RuyGoiaba

Parole, parole, parole

18.02.22

Por favor, sejam solidários a este colunista e me digam que vocês também ficaram viciados em Wordle. Para quem ainda não conhece: é um jogo que consiste em acertar palavras de cinco letras, em até seis chances. A primeira tentativa é puro chute, mas a partir dela o jogo vai indicando (por um sistema de cores) se as letras que você escolheu estão no lugar certo da palavra que tem de ser descoberta; se elas fazem parte, mas estão no lugar errado; ou se elas não existem naquela palavra. Há versões do jogo em praticamente todas as línguas ocidentais, incluindo várias em português, como Termo, Letreco e Palavra do Dia.

Lançado em outubro de 2021, o Wordle virou o que um boomer chamaria de febre — ou melhor, coqueluche — na internet, com milhões de usuários todos os dias. Tanto que, no final de janeiro, o New York Times comprou o jogo de seu criador, o engenheiro de software Josh Wardle, por um preço “na casa dos sete dígitos”, segundo o próprio jornal. Foi aí que, para usar uma expressão ainda mais antiguinha que febre e coqueluche, a porca começou a torcer o rabo.

Reportagens de veículos como a Newsweek e o site BoingBoing.net mostram que o New York Times decidiu barrar do Wordle uma série de palavras “insensíveis ou ofensivas”. Elas incluem não só termos geralmente empregados como palavrões, como whore ou bitch, mas também slave (escravo) e wench (muito usada nos tempos de Shakespeare para se referir a uma mulher jovem, mas que também tem o significado de “serva”). Vejam bem, não é que esses termos estejam proibidos de figurar como “palavra a descobrir” do dia: eles simplesmente são limados do dicionário usado no jogo (aparece a mensagem “not in word list”). Suponho que Bryan Ferry não possa nem pensar em cantar Slave to Love, muito menos Britney Spears sua I’m a Slave 4 U, perto desse povo tão zeloso.

Pensam que acabou? Tem mais: o jornal também decidiu excluir do Wordle uma série de palavras “obscuras” — de acordo com o porta-voz do NYT, a intenção é “manter o quebra-cabeça acessível a mais pessoas”. Um desses termos esquisitões que dançaram foi agora, importado da Grécia antiga e que existe com praticamente a mesma grafia em português (ágora, no sentido de “lugar de reunião”), além de estar na origem de palavras como agoraphobia (medo de espaços abertos ou públicos; agorafobia é, portanto, o oposto de claustrofobia).

Não sei o que é mais desolador nessa história toda. Minto, na verdade sei: já é chato que se perca a graça de adivinhar as “palavras difíceis” no menor número de tentativas possível porque o New York Times acredita que seu leitor médio é assim, sei lá, meio burrão. Mas muito pior é suprimir do dicionário — sim, porque foi isso que o jornal fez — palavras desagradáveis, para não ferir a suscetibilidade sabe-se lá de quem. Slave descreve uma situação degradante que ocorreu ao longo de toda a história da humanidade e acontece ainda hoje; o termo em si não é ofensa de cunho racial, já que houve escravidão dos mais variados tipos de povos (a palavra deriva de “eslavo”; surgiu, segundo o dicionário Merriam-Webster, “da frequente escravização dos eslavos na Europa Central durante o início da Idade Média”). E escondê-lo no Wordle não vai mudar em um milímetro a situação dos escravizados no mundo — embora talvez aplaque a consciência culpada dos leitores do NYT, que continuarão comprando roupas e eletrônicos produzidos por gente semiescravizada em alguma sweatshop asiática.

Nem vou falar aqui em George Orwell, novilíngua etc.: no fundo, isso é acreditar que a supressão de uma palavra possa resultar, magicamente, em alguma espécie de eliminação da coisa ruim que ela nomeia. O NYT parece a sua tia-avó dizendo “o que os olhos não veem, o coração não sente”, e você não pagaria 8 dólares por mês para ouvir a filosofia da sua tia-avó — e sem ganhar em troca aqueles Tupperwares cheios de comida, o que é pior. Em Parole, Parole, clássico da MPB (música popular brega) nos anos 70, a cantora italiana Mina Mazzini se irrita com o companheiro que lhe dirige palavras românticas vazias; hoje, o casal da canção esfregaria logo seu index prohibitorum na cara um do outro, antes mesmo do início da música. Livre-pensar, já dizia Millôr Fernandes, é só pensar.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Hoje a seção bem poderia se chamar A Goiabice da Semana de 22, que completou 100 anos no domingo passado. De um lado, tivemos Ruy Castro, o excelente biógrafo de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda, Garrincha e tantos outros, batendo o próprio recorde de bairrismo carioca e pendurando a comemoração oficialesca dos 50 anos do evento pelo regime militar, em 1972, na conta de Mário e Oswald de Andrade (curiosamente, para Ruy, a ditadura serve para “impugnar” modernistas já mortos naquela época, mas não Nelson Rodrigues, que estava vivo e a apoiava explicitamente). Aí, do outro lado, veio o Estadão, campeão de bairrismo paulista, e conseguiu dizer que a Semana “inaugurou a cultura no país” — ou seja, NÃO EXISTIA esse troço estranho chamado “cultura” no Brasil antes de 1922. Foi difícil conter as ganas de bater no pessoal com a minha estatuinha do Machado de Assis até ela falar “senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.

Como diria Grande Otelo vestindo a tanga de Macunaíma: ai, que preguiça!

Grande Otelo e sua preguiça mariodeandradiana em “Macunaíma”, o filme de 1969

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  1. A entrevista do Rui Castro foi sensacional, um banho de cultura, com seus 5 mil volumes de livros para calar a boca dos pseudo-intelectuais do Roda Viva. A goiabice da semana foi a do Sales, que, ao contrário do Rui, nunca deve ter aberto um livro na vida.

    1. lá ao incansável da tal semana já está cheirando aa mofo paulista.

    2. Muito bem Lucia! Ruy Castro é o cara. Nelson Rodrigues por consequência, também.Na minha opinião essa badala incansável

  2. Sempre essencial! Não sabia p q era wordle, eswuci de dar parabéns pra semanade22 e, como se ñ bastasse, desconhecia o livre-pensar do Millôr... que mostra saber tudo sobre liberdade.. aquela q ñ é "de" nada, é só livre!

  3. O mais terrível é constatar que NYT comprou o game somente para poder tornar (ou ao menos tentar) o vício "respeitável"...bando de "cheiradores do marrom" como poderia ter dito Paulo Francis...

  4. É época de colheita de goiaba. Essa semana colhi algumas . E comi duas, tão deliciosas quanto os texto do Rui.

  5. Quando vejo o Grande Otelo como o Macunaíma, extraordinário na sua representação do “herói” sem caráter, enxergo o Lula, Macunaíma tornado real pela mídia brasileira, graças ao maquiavélico general Golberi.

    1. De onde surgiu a expressão menas’ como Antonina de en passant?

    1. Eu também pensei que a goiabice fosse a do Salles! Aquilo foi de lascar🙄

  6. Essa do jornal é mesmo de doer, mesmo em se tratando do NYT. Nivelação por baixo. Melhor voltar a jogar Senha, de adivinhar os pininhos coloridos então.

  7. Bom dia, Goiaba! Obrigada por mais um texto perfeito sobre a idiotice politicamente correta de certos órgãos de imprensa, e pelas inúmeras referências contidas em seus textos. Obrigada por trazer alívio para mais uma sexta-feira nesta parte do infernos chamada Brasil.

    1. Aqui tá de noite. C tá atrasado pru encontra no mercado

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