A estratégia patrocinada por Gilmar Mendes é tentar robustecer o processo que corre contra Marcelo Bretas no Conselho Nacional de Justiça

O novo alvo

Não satisfeita em tentar aniquilar Sergio Moro para tirá-lo do páreo eleitoral, a ala anti-Lava Jato do Judiciário, comandada por Gilmar Mendes, agora parte para o ataque contra o juiz Marcelo Bretas
18.02.22

Na quinta-feira, 10, quando o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu arquivar o inquérito que apurava suposta propina aos senadores Renan Calheiros e Jader Barbalho nas obras da usina de Belo Monte, no Pará, sob a alegação de falta de provas, o ministro Gilmar Mendes entrou em cena, ao seu estilo já conhecido. Fez questão de divulgar um voto em separado, para criticar não apenas “vícios e fragilidades” que ele via na delação premiada do ex-senador Delcídio do Amaral, responsável por originar a investigação, em 2016, como também para tentar colocar em xeque outros acordos de colaboração que impulsionaram a Lava Jato. “Caberá ao STF reavaliar a legalidade e a higidez desses pactos”, anunciou o decano, notoriamente o mais ferrenho opositor da operação de combate à corrupção dentro da corte. Pelo visto, para Gilmar há delações e delações, a depender de conveniências. É que agora, sem poder contar com o arsenal de mensagens hackeadas usado para desacreditar o ex-juiz Sergio Moro e implodir a força-tarefa do Paraná, Gilmar vale-se do instrumento condenado por ele como munição principal contra o alvo da vez, o juiz Marcelo Bretas.

Há três delações fechadas com a Procuradoria-Geral da República, na gestão de Augusto Aras, que miram o juiz. Uma delas está sob relatoria do próprio Gilmar. Na última semana, o ministro compartilhou com o Conselho Nacional de Justiça um anexo do acordo. O objetivo é turbinar uma reclamação disciplinar feita pela OAB contra Bretas e, claro, tentar anular suas sentenças, como as que condenou políticos e empresários próximos do ministro do STF.

Crusoé antecipou o plano hoje em curso há cerca de um ano, quando mostrou como os detratores da Lava Jato pretendiam usar uma disputa envolvendo advogados do Rio para fustigar a operação. No centro da trama está o jovem criminalista Nythalmar Dias Ferreira Filho, de 32 anos, investigado pelo Ministério Público Federal por “vender” uma suposta proximidade com Bretas e com a força-tarefa, para captar clientes. Após ser alvo de busca e apreensão em 2020 e acusado de ameaçar o juiz com mensagens de celular apócrifas, Nythalmar fez uma manobra jurídica para levar o caso para o Superior Tribunal de Justiça, colocando o magistrado e os procuradores na condição de investigados. A estratégia foi prontamente acolhida pelo ministro Humberto Martins, presidente do STJ, e pela subprocuradora-geral Lindôra Araújo, representante do MPF na corte — ambos críticos da Lava Jato.

Nesse período, Nythalmar ganhou o rótulo de “homem-bomba” da Lava Jato. Circulava no meio jurídico carioca a informação de que o advogado tinha gravações que poderiam comprometer Marcelo Bretas e colocar suas decisões sob dúvida. O nome do criminalista chegou a ser citado por Gilmar durante o julgamento da suspeição de Sergio Moro nos processos do ex-presidente Lula, em março do ano passado, como protagonista de um “escândalo que ainda não veio à tona”. Como revelou Crusoé naquela época, Nythalmar recebeu até uma oferta de dinheiro para ajudar a destruir a operação no Rio. A um interlocutor, ele disse ter recusado a proposta. Meses depois, o advogado fechou um acordo com Lindôra na PGR, acusando o juiz Bretas de interferir indevidamente nas delações. Pela lei, cabe ao magistrado apenas homologar os termos pactuados previamente entre o investigador e o investigado.

