de Paris um parque de diversões e da França, em geral, um bordel e um quintal para a Europa Alemã”. O escritor se perguntou, em 1941: “Pode haver brutalidade mais descarada?”. Podia. A destruição não se limitava a humilhar um país rival. Era preciso cancelar os conceitos mais básicos de moralidade, para alcançar o extermínio de seres humanos reduzidos à condição de insetos. A “moral proletária”, de caráter classista, não eliminava completamente valores preexistentes; a “moral ariana”, de caráter racial, era a completa imoralidade. Os “conservadores” nazistas queriam demolir até o conceito de família e, para tanto, chegaram a instituir as Lebensborn, casas onde mulheres e homens de “sangue puro” copulavam para produzir bebês que pudessem ser criados pelo estado nazista e formar uma espécie de gado ariano.

A conferência de Wannsee foi tema do filme Conspiração, lançado em 2001 e estrelado por Kenneth Branagh, no papel de Reinhard Heyndrich. Ao final, ao tomar um último drinque com outro participante da conferência, o arquiteto do Holocausto ouve do interlocutor que se abriria um grande vácuo no Terceiro Reich, depois que todos os judeus fossem exterminados, uma vez que o massacre deles era o seu grande propósito. A ficção explica a realidade. Aconselho a quem não lê livros que pelo menos assista ao filme.

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