O novo alvo
Na quinta-feira, 10, quando o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu arquivar o inquérito que apurava suposta propina aos senadores Renan Calheiros e Jader Barbalho nas obras da usina de Belo Monte, no Pará, sob a alegação de falta de provas, o ministro Gilmar Mendes entrou em cena, ao seu estilo já conhecido. Fez questão de divulgar um voto em separado, para criticar não apenas “vícios e fragilidades” que ele via na delação premiada do ex-senador Delcídio do Amaral, responsável por originar a investigação, em 2016, como também para tentar colocar em xeque outros acordos de colaboração que impulsionaram a Lava Jato. “Caberá ao STF reavaliar a legalidade e a higidez desses pactos”, anunciou o decano, notoriamente o mais ferrenho opositor da operação de combate à corrupção dentro da corte. Pelo visto, para Gilmar há delações e delações, a depender de conveniências. É que agora, sem poder contar com o arsenal de mensagens hackeadas usado para desacreditar o ex-juiz Sergio Moro e implodir a força-tarefa do Paraná, Gilmar vale-se do instrumento condenado por ele como munição principal contra o alvo da vez, o juiz Marcelo Bretas.
Há três delações fechadas com a Procuradoria-Geral da República, na gestão de Augusto Aras, que miram o juiz. Uma delas está sob relatoria do próprio Gilmar. Na última semana, o ministro compartilhou com o Conselho Nacional de Justiça um anexo do acordo. O objetivo é turbinar uma reclamação disciplinar feita pela OAB contra Bretas e, claro, tentar anular suas sentenças, como as que condenou políticos e empresários próximos do ministro do STF.
Crusoé antecipou o plano hoje em curso há cerca de um ano, quando mostrou como os detratores da Lava Jato pretendiam usar uma disputa envolvendo advogados do Rio para fustigar a operação. No centro da trama está o jovem criminalista Nythalmar Dias Ferreira Filho, de 32 anos, investigado pelo Ministério Público Federal por “vender” uma suposta proximidade com Bretas e com a força-tarefa, para captar clientes. Após ser alvo de busca e apreensão em 2020 e acusado de ameaçar o juiz com mensagens de celular apócrifas, Nythalmar fez uma manobra jurídica para levar o caso para o Superior Tribunal de Justiça, colocando o magistrado e os procuradores na condição de investigados. A estratégia foi prontamente acolhida pelo ministro Humberto Martins, presidente do STJ, e pela subprocuradora-geral Lindôra Araújo, representante do MPF na corte — ambos críticos da Lava Jato.
Nesse período, Nythalmar ganhou o rótulo de “homem-bomba” da Lava Jato. Circulava no meio jurídico carioca a informação de que o advogado tinha gravações que poderiam comprometer Marcelo Bretas e colocar suas decisões sob dúvida. O nome do criminalista chegou a ser citado por Gilmar durante o julgamento da suspeição de Sergio Moro nos processos do ex-presidente Lula, em março do ano passado, como protagonista de um “escândalo que ainda não veio à tona”. Como revelou Crusoé naquela época, Nythalmar recebeu até uma oferta de dinheiro para ajudar a destruir a operação no Rio. A um interlocutor, ele disse ter recusado a proposta. Meses depois, o advogado fechou um acordo com Lindôra na PGR, acusando o juiz Bretas de interferir indevidamente nas delações. Pela lei, cabe ao magistrado apenas homologar os termos pactuados previamente entre o investigador e o investigado.
Como principal prova contra Bretas, Nythalmar apresentou um áudio de dois minutos e meio de uma conversa que ele gravou escondido em 2017, no gabinete do juiz. Crusoé teve acesso ao áudio. Com o advogado à sua frente, Bretas conversa por telefone, no viva-voz, com o procurador Leonardo Cardoso de Freitas, coordenador da Lava Jato fluminense à época, sobre o interesse do MPF em manter os termos do acordo com o empreiteiro Fernando Cavendish no Rio, independentemente da adesão da PGR ao caso. Após o procurador assegurar que continuaria patrocinando o pacto, Bretas desliga e diz ao advogado que o MPF não iria “embarreirar” o acordo e que ele próprio iria “aliviar” a pena para o empreiteiro que confessou ter pago propina em troca de contratos públicos no governo de Sergio Cabral.