Como principal prova contra Bretas, Nythalmar apresentou um áudio de dois minutos e meio de uma conversa que ele gravou escondido em 2017, no gabinete do juiz. Crusoé teve acesso ao áudio. Com o advogado à sua frente, Bretas conversa por telefone, no viva-voz, com o procurador Leonardo Cardoso de Freitas, coordenador da Lava Jato fluminense à época, sobre o interesse do MPF em manter os termos do acordo com o empreiteiro Fernando Cavendish no Rio, independentemente da adesão da PGR ao caso. Após o procurador assegurar que continuaria patrocinando o pacto, Bretas desliga e diz ao advogado que o MPF não iria “embarreirar” o acordo e que ele próprio iria “aliviar” a pena para o empreiteiro que confessou ter pago propina em troca de contratos públicos no governo de Sergio Cabral.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisComo principal prova contra Bretas, Nythalmar Dias apresentou um áudio que não mostra qualquer ilícito
O diálogo usado contra Bretas versa sobre um instrumento tradicional de toda delação: o delator topa detonar o esquema em troca da diminuição da pena. Não há fato ilícito no acerto nem trama, como Nythalmar e os adversários do juiz no Judiciário querem fazer crer. A despeito do tom informal, trata-se de uma conversa usual entre o juiz, o advogado que representava o réu e o procurador responsável pelo acordo. Além disso, quando fala em “aliviar” para o empreiteiro, Bretas deixa claro que faz uma comparação com a pena de 43 anos aplicada a Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear – seguindo a lógica que rege os acordos de colaboração premiada, o almirante não poderia receber os mesmos benefícios de um delator e, por isso, sua pena foi bem maior. Mas Cavendish, um dos empresários presentes na famosa viagem de Cabral a Paris, em 2009, batizada como “farra dos guardanapos”, e cuja delação foi efetivamente concluída em 2018, também foi condenado por Bretas. Como ele aceitou revelar detalhes do esquema, viu-se sentenciado a quatro anos de prisão na primeira ação penal.

Foi com base nos anexos da delação de Nythalmar vazados no ano passado que a OAB representou contra Bretas no CNJ, pedindo o afastamento do juiz – o pedido, contudo, foi rejeitado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura. Ocorre que o acordo feito por Nythalmar com a PGR, mantido sob sigilo, travou no STJ. No fim do ano passado, a ministra Laurita Vaz se declarou impedida e o caso foi redistribuído para o ministro Herman Benjamin, que até agora não decidiu se o homologa ou não. Viabilizar o acordo de Nythalmar é essencial para o plano de aniquilar a Lava Jato fluminense, reconhecidamente o braço da operação que mais avançou sobre o Judiciário. Mas, como o caso segue paralisado no STJ, a estratégia patrocinada por Gilmar é agora tentar robustecer o processo que corre contra Bretas no Conselho Nacional de Justiça.

A tática, porém, pode não funcionar. As outras duas delações fechadas pela PGR que envolvem Marcelo Bretas estão ancoradas na tese de que Nythalmar tinha uma relação privilegiada com o magistrado — que, por sua vez, garantiria acesso a informações sigilosas e proteção a seus clientes com decisões favoráveis. A questão é que, no relatório produzido pela Polícia Federal sobre os arquivos encontrados no computador e nos celulares de Nythalmar, ao qual Crusoé teve acesso, não há nenhum indício dessa atuação de Bretas – ao menos é o que se sabe até agora. Com isso, só restaria o tal áudio, que os detratores da Lava Jato querem usar para desqualificar todo o trabalho da operação no Rio.

Os delatores anti-Lava Jato são José Antônio Fichtner e Sergio Côrtes, ambos alvos da operação. Os anexos ainda permanecem em sigilo, mas os relatos que miram o magistrado estão centrados na mesma abordagem que levou a OAB do Rio a representar contra Nythalmar em 2019, antes de ele virar uma arma contra a Lava Jato. José Antônio Fichtner, que também é advogado, é irmão de Regis Fichtner, ex-chefe da Casal Civil no governo de Sergio Cabral e preso duas vezes acusado de lavagem de dinheiro no esquema de corrupção comandado pelo ex-governador. Após ser alvo de busca e apreensão, em 2019, José Antônio Fichtner fechou um acordo de delação com a Lava Jato do Rio, homologado pelo próprio Bretas. Nele, admitiu que o irmão usou sobra de dinheiro de campanha para arrendar uma fazenda na Bahia e afirmou ter devolvido, em dinheiro vivo, para a irmã do deputado Aécio Neves o valor pago pela compra de um apartamento seu em Florianópolis. Os depoimentos foram gravados em vídeo e na presença dos advogados de Fichtner. Só que, em 2020, depois que a maré virou contra a Lava Jato, ele mudou de postura e passou a dizer que só delatou porque sofreu “tortura psicológica” do juiz Marcelo Bretas e dos procuradores.

