Alan Santos/PR e Ricardo Stuckert/Lula/TwitterBolsonaro e Lula

O PT fez escola

As piores práticas políticas adotadas hoje pelo bolsonarismo, como o 'nós contra eles', as fake news, os ataques à imprensa e os blogs sujos, tiveram origem no petismo
24.02.22

Disputas eleitorais com ataques abaixo da linha da cintura não são um fenômeno recente no Brasil. Ascenderam com a redemocratização, mas ganharam forma e propulsão com quem agora é o ex adversus do bolsonarismo, o PT. Marina Silva é uma das mais célebres vítimas da campanha de ódio do petismo. Mesmo estando situada no espectro de esquerda, ou seja, no campo ideológico do PT, a ex-senadora e ministra do Meio Ambiente no governo do ex-presidente Lula foi impiedosamente alvejada há oito anos pela propaganda difamatória que abriu caminho para o atual clima bélico no qual o país está mergulhado. “O uso da violência política, como estratégia de chegar ao poder, não é de agora”, disse Marina, em entrevista a Crusoé (leia ao final desta reportagem).

Marina Silva tem o chamado lugar de fala para tratar do tema. Quando passou a ameaçar a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, a então candidata do PSB viu sua reputação ser enlameada pela campanha do PT. O marqueteiro João Santana, que hoje trabalha com o presidenciável Ciro Gomes, foi o artífice de uma série de vídeos com conteúdos direcionados a destruir a imagem de Marina e a demolir as propostas do seu plano de governo. Ninguém esquece da famigerada peça na qual o PT sugeria que a autonomia do Banco Central retiraria a comida do prato dos brasileiros enquanto banqueiros davam gargalhadas. Depois, a Lava Jato provou, e o próprio marqueteiro confessou, que a engrenagem foi bancada com dinheiro saqueado dos cofres públicos.

Reprodução/TV CulturaReprodução/TV CulturaJoão Santana, hoje com Ciro, foi o mentor da campanha que aniquilou Marina
Aquela campanha rebaixou o nível dos ataques entre adversários políticos em uma eleição e, depois dela, a relação de Marina com seu antigo partido nunca mais foi refeita. “Essa visão de encetar o ódio como estratégia de chegar ao poder, quem fez isso foi João Santana, quem fez isso foi a campanha da Dilma, que inaugurou isso com todas as letras aqui no Brasil. Isso fez um grande mal ao Brasil. O que você tem hoje é o Bolsonaro. Lamento profundamente que isso tenha sido inaugurado pela campanha da presidente Dilma, mas infelizmente foi, tendo João Santana como mentor e operador”, afirma Marina, ao revisitar o episódio. Nesta semana, o senador Randolfe Rodrigues, correligionário de Marina na Rede e um dos coordenadores da campanha de Lula, disse que vai pedir para o petista ligar para a ex-ministra para tentar uma reaproximação. Não será simples. As feridas parecem não estar cicatrizadas, a julgar pelo tom de Marina na entrevista a Crusoé.

Pudera. Além de todo massacre a que a ex-senadora foi submetida em 2014, quando Dilma e Marina ficaram numericamente empatadas em primeiro lugar nas pesquisas, a campanha do PT chegou a usar a fé da ex-senadora para atacá-la, chamando-a de “evangélica fervorosa” – oito anos depois, todos os presidenciáveis, incluindo Lula, se ajoelham em busca do apoio dos religiosos. “Foram ataques sujos, cruéis e baixos, além de desnecessários em se tratando de uma campanha de duas candidatas mulheres, do mesmo campo político. A liberdade de expressão não autoriza ninguém a cometer crimes, incitar à violência e atacar reputação para isso”, lembra Beto Albuquerque, vice de Marina à época.

