Adriano Machado /Crusoé

CPI contra Aras

Insistência do PGR em atuar como advogado informal de Bolsonaro, desta vez para blindá-lo dos crimes cometidos na pandemia, o coloca na mira dos integrantes da comissão de inquérito. Acuado, ele tenta reagir
24.02.22

A submissão do procurador-geral da República aos interesses de Jair Bolsonaro, motivo de constrangimento há mais de dois anos para integrantes do Ministério Público Federal, colocou Augusto Aras no epicentro de uma nova crise institucional. Como em outros casos em que beneficiou o presidente e seus aliados, o PGR passou a agir claramente para livrar Bolsonaro das acusações de crimes apontados pela CPI da Covid. Em reação à postura do procurador, integrantes da comissão de inquérito lançaram uma inédita mobilização pelo seu impeachment — a Constituição Federal estabelece que cabe ao plenário do Senado afastar o chefe do Ministério Público. Mesmo que um processo de impedimento não prospere, por falta de condições políticas, a guerra está aberta.

Há quem diga no próprio MPF que as sucessivas manifestações de blindagem a Bolsonaro guardam relação com o sonho ainda acalentado por Aras de ser indicado ao Supremo Tribunal Federal numa improvável reeleição. Independentemente das razões que o levam a continuar atuando quase como advogado informal do presidente, o PGR parece, pela primeira vez, estar acuado. E resolveu reagir, tanto publicamente como nos bastidores.

Nos últimos dias, Aras sacou o telefone e ligou para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Na conversa, reclamou da virulência dos parlamentares. Mirou principalmente Simone Tebet, pré-candidata do MDB ao Planalto. Em paralelo, destacou uma equipe de três procuradores para conversar com os integrantes da cúpula da CPI, na tentativa de serenar os ânimos. Não funcionou. A reunião transcorreu em clima tenso. Durante o encontro no gabinete de Randolfe Rodrigues, da Rede, vice-presidente do colegiado, para tentar aliviar a barra do chefe do MP, os procuradores afirmaram que o Ministério Público Federal não dispunha de pessoal suficiente para analisar os 10 terabytes de documentos enviados pelo Senado. Foram além: disseram que, em meio ao material, não haviam encontrado provas contra Jair Bolsonaro e nem contra o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, dois dos principais alvos da comissão parlamentar de inquérito — só o presidente teve o indiciamento proposto por supostamente cometer nove crimes. Exaltado, Omar Aziz, que presidiu a CPI, reagiu. “Vocês precisaram de mais de 100 dias para aparecer aqui e dizer que não têm pessoal para olhar as provas?”, esbravejou.

ReproduçãoReproduçãoRicardo Barros e Jair Bolsonaro: aliados do presidente são blindados pelo PGR
Na mesma reunião, a cúpula da CPI reclamou de a PGR não ter aberto inquérito para investigar a atuação de Bolsonaro e seus aliados durante a pandemia, limitando-se a apresentar apenas petições. A consequência prática da troca de nomenclatura é gritante. Um inquérito é um instrumento formal previsto em lei e está sujeito ao cumprimento de prazos processuais. Nele, é praxe que a Polícia Federal seja utilizada para aprofundar as investigações. Já em uma petição, a polícia não pode ser designada para atuar e não há necessidade de cumprimento de prazos para que diligências sejam feitas. “A petição não se submete às regras do inquérito. O que se comenta é que Aras teria usado esse artifício para não caracterizar inércia da PGR e, ao mesmo tempo, fazer com que os alvos da CPI, como o presidente Bolsonaro, não fossem formalmente investigados”, afirmou um integrante do Ministério Público Federal.

Para piorar a situação, as petições propostas pela PGR ainda tramitam em segredo, o que impede a cúpula da CPI de acompanhar seus avanços ou comprovar a paralisia dos trabalhos. Aras só pediu que os sigilos fossem levantados na segunda-feira, 21, após a ameaça de impeachment feita por Randolfe. Crusoé apurou que, por ora, a atitude do PGR serviu para arrefecer os ânimos. A ideia é tentar estabelecer uma trégua até abril, prazo que a cúpula da CPI estipula como limite para que diligências e andamentos processuais evoluam. “Aras tem três caminhos a seguir: investigar, condenar ou absolver. Mas não dá para dizer que não encontra provas e, assim, participar de um processo de enrolação”, afirmou Renan Calheiros, que foi relator da CPI.

