RuyGoiaba

A sofisticação dos vladiminions

04.03.22

Vejam bem, está faltando nuance nessas análises da invasão da Polônia pela Alemanha. Não existem mocinhos nem vilões nessa história — parem de tratá-la como se fosse um filme de Hollywood. Hitler é um personagem complexo, não é correto chamá-lo de “fascista”. Já esqueceram a humilhação a que os alemães foram submetidos pelo Tratado de Versalhes? Esse Churchill aí não é flor que se cheire. Estudem um pouco de história da Europa, ignorantes.

Começo a coluna mandando aquele abraço para a Lei de Godwin (“à medida que uma discussão on-line se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%”), para dizer que esse meu primeiro parágrafo é exatamente o tipo de “análise” que leríamos se houvesse internet e redes sociais quando estourou a Segunda Guerra (e Churchill de fato não era flor que se cheirasse, mas, por Deus, é só ver quem estava do outro lado). No caso da invasão da Ucrânia pelas tropas de Vladimir Putin, nem é preciso a discussão on-line se alongar muito, porque a comparação faz sentido.

A situação no Leste Europeu é tão, mas tão complexa que, nos últimos anos, poucas vezes foi tão fácil entender quem é o agressor e quem é o agredido. Arrisco até afirmar que quem invadiu um país soberano com tanques e bombardeia a sua população civil é o agressor; por sua vez, os civis que estão morrendo ou deixando suas casas para tentar escapar com vida — no momento em que escrevo (quinta, dia 3), mais de 1 milhão de ucranianos já saíram do país— são os agredidos. It’s not rocket science, como diriam os americanos (até porque quem domina essa ciência é quem dispara foguetes contra cidades).

Existem dois grupos básicos de canalhas da “complexidade” e da “nuance” quando o assunto é a agressão russa à Ucrânia. Para um deles, mais tosco, todos os caminhos saem da “culpa da expansão da Otan e do imperialismo estadunidense” e retornam a ela, como explicação primeira e última de todas as coisas. Muito complexo mesmo — e, em geral, essa turma assobia para o lado se você lembrar que os últimos países ex-URSS a aderirem à Otan, as repúblicas do Báltico (Estônia, Letônia e Lituânia), fizeram isso há quase 20 anos. Não raro, também sustentam que gente como Marina Silva, Michel Temer, Sergio Moro e Aécio Neves são todos fascistas, mas o Putin, VEJA BEM, não é assim, temos que analisar. E nenhum deles tem muita vergonha de lamber as botas do autocrata russo. São os vladiminions, na feliz expressão de um gênio anônimo da internet.

O segundo grupo é, ou pretende ser, mais sofisticadinho: Deus os livre de alguém achar que eles não são do bem, ou que eles não pairam acima dos acontecimentos para melhor nos iluminar com sua sabedoria imparcial. Podemos chamá-los de vladiminions enrustidos, já que eles ainda têm alguma — não muita — vergonha de que a lambeção de botas pareça muito explícita. É aquele pessoalzinho que começa suas sentenças com “o Putin é um horror, MAS”, com a adversativa no mesmíssimo papel da clássica “não sou racista, MAS” — você sabe que o que virá depois disso é 100% suco concentrado de racismo.

Outros “argumentos” dos vladiminions enrustidos são uma versão com filtro e pretensamente inteligente daquele tiozão abjeto que diz que a menina que saiu à noite com uma saia curta demais, ou um decote muito generoso, “provocou” o estupro. “Olhem só o que dá elegerem um comediante como presidente” (pelo visto, ao fazer isso, você dá direito a que invadam seu país; e antes eleger um comediante como Volodymyr Zelensky, que tem se portado com grande bravura, do que uma piada como Jair Bolsonaro). “Que absurdo, Zelensky está usando civis como escudos humanos!” (é literalmente o discurso de Putin: o subtexto óbvio é que a atitude certa seria se render sem disparar um tiro, ajoelhar aos pés do tirano e agradecer). Repetem até a grossa mentira da “desnazificação”, curiosamente exercida no único país da Europa cujo chefe de governo é judeu.