Dilma foi beneficiária do “nós contra eles” repetido hoje por bolsonaristas
A estratégia, como todos lembram, deu certo. Marina derreteu na reta final e ficou fora do segundo turno. Ressentida com o modus operandi petista, declarou apoio ao tucano Aécio Neves no segundo turno. O resto da história é conhecido. “A forma como se ganha determina a forma como se governa. A de 2014 foi uma campanha feita com muita mentira e ódio. Deu no que deu. A campanha de Bolsonaro foi feita com muita mentira, falta de propostas e ódio. Deu no que deu”, compara Marina.

Como é possível notar hoje, o PT fez escola. Abaixo, seguem exemplos das práticas políticas iniciadas pelo petismo que não só foram reproduzidas como aperfeiçoadas pelo bolsonarismo:

‘Nós contra eles’

Nas três eleições que disputou comandando o país, o PT adotou como estratégia transformar a disputa pelo Planalto em uma espécie de plebiscito, no qual o eleitor teria apenas duas opções, votar no PT ou contra o PT. O objetivo era usar a influência de quem controla a máquina federal para atrair aliados para sua órbita – logo no primeiro mandato de Lula se descobriria que apenas o fato de “ser governo” não seria suficiente para atender aos propósitos hegemônicos da legenda, o que fez com que o PT passasse a comprar com dinheiro dos esquemas de corrupção o apoio de outros partidos, a fim de isolar o principal adversário da época, o PSDB. Mas foi em 2009, quatro anos depois da eclosão do escândalo do mensalão, quando decidiu lançar a então ministra Dilma Rousseff à sua sucessão, que Lula cunhou a expressão “nós contra eles”, transformado num mantra a ser repetido pela militância petista.

Naquela época, Ciro Gomes e Marina Silva, dois ex-ministros de Lula, já ensaiavam suas candidaturas. Para o PT, era preciso minar qualquer chance de ascensão de outra liderança política no campo da esquerda, que não a dele. Com a nítida conotação de vender ao eleitor a ideia de batalha do bem contra o mal, a retórica do “nós contra eles” ajustou-se agora às conveniências dos atuais inquilinos do Planalto, que temem o crescimento de uma candidatura competitiva no campo do centro. Hoje, próceres do bolsonarismo lançam mão da mesma retórica, com o intuito de transformar a eleição deste ano em uma disputa plebiscitária. “Somos nós contra eles”, disse o ministro do Trabalho, Onyx Lorenzoni, durante um evento em Brasília, em setembro do ano passado.

“A divisão entre ‘nós e eles’ teve como ensaio a ‘herança maldita’ (usada para se referir ao legado do governo FHC), que foi dando fôlego para o PT ir testando os limites dos candidatos. Marina sofreu ataques pesados, mas o PT só fez aquilo porque já tinha ganhado força testando até onde ia a fábula da herança maldita, uma fantasia retórica de campanha. O PT ficou confortável”, avalia Rodrigo Prando, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Os blogs sujos como embrião das milícias digitais bolsonaristas

Ao longo das gestões petistas, os conteúdos favoráveis ao Planalto eram publicados por uma série de blogs parceiros do petismo. Parceiros não apenas ideológicos, mas também comerciais. De janeiro a dezembro de 2015, por exemplo, 13 sites pró-Dilma embolsaram 5,1 milhões de reais da verba publicitária do governo. No ano anterior, quando a petista foi reeleita, os repasses feitos principalmente pelas grandes estatais, como Petrobras e Caixa Econômica Federal, tinham sido ainda maiores. Criados por jornalistas simpatizantes do PT, com experiência na imprensa tradicional, alguns blogs chegaram a receber repasses mensais de mais de 100 mil reais. Na maior parte das vezes, atuavam como patrulheiros de veículos de comunicação que faziam uma cobertura crítica ao governo, como ensinam os manuais do bom jornalismo, fornecendo uma narrativa “alternativa” aos escândalos revelados pela imprensa. Quando faltava criatividade para rebater as notícias, atacava-se o mensageiro. Não raro com muita fake news e ódio  — qualquer semelhança com o modus operandi atual da lavra de Carluxo e companhia não é mera coincidência.