Foi com base nos anexos da delação de Nythalmar vazados no ano passado que a OAB representou contra Bretas no CNJ, pedindo o afastamento do juiz – o pedido, contudo, foi rejeitado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura. Ocorre que o acordo feito por Nythalmar com a PGR, mantido sob sigilo, travou no STJ. No fim do ano passado, a ministra Laurita Vaz se declarou impedida e o caso foi redistribuído para o ministro Herman Benjamin, que até agora não decidiu se o homologa ou não. Viabilizar o acordo de Nythalmar é essencial para o plano de aniquilar a Lava Jato fluminense, reconhecidamente o braço da operação que mais avançou sobre o Judiciário. Mas, como o caso segue paralisado no STJ, a estratégia patrocinada por Gilmar é agora tentar robustecer o processo que corre contra Bretas no Conselho Nacional de Justiça.
A tática, porém, pode não funcionar. As outras duas delações fechadas pela PGR que envolvem Marcelo Bretas estão ancoradas na tese de que Nythalmar tinha uma relação privilegiada com o magistrado — que, por sua vez, garantiria acesso a informações sigilosas e proteção a seus clientes com decisões favoráveis. A questão é que, no relatório produzido pela Polícia Federal sobre os arquivos encontrados no computador e nos celulares de Nythalmar, ao qual Crusoé teve acesso, não há nenhum indício dessa atuação de Bretas – ao menos é o que se sabe até agora. Com isso, só restaria o tal áudio, que os detratores da Lava Jato querem usar para desqualificar todo o trabalho da operação no Rio.
Os delatores anti-Lava Jato são José Antônio Fichtner e Sergio Côrtes, ambos alvos da operação. Os anexos ainda permanecem em sigilo, mas os relatos que miram o magistrado estão centrados na mesma abordagem que levou a OAB do Rio a representar contra Nythalmar em 2019, antes de ele virar uma arma contra a Lava Jato. José Antônio Fichtner, que também é advogado, é irmão de Regis Fichtner, ex-chefe da Casal Civil no governo de Sergio Cabral e preso duas vezes acusado de lavagem de dinheiro no esquema de corrupção comandado pelo ex-governador. Após ser alvo de busca e apreensão, em 2019, José Antônio Fichtner fechou um acordo de delação com a Lava Jato do Rio, homologado pelo próprio Bretas. Nele, admitiu que o irmão usou sobra de dinheiro de campanha para arrendar uma fazenda na Bahia e afirmou ter devolvido, em dinheiro vivo, para a irmã do deputado Aécio Neves o valor pago pela compra de um apartamento seu em Florianópolis. Os depoimentos foram gravados em vídeo e na presença dos advogados de Fichtner. Só que, em 2020, depois que a maré virou contra a Lava Jato, ele mudou de postura e passou a dizer que só delatou porque sofreu “tortura psicológica” do juiz Marcelo Bretas e dos procuradores.
Fichtner não contratou o advogado e também não foi preso, mas sofreu uma busca e apreensão naquele mês, o que ele reputou ao fato de não ter contratado Nythalmar, só que sem apresentar qualquer prova. “Doente e pressionado pelas reiteradas afirmações de Nythalmar, no sentido de que quem falasse de Regis obteria a delação, seu estado de saúde o levou a criar a história das verbas de campanha e a sofisticá-la, afirmando, inclusive, que elas também teriam sido usadas em anos posteriores. Tudo consequência da mesma neurose que só a psiquiatria pode explicar”, diz o pedido de suspeição de Bretas feito no ano passado. Integrantes da força-tarefa classificam a teoria como “estapafúrdia”.
Mesmo assim, a teoria sem pé nem cabeça de Fichtner foi levada adiante por Lindôra Araújo, na PGR. A subprocuradora pediu o compartilhamento do acordo feito no Rio e homologado por Bretas e fez uma espécie de aditivo na delação, abrindo um anexo específico para tratar da relação do juiz com Nythalmar. O caso ficou sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, que é o relator da Lava Jato fluminense no Supremo. No último dia 8, o anexo foi enviado por Gilmar ao CNJ. Não satisfeito, o decano também decidiu enviar o material, mesmo sem ter sido homologado, para o Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, para uma eventual apuração sobre a conduta dos procuradores da força-tarefa.
Crusoé já ouviu relatos de outros réus da Lava Jato que foram abordados por Nythalmar de forma bastante atípica dentro da cadeia, com a mesma “promessa” de solução dos casos, por meio de uma suposta relação de proximidade com Marcelo Bretas. Diante do atual cenário, estão dispostos a engrossar a fila de “delatores” anti-Lava Jato, para conseguir gerar suspeição sobre o juiz da 7ª Vara Criminal do Rio e, com isso, anular suas sentenças — foram 183 condenações em cinco anos. Uma estratégia que agora soa como música para os algozes da operação que tanto atacaram o instrumento da colaboração premiada. A dúvida é se, como disse Gilmar a respeito das delações que ele condena, o STF vai avaliar a legalidade e a higidez desses pactos.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.