O desconforto de parlamentares com a postura de Augusto Aras cresceu a partir de uma entrevista do PGR na semana passada. Aras afirmou à CNN que a comissão parlamentar de inquérito não havia apresentado provas da omissão do governo. “A CPI dizia entregar as provas que estariam vinculadas aos fatos de autoria daquelas pessoas indiciadas. Ocorre que não houve a entrega dessas provas. A PGR recebeu um HD com 10 terabytes de informações desconexas e desorganizadas”, disse o procurador. No dia seguinte, o caldo entornou de vez. Durante uma sessão da Comissão de Direitos Humanos, a senadora Simone Tebet rebateu a fala de Aras e fez um duro discurso contra o PGR. Disse que ele agiu com “covardia e desonestidade intelectual” e declarou apoio ao impeachment. “Não cabe a uma comissão parlamentar de inquérito fazer o papel e o trabalho que é da Procuradoria-Geral, que é juntar as provas. Se nós conseguimos em seis meses levantar tudo isso, como é que em 120 dias a PGR não o fez? Não o fez por inércia, não o fez por omissão, não o fez por parcialidade, porque ele, em vez de servir e representar esse órgão máximo, simplesmente esquece o seu papel, a sua atribuição, para ser um mero servo do presidente da República”.

Divulgação/MDBDivulgação/MDBAo citar a “covardia e a desonestidade” do PGR, Simone Tebet irritou Aras
O fogo cruzado vai continuar, mas a possibilidade de impeachment do PGR é vista como remota no Congresso. A aliados, Pacheco tem dito que Aras foi sabatinado em agosto do ano passado e que não faria sentido destituí-lo do cargo seis meses após o nome ter sido aceito pelo Senado. “Não faz sentido manter alguém no cargo se restar comprovado que houve crime de responsabilidade”, rebate Randolfe, que pretende se encontrar com Pacheco nos próximos dias para discutir o tema.

O presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz, do PSD, não demonstra empolgação com um possível afastamento de Aras. “Que Aras é um cidadão muito abaixo daquilo que se espera de um procurador-geral da República, isso é notório. Só que a chance de impeachment é muito baixa, estamos em ano eleitoral e o país tem problemas muito complexos para enfrentar. Dificilmente haveria energia política suficiente para isso”, faz coro Alessandro Vieira, do Cidadania.  Mas Aziz é peremptório com relação às omissões do procurador-geral da República. “Que outras evidências ele quer? O presidente não propagou medicamentos comprovadamente ineficazes? Nós mostramos as provas, elas são públicas”, afirma Aziz.

O abismo entre a lentidão do trabalho da PGR e o avanço das investigações das procuradorias regionais da República ou dos ministérios públicos estaduais é usada por senadores ao direcionar as críticas a Aras. Ao fim dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito, os senadores enviaram as provas relacionadas a investigados sem foro privilegiado à primeira instância. Ainda não houve desfecho em nenhum dos casos, mas os procuradores e promotores responsáveis pelos casos já conseguiram avançar com relação às evidências levantadas pela CPI e há dezenas de procedimentos abertos – quase todos com trâmite público, sem sigilo. A Procuradoria da República no Distrito Federal, por exemplo, abriu 12 processos a partir das provas obtidas pelo Senado. Desses, somente um foi arquivado – a apuração envolvia a reparação por dano moral coletivo. A peça foi arquivada, segundo o MP, porque já existe uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal que busca indenização para famílias de vítimas da Covid.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéNa primeira instância, procedimentos avançam. A médica Nise Yamaguchi está entre os alvos
No Amazonas, estado que foi um dos epicentros da pandemia no começo de 2021, o MP ajuizou ação de improbidade contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em virtude das omissões do governo na compra de oxigênio hospitalar. Na Procuradoria da República em São Paulo, há dois procedimentos abertos: um relacionado às irregularidades em tratativas com a Precisa Medicamentos e outro que apura crimes da operadora de saúde Prevent Senior. No Ministério Público Estadual de São Paulo, há outras 13 investigações em andamento, que são desdobramentos da CPI da Covid. Entre os alvos, estão o empresário Carlos Wizard e a médica Nise Yamaguchi, que fizeram ampla propaganda de medicamentos ineficazes, como a cloroquina.

O Supremo Tribunal Federal começou a levantar na noite de quinta, 24, o sigilo das investigações relacionadas à CPI que tramitam na corte. Ao que tudo indica, com as apurações ganhando a luz do sol, Aras terá ainda mais trabalho para justificar sua subserviência quase atávica ao presidente.

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