Adversário de Dilma em 2010, o tucano José Serra chamou as páginas financiadas pelo petismo de “blogs sujos” depois que ele se tornou o alvo da vez. O mais contraditório — algo comum na esquerda brasileira, diga-se — é que os ataques aos adversários do PT eram baseados, justamente, em reportagens produzidas pela mesma imprensa que os petistas tanto condenavam. Sem capacidade para apurar suas próprias histórias, muitos blogueiros se valiam das matérias veiculadas por jornais e revistas para empacotá-las da forma mais conveniente. As postagens, muitas vezes, resultavam em memes que depois eram difundidos nas redes sociais. Isso aconteceu, inclusive, com Marina Silva, após a publicação de uma reportagem mostrando que uma das herdeiras do banco Itaú havia feito doações para o instituto de sustentabilidade criada pela ex-ministra, um ano antes das eleições de 2014.

A fonte de recursos para a “patrulha” petista secou após o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, mas a mesma prática foi adotada — e piorada — pelo governo de Jair Bolsonaro, com as milícias digitais. Igualmente financiados com verbas da publicidade estatal, blogueiros e influenciadores bolsonaristas alcançaram um patamar inédito de ataques, criando e distribuindo conteúdos falsos ou distorcidos sobre opositores ao mesmo tempo que também investem contra as instituições democráticas. Essas práticas colocaram as principais lideranças da falange bolsonarista no centro de dois inquéritos da Polícia Federal que tramitam no Supremo Tribunal Federal. Após quebrar os sigilos telemáticos e bancários do grupo, apreender computadores e celulares e até prender alguns de seus expoentes, a PF concluiu que essas milícias digitais agiam de forma orquestrada e sistemática para alcançar objetivos ideológicos, utilizando também a estrutura do governo Bolsonaro, o chamado gabinete do ódio – como ficou conhecido o grupo de assessores do presidente sediados no terceiro andar do Palácio do Planalto, que se dedica a disseminar notícias comprovadamente falsas e a tentar destruir reputações de adversários do governo.

Fake news

As práticas apontadas pela PF e por investigação patrocinada pelo Facebook representam a institucionalização de uma estratégia eleitoral que se comprovou exitosa, além de criminosa. O episódio da “mamadeira erótica” que seria distribuída com o chamado “kit gay” nas escolas, caso o candidato do PT vencesse a eleição de 2018, baixou a régua do debate eleitoral a um nível jamais visto. Além de perfis falsos nas redes sociais, aliados de Bolsonaro usaram disparos em massa por WhatsApp para impulsionar fake news.

O início de 2022 não dá sinais de que o debate deste ano será mais civilizado, especialmente no que depender do titular do Palácio do Planalto. O presidente voltou à carga da velha tática de ataque ao sistema eleitoral que sempre o elegeu, pondo em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e dando munição para a disseminação de boatos. Uma das peças de desinformação diz que as urnas não têm selo do Inmetro e, por isso, devem ser recolhidas a exemplo de outros produtos que não têm a certificação – afirmação mentirosa, já que o órgão não tem competência para fiscalizar o equipamento da Justiça Eleitoral. Em junho do ano passado, Crusoé mostrou como Bolsonaro usou um relatório paralelo produzido por um auditor bolsonarista do Tribunal de Contas da União para deturpar informações sobre a pandemia, em benefício do governo.

Quando o termo fake news nem sequer existia, o PT já tentava criar narrativas falsas contra adversários, para inviabilizá-los eleitoralmente. Um dos exemplos foi a disseminação de boatos de que candidatos rivais iriam acabar com o programa Bolsa Família, se vencessem as eleições. O afã por munição para aniquilar os oponentes levou petistas a protagonizarem, em 2006, o notório escândalo dos aloprados. O termo foi usado pelo próprio Lula para definir e se afastar do grupo que tentou comprar por 1,7 milhão de reais um dossiê fajuto contra José Serra – na ocasião, o tucano disputava com o petista Aloizio Mercadante a corrida ao governo paulista. A ideia era implicá-lo na Máfia dos Sanguessugas, acusada de desviar verba destinada à compra de ambulâncias. Na época, a PF prendeu militantes do PT flagrados com uma mala de dinheiro vivo. A dinheirama em espécie seria usada para comprar o material entregue por empresários do Mato Grosso. Executivos da Odebrecht revelaram anos depois à Lava Jato que as notas tinham saído do caixa dois da cervejaria Itaipava. Ninguém foi punido.

