MarioSabino

O comunista

18.02.22

Quando eu era adolescente, fui parar na casa de uma amiga de uma amiga, no Pacaembu, aqui em São Paulo. A minha juventude, aliás, pode ser resumida como uma passagem contínua por casas de amigos de amigos que foram amigos somente por determinado período. Mas a ida a essa casa no Pacaembu me marcou especialmente, porque foi quando me deparei com um mundo até então insólito para mim, no qual se torcia pelos soviéticos, não pelos americanos. Na minha estreiteza de menino de classe média, embora neto de um anarquista italiano, era inimaginável que alguém torcesse contra os Estados Unidos. Eu nunca tinha pisado em território americano, mas eu o habitava em seriados de TV, em desenhos e gibis de super-heróis, em filmes de ação e comédias — e, no único aspecto um pouquinho original, na subliteratura vendida em bancas de jornais. No início dos anos 70, havia uma coleção de livros policiais de segunda ou terceira categoria, em edições bem vagabundas, com capas amarelas, que eu corria para comprar na banca da esquina, sempre que me davam algum dinheiro. Os autores tinham nomes ingleses, mas provavelmente eram pseudônimos de brasileiros que se dedicavam ao ramo, passando-se por americanos, em troca de um salário de subsistência. Não importa, a América também tinha esse aspecto fascinante.

A casa da amiga da minha amiga no Pacaembu era enorme e luxuosa. Família bem rica. A minha amiga estudava na escola americana e a amiga dela, na britânica. Mais burguesas, impossível. A jovem da casa do Pacaembu, no entanto, era comunista. Os pais também. E, em meio a essa comunice toda, eu presenciava naquele momento a menina torcendo pela União Soviética, contra os Estados Unidos, em uma disputa esportiva da qual já não me lembro a modalidade. Fiquei genuinamente espantado. Para mim, era o mundo pelo avesso. (Só mais tarde descobri que comunistas ricos eram fenômeno comum, já que o comunismo pode ser fonte de lucro.)

Foi ali, naquele momento, na casa da amiga da minha amiga, que eu decidi tentar ser comunista, numa experiência semelhante à dos jovens que resolvem experimentar drogas. Por que não tentar ver o mundo de outra perspectiva? Li os manuais de Lênin, comprei camiseta do Che Guevara, cortei as etiquetas das poucas roupas chiques que eu ganhava da minha madrasta, fui a uma manifestação contra a ditadura — e comecei a nutrir a ideia de aprender russo, impressionado com Vladimir Maiakovski, o poeta da Revolução de 1917 que se suicidou depois de constatar que havia embarcado no encouraçado errado. Repetia como fórmula mágica o seu verso famoso de agitprop — “Come ananás, mastiga perdiz. Teu dia está prestes, burguês”  — e até fiz curso na USP, como ouvinte, de poesia cubofuturista russa. Depois do curso, eu ia para casa e punha na vitrola Sheherezade, a sinfonia de Rimski-Korsakov, numa espécie de pré-revolução pessoal. A ideia de aprender russo não foi adiante. Contentei-me com as traduções para o italiano dos poetas de que gostava (os italianos sempre foram ótimos eslavistas). Essa, digamos, formação me permitiu atravessar bem as aulas de marxismo na faculdade, sempre dissimuladas sob outros nomes, como se a ditadura pudesse ser enganada. Os anos de Colégio Equipe também me ajudaram, é claro. Eu nunca tive professores tão divertidamente de esquerda como os do Colégio Equipe, mas ninguém lá parecia torcer de verdade contra os Estados Unidos.

Apesar dos meus esforços juvenis, nunca cheguei a integrar diretórios estudantis ou partidos, seja por falta de convicções ideológicas como de certo espirito de rebanho, quesito indispensável para aderir a qualquer sigla. E jamais consegui torcer contra os Estados Unidos. A minha tentativa de ser comunista foi, em resumo, curta e fracassada. Inclusive com as moças. Eu era absolutamente inconvincente no papel de comunista, até porque não deixei de jogar basquete na Associacão Cristã de Moços. Aos 20 anos, desisti, finalmente. O que me restou foi aquele sentimento descrito por André Gide: “Diante de certos ricos, como não sentir que se tem uma alma de comunista?”. É um sentimento que desaparece rapidamente, basta que certos ricos saiam da minha frente.

Essa minha pequena digressão biográfica é porque, depois do artigo da semana passada, no qual discorri sobre a diferença entre nazismo e comunismo, fui chamado de comunista por mais de um brasileiro gentil. Como não tenho nada a perder sendo honesto, quis mostrar que até tentei, mas as minhas limitações foram intransponíveis. Nem mesmo quando editei a revista Teoria & Debate, do PT, recaí na tentação de virar comunista e torcer contra os Estados Unidos. Fui trabalhar lá por absoluta necessidade financeira. Eles falavam muito em mudar a “correlação de forças” na sociedade brasileira, mas ninguém supunha, salvo engano, que Lula usaria o departamento de propinas da Odebrecht nessa empreitada.

Não sei dizer que fim deu a amiga da minha amiga. A minha amiga, eu sei, virou uma respeitada professora de grego. Quanto à comunista, nenhuma migalha de notícia. Pode ser que ela esteja, neste momento, torcendo para Vladimir Putin invadir a Ucrânia e reviver o império soviético. Ou quem sabe tenha se casado com um banqueiro comunista e esteja pensando apenas nas suas profícuas atividades em associações politicamente corretas. Pode ser ainda que a sua brilhante carreira profissional na área de recursos humanos a tenha alçado ao conselho de administração de uma grande empresa, na cota dos comunistas. Talvez nada disso seja excludente. Ou talvez ela tenha se tornado ex-comunista e até bolsonarista. Se isso ocorreu, aposto que teve os mesmos arrepios de prazer da juventude, ao ver Jair Bolsonaro depositando flores no túmulo do soldado desconhecido do Exército Vermelho. Para não dizer que não falei das flores.

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