Divulgação/Prefeitura de CamposDivulgação/Prefeitura de CamposAlvo da operação, Sergio Côrtes resolveu “delatar” a Lava Jato
No pedido de suspeição de Marcelo Bretas feito no ano passado, Fichtner coloca Nythalmar como protagonista da pressão psicológica para que fizesse a delação. Ele conta que o advogado o abordou durante o Carnaval de 2019, logo após a segunda prisão de seu irmão, com informações sigilosas sobre suas movimentações financeiras e dizendo que ele seria preso se não delatasse o próprio irmão. Segundo Fichtner, Nythalmar “contava vantagens da sua relação não só com o magistrado como com integrantes da força-tarefa, sem identificá-los”, e disse que, se fosse contratado “por alguns milhões de reais”, ele teria “proteção” e não seria delatado por outros clientes.

Fichtner não contratou o advogado e também não foi preso, mas sofreu uma busca e apreensão naquele mês, o que ele reputou ao fato de não ter contratado Nythalmar, só que sem apresentar qualquer prova. “Doente e pressionado pelas reiteradas afirmações de Nythalmar, no sentido de que quem falasse de Regis obteria a delação, seu estado de saúde o levou a criar a história das verbas de campanha e a sofisticá-la, afirmando, inclusive, que elas também teriam sido usadas em anos posteriores. Tudo consequência da mesma neurose que só a psiquiatria pode explicar”, diz o pedido de suspeição de Bretas feito no ano passado. Integrantes da força-tarefa classificam a teoria como “estapafúrdia”.

Mesmo assim, a teoria sem pé nem cabeça de Fichtner foi levada adiante por Lindôra Araújo, na PGR. A subprocuradora pediu o compartilhamento do acordo feito no Rio e homologado por Bretas e fez uma espécie de aditivo na delação, abrindo um anexo específico para tratar da relação do juiz com Nythalmar. O caso ficou sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, que é o relator da Lava Jato fluminense no Supremo. No último dia 8, o anexo foi enviado por Gilmar ao CNJ. Não satisfeito, o decano também decidiu enviar o material, mesmo sem ter sido homologado, para o Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, para uma eventual apuração sobre a conduta dos procuradores da força-tarefa.

Fellipe Sampaio/SCO/STFFellipe Sampaio/SCO/STFGilmar Mendes decidiu enviar o material sobre Bretas, mesmo sem ter sido homologado, para o CNMP
A corregedora responsável pela reclamação contra Bretas aguarda ainda o envio de um anexo da delação premiada feita no ano passado por Sérgio Côrtes junto à PGR, que também mira o juiz Marcelo Bretas com base na atuação de Nythalmar. Secretário de Saúde no governo Cabral, Côrtes já foi preso duas vezes e condenado por Bretas por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Ele tentou celebrar um acordo com a força-tarefa do Rio, mas as tratativas não prosperaram. Em 2020, quando investigava a atuação de Nythalmar, o próprio MPF apresentou como indício de possível exploração de prestígio uma mensagem de WhatsApp que o advogado enviou para Côrtes, afirmando ser “fundamental que você ‘receba’ o compromisso de solução do seu caso”. No ano passado, o ex-secretário firmou acordo com Lindôra no STJ, sob relatoria do ministro Félix Fischer, e o caso também virou munição contra a própria Lava Jato na ação contra Bretas no CNJ. O cerco ao juiz no conselho foi comemorado por políticos que abominam a operação de combate à corrupção, como o deputado petista Paulo Pimenta, que afirmou nas redes sociais, sem apresentar nenhum documento, que Bretas “vendia sentenças em troca de muito dinheiro, segundo as delações”. O juiz respondeu dizendo que irá processá-lo.

Crusoé já ouviu relatos de outros réus da Lava Jato que foram abordados por Nythalmar de forma bastante atípica dentro da cadeia, com a mesma “promessa” de solução dos casos, por meio de uma suposta relação de proximidade com Marcelo Bretas. Diante do atual cenário, estão dispostos a engrossar a fila de “delatores” anti-Lava Jato, para conseguir gerar suspeição sobre o juiz da 7ª Vara Criminal do Rio e, com isso, anular suas sentenças — foram 183 condenações em cinco anos. Uma estratégia que agora soa como música para os algozes da operação que tanto atacaram o instrumento da colaboração premiada. A dúvida é se, como disse Gilmar a respeito das delações que ele condena, o STF vai avaliar a legalidade e a higidez desses pactos.

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