Ataques à imprensa

Fiscalizar ações de governantes é função precípua da imprensa profissional, mas nem todos os fiscalizados reagem bem às críticas. Bolsonaro é canhão solto no convés contra jornalistas e veículos de comunicação. Seja nas famosas lives, nas redes sociais, seja em eventos públicos ou no cercadinho do Palácio da Alvorada, repórteres e comentaristas são alvos de palavrões, ofensas e insultos de cunho sexual – quando não ouvem um textual “cala boca” do próprio presidente. O mandatário nunca escondeu sua aversão à imprensa que não adere a ele. Já durante a campanha de 2018, antes mesmo de ser eleito, ameaçou cortar verba pública de meios de comunicação que publicavam reportagens críticas, o que de fato foi feito no início do governo, e chegou a incentivar empresas a deixar de anunciar em mídias impressas.

A mesma ira contra a imprensa foi alimentada por anos por Lula e pela militância petista. O ex-presidente dizia que os veículos de comunicação perseguiam seu governo, assim como faz Bolsonaro, e sempre manteve vivo o desejo de regular a mídia, tema que voltou à pauta novamente na atual campanha, após a entrada do ex-ministro Franklin Martins na equipe de comunicação do chefe petista. A relação do PT com a imprensa, esgarçada desde que o partido ascendeu ao poder, agravou-se com a deflagração da Lava Jato e do processo de impeachment de Dilma. Em 2016, na tentativa de encobrir os escândalos que pululavam contra a legenda, o PT disseminou a narrativa da “mídia golpista” – em março do mesmo ano, petistas chegaram a protestar em frente à sede da TV Globo, no Rio de Janeiro, contra o que chamavam de perseguição da emissora a Lula durante cobertura da Lava Jato. Dois anos depois, manifestantes ligados ao PT invadiram a sede da empresa. Em 2019 e 2020, a história se repetiu sob o governo Bolsonaro: macaqueando os petistas que hoje criticam, militantes bolsonaristas protestaram e fizeram carreata em frente à sede da emissora em Brasília.

Corrupção: do mensalão à rachadinha

Entre tantas semelhanças que simbolizam o bolsopetismo, a mais danosa certamente é a atuação de ambos diante dos casos de corrupção. Do mensalão ao petrolão, os governos petistas colecionam escândalos envolvendo desvios de dinheiro público. Resultado: sangraram durante a Lava Jato e tiveram seu principal líder preso por ter recebido vantagens indevidas das empreiteiras que saquearam a Petrobras. Eleito com discurso anticorrupção, na esteira do antipetismo que ganhou impulso em razão desses mesmos escândalos, Bolsonaro prometeu ser implacável com eventuais denúncias, mas a retórica rapidamente se provaria uma farsa.

Desde o início do mandato, o atual inquilino do Planalto vive sob a sombra das rachadinhas, o desvio de salários pagos com dinheiro público aos funcionários dos ex-gabinetes de dois de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro e o vereador carioca Carlos Bolsonaro. As suspeitas recaem sobre o próprio pai, no período em que ele foi deputado federal, uma vez que alguns funcionários acusados de devolver parte do dinheiro também trabalharam no antigo gabinete do atual presidente. Para proteger a própria família, Bolsonaro não só colocou no bolso o discurso de combate à corrupção, como passou a interferir politicamente em órgãos de investigação e controle, como a própria Polícia Federal.

Na campanha deste ano, onde as máquinas que operam no submundo da política devem usar e abusar de narrativas mentirosas e propagação do ódio, não faltará repertório para as acusações entre os dois principais adversários e, principalmente, para aniquilar qualquer ameaça à confortável polarização entre Lula e Bolsonaro que possa surgir no campo da terceira via. “O medo é um enorme mobilizador, uma parte fundamental das decisões políticas perpassa as emoções. O medo e as coisas mais esdrúxulas geram engajamento e compartilhamento”, afirma o cientista político Rodrigo Prando.

Leia os principais trechos da entrevista da ex-senadora Marina Silva a Crusoé:

 

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMarina Silva diz que campanha do ódio e da mentira começou com o PT
 

Em agosto do ano passado, a sra. disse que seria “um erro histórico” repetir a polarização de 2018 e que iria trabalhar para construir alternativas, mas o caminho para terceira via parece estreito a oito meses da eleição. Há tempo para reverter o quadro?
Tem uma situação que nos faz pensar que uma repetição está posta, a da polarização. A gente vê, no meu entendimento, um empobrecimento do debate político. Derrotar o Bolsonaro é tarefa de todos os democratas do país. No entanto, a pergunta que se deve fazer é se, ao derrotar o Bolsonaro, derrota-se também o bolsonarismo. A gente tem que inverter essa equação. Isso que eu vinha colocando, no campo dessa alternativa à polarização. Ao mesmo tempo que se derrota Bolsonaro, precisamos afirmar propostas e processos políticos que tornem o Brasil vitorioso. Isso é muito mais que uma guerra entre o bem e o mal, que acaba enfraquecendo o debate político. Precisamos discutir o que é mais importante para um processo de país, que nos ajude a enfrentar o problema de 14 milhões de desempregados, das 2 milhões de crianças que não sabem ler nem escrever no nosso país, a destruição da Amazônia, o combate às desigualdades sociais, o fortalecimento da nossa democracia. Até agora sinto que as candidaturas não estão fazendo o debate para reconhecer que as forças políticas que assumiram o poder após a redemocratização falharam na consolidação da nossa democracia. Tanto falharam que o que nasceu após o período PSDB e PT foi o Bolsonaro. O debate que está posto é muito mais que a derrota do Bolsonaro. Ao fazer esse debate, precisamos apresentar propostas e ter atitude de reconhecer onde erramos. E pensar como corrigir nesses erros daqui para a frente. Não é só uma discussão entre o bem e o mal.

Ciro Gomes tem feito sinalizações de que gostaria de ter a senhora como vice na chapa, mas hoje tem João Santana como marqueteiro, o mesmo que, em 2014, fez ataques fortes à senhora, em um momento em que crescia na campanha. Sua mágoa com João Santana é maior do que a disposição de se unir a Ciro?
Não reduzo Ciro Gomes ao João Santana. O Ciro é uma pessoa pela qual tenho respeito, trabalhamos juntos. Construímos uma relação de respeito político e pessoal. Em relação à questão do João Santana, temos uma posição política diferente. E a minha posição  em relação ao uso da violência política, como estratégia de chegar ao poder, não é de agora. Em 2010, fiz uma campanha colocando no meu programa que não iríamos trabalhar com a lógica de desconstrução de biografias. Iríamos apresentar propostas, criticar o que deveria ser criticado, mas jamais utilizar estratégias para demolir adversários. Isso é uma percepção da política da polarização, do ódio que estava sendo colocado no processo político já ali. Em 2014, esse processo foi materializado na campanha da presidente Dilma por uma orientação política da campanha, e o João Santana foi o operador. Então, o que eu tenho não é mágoa, é uma percepção de que política não se faz com ódio e com mentira. Hoje, se a gente tem a pulverização do ódio espalhado inclusive na sociedade, é porque tivemos a partir de 2014 uma experiência de ponto impulsionador dessa estratégia de ódio que se espalhou nas diferentes dinâmicas políticas da sociedade. Então, não é mágoa. As críticas que eu faço são concretas e elas têm, se for buscar na minha prática política, uma verdade histórica. Quando fui senadora, ministra, sempre trabalhei com diálogo e enfrentando situações de divergência muito fortes. Em primeiro lugar, está o Brasil. Não vai ser com ódio e com Centrão, que sempre esteve na mão de todos os governos, que vai se fazer transformações. Não responsabilizo só o PT. O PT teve o comando político. Não se trata de mágoa. Trata-se de concepção diferente. Tenho divergência políticas. Desde 2010, critico a polarização. Essa visão de encetar o ódio como estratégia de chegar ao poder, quem fez isso foi João Santana, quem fez isso foi a campanha da Dilma, que inaugurou isso com todas as letras aqui no Brasil. E eu tenho divergências em relação a isso. Isso fez um grande mal ao Brasil. Não exclusivamente por isso, mas também por outros erros cometidos, o que você tem hoje é o Bolsonaro. Isso se materializa hoje naquilo que sem nenhum pudor se opera de dentro do Palácio do Planalto, que é o gabinete do ódio.

O presidente do PDT, Carlos Lupi, já disse que seria necessário aparar arestas para viabilizar uma aliança sua com Ciro. Na hipótese de aceitar ser vice de Ciro, a senhora conseguirá  ignorar, ou superar, a presença de João Santana na campanha?  
Estou indo para o caminho de debate de ideias e propostas, que sejam coerentes com a viabilização disso. A forma como se ganha determina a forma como se governa. A de 2014 foi a campanha feita com muita mentira e ódio. Deu no que deu. A campanha de Bolsonaro foi feita com muita mentira, falta de propostas e ódio. Deu no que deu. O debate que estou fazendo não é questão de ser vice ou não. É de contribuir para melhorar a qualidade do processo político, que consolide a democracia e enfrente problemas que o Brasil está vivendo. Não podemos ficar discutindo nome independente da visão, da proposta e do processo pelo qual se quer chegar aos objetivos. O poder não é o fim em si mesmo, é a instrumentalidade. O vice é uma escolha do candidato. Fui candidata três vezes e em todas as vezes pude escolher o vice que eu achava que era o melhor.

Ciro chegou a convidá-la para ser vice? Conversaram algo nesse sentido?
O que conversei com Ciro em todos diálogos que tivemos não envolvia discutir o vice ou não vice. Discutimos ideias e propostas para o Brasil. Nossa porta-voz, a (ex-senadora) Heloisa Helena, e o presidente (Carlos Lupi) tiveram alguns diálogos prospectando ideias. Obviamente para a Rede e para mim a questão do programa (de governo) é fundamental. Claramente tenho visão sobre o desserviço que a campanha do ódio de 2014 prestou à democracia e à sociedade brasileira. Foi um grande desserviço e, lamentavelmente, eram duas mulheres candidatas. Lamento profundamente que isso tenha sido inaugurado pela campanha da presidente Dilma, mas infelizmente foi, e tendo João Santana como mentor e operador.

Nas últimas semanas, tem se falado que Lula pretende tentar uma reconciliação para tê-la na campanha dele e liderar a pauta ambiental. Depois de romper com PT em 2014, a senhora entende que há caminho para a reconciliação?
Tenho debatido as questões do Brasil, e uma das questões que tenho levantado é que, no caso do PT, mas também do PSDB, é preciso reconhecer que erraram, e de forma grave, na condução que fizeram após a reconquista democrática. Uma questão fundamental é reconhecer esses erros. Não apenas os erros do ponto de vista ético, os erros de, por exemplo, não ter institucionalizado conquistas importantes para sociedade, erros de não ter dialogado quando era muito mais pertinente uma conversa entre PT e PSDB, entre FHC e Lula. No meu entendimento, a democracia não se fortaleceu, não se trabalhou para esse fortalecimento político e institucional da democracia. E quando falo em falhas, não me coloco de fora. É fundamental dialogar na democracia. Quanto mais o campo progressista, que precisa fazer o contraponto ao Bolsonaro. Tem que ter diálogo. Mas precisamos reconhecer onde erramos e falhamos. E saber o que queremos construir daqui para a frente. Até agora, nenhuma candidatura colocou a questão da sustentabilidade como sendo política estratégica, transversal a todas as ações do governo. Não adianta só falar em pontos. Ao mesmo tempo que é possível reduzir emissão, não pode ficar só nisso aí. Tem que dizer o que fará na Amazônia. Belo Monte não pode ser repetida, esses são compromissos que precisam ser assumidos. Como se dará crédito para a agricultura brasileira, onde mais de 200 milhões de reais são dados sem nenhuma contrapartida ambiental? Tenho visto nos jornais, nas redes sociais, essas questões (convite para integrar a campanha do PT). E, pelo que tenho acompanhado, são apenas manifestações que são postas nos jornais, associadas a pessoas e interlocutores. Agora, eu tenho uma visão de Brasil e acho que é um empobrecimento a gente focar o debate político, no meio dessa crise tão grande que vivemos, apenas na perspectiva de promover a necessária derrota do Bolsonaro. É preciso tornar o Brasil vitorioso.

Ainda espera um pedido de desculpas do PT devido a campanha difamatória feita contra a senhora em 2014?
Não estou personalizando essas coisas, tenho divergências políticas, como eu disse. Acho que, se tem um pedido de desculpas a ser feito, é para a sociedade brasileira, pelos prejuízos que isso causou à democracia. Ataca-se a democracia não só quando as instituições são negadas, a sua autonomia, mas também quando a verdade é distorcida, quando você usa e abusa do poder econômico para obter resultados eleitorais. Penso em questões mais amplas. Será que não reconhecemos absolutamente nada em relação ao por que chegamos aqui? A maioria de nós subestimou em 2018 o Bolsonaro como candidato. Dificilmente o Brasil iria apostar em alguém tão despreparado, tão desqualificado. Agora já sabemos que não é apenas um Bolsonaro, ele tem milhões de Bolsonaros que estão aí nessa agenda anticivilização, ciência, direitos humanos e meio ambiente. Nesse momento, temos que fazer o debate colocando o foco naquilo onde erramos, para não repetir os erros. Não podemos nos transformar naquilo que a gente combate. Podemos até não fazer as mesmas coisas que o Bolsonaro, e não fazemos, mas temos que o tempo todo ficar vigilantes para que não reproduzamos práticas que contribuem para que figuras como Bolsonaro surjam na realidade política do país.

A pauta do meio ambiente foi desmontada pelo governo Bolsonaro. Na sua avaliação, o que o próximo governo vai precisar fazer para reverter a imagem de que o Brasil não age para proteger a Amazônia?
Para reverter a imagem do Brasil, é preciso reverter na prática todos os retrocessos do governo Bolsonaro e os que começaram a acontecer a partir de 2012, porque tem uma genealogia de coisas que foram sendo fragilizadas, embora não na intensidade que temos hoje. Não temos atualmente política ambiental. É reverter toda essa agenda de desconstrução que o Bolsonaro promoveu. O Brasil, em diferentes governos, ao longo de décadas, sempre teve políticas ambientais que trouxeram contribuição efetiva para a agenda de proteção ambiental. É a primeira vez que só temos políticas de desconstrução ambiental. Mourão (o vice-presidente Hamilton Mourão) reclama que não tem estrutura para combate ao desmatamento na Amazônia, mas, veja bem, eles cortaram o orçamento, desmontaram as equipes, tiraram os funcionários que entendem da agenda dos cargos de comando, colocaram militares que não entendem de nada de meio ambiente. Enfraqueceram Ibama, Inpe, ICMbio, deixando os funcionários à mercê da própria sorte. O presidente faz apologia de quem comete crimes ambientais. Ele quer o quê? Precisamos de políticas continuadas. Não existe cuidar da imagem com propaganda, se cuida com ação. O Brasil ganhou credibilidade quando reduziu o desmatamento. Nós temos como fazer e sabemos como fazer e podemos fazer. Não pode ser acendendo uma vela para Deus e outra para o tinhoso.  

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