Quase ia me esquecendo dos praticantes desse divertido esporte que é o whataboutism. Falta uma boa tradução do termo em português, mas vocês conhecem a prática: são aqueles sujeitos que, quando você está criticando o Bolsonaro, aparecem perguntando “e o PT, hein? E o Lula?” — e vice-versa, já que o whataboutism, além de divertido, é um esporte democrático. Ou seja, aquele povo que se esquiva de responder a uma crítica apontando para outra pessoa também criticável. No caso da invasão da Ucrânia, além do “e os EUA, hein? E a Otan?”, temos os fiscais do engajamento alheio, que perguntam “e o genocídio palestino? E as guerras na África? E o ataque ao Iêmen? Não vi você se manifestar em nenhum desses!”. Se não está na lei, deveria: para poder se manifestar sobre uma guerra, é obrigatório que você tenha deixado registrada sua opinião sobre TODAS as anteriores, de preferência recuando até a Guerra do Peloponeso.

Longe dos ataques e do teatro das operações, a única coisa que posso fazer é torcer para que as forças interessadas em preservar a democracia — não só na Ucrânia; também fora dela — derrotem o invasor. Mas já vieram problematizar até o símbolo dessa torcida, a bandeira ucraniana que coloquei em meu avatar no Facebook: fui avisado de que ela não colabora em nada com a causa, não se reverte em ajuda aos soldados ucranianos e só serve para sinalizar virtude. Agradeço a todos os Capitães Óbvio que me alertaram e digo: longe de mim sinalizar essas coisas que não tenho, como dinheiro e virtude. Meu objetivo é modestíssimo — se servir para irritar os vladiminions, já me dou por satisfeito.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana, o Troféu Goiaba é coletivo: como disse um amigo no Twitter, assim como a pandemia da Covid acabou com a reputação de alguns médicos, a invasão da Ucrânia está servindo para destruir a boa imagem que mantínhamos da categoria “professores de relações internacionais”. No fundo, eu acho reconfortante saber que, assim como no jornalismo, ter pelo menos dois neurônios funcionando não é condição necessária para seguir essas profissões. Mas torno a repetir: que terrível erro da natureza é a burrice não doer. Muito.

Edeltravel/PixabayEdeltravel/PixabayNa foto, “analistas internacionais” flagrados tentando apontar a Ucrânia no mapa

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  1. Amei o artigo, Ruy Goiaba! Argumentação firme, enfrentando com perspicácia e bom humor essas teses utilizadas para justificar o absurdo dessa guerra.

  2. Tenho um parente bolso-vladmínion com uma variante disso aí, ele até fala que o Puttin é ruim "mas...", e aí vem o "mas", que a culpa é muito mais de outras forças que não aparecem, mas que emergem nas atitude do Putin. "Gente poderosa" interessada nessa guerra. E o pior que é assim em outros assuntos, sempre tem um "a gente não sabe de nada", "Bolsonaro fala muita bobagem mas ... tem muito interesse por trás disso" , "ele é só um marionete", etc. . Realmente é uma pena burrice não doer.

  3. Genial esse texto e deu voz ao que anda entalado em nossas gargantas vendo esse desvario e contorcionismo histórico para defender o ditador escroto e monstruoso que só quer reerguer a URSS e ganhar sua estrela na calçada da fama. Essas duas retóricas estão muito bem ancoradas pelas duas bestas do apocalipse que disputarão as eleições e todos os seus minions na verdade só repetem o que o seu mais querido Putin-to-be manda eles repetirem… a ignorância não é uma benção, Goiaba, ela é catastrófica.

  4. Ao ler esse texto, não pude deixar de lembrar do Marco Antônio Villa, que sugeriu que o povo ucraniano é parcialmente culpado pela agressão que estão sofrendo, "por terem eleito um comediante". Parafraseando o igualmente senil Marco Aurélio Mello, tempos estranhos esses que vivemos.

  5. Essa frase final da goiabice da semana é sensacional. Vou começar a usá-la, apesar de estar sentindo algumas dores, mas acho que são da idade.

  6. Adoraria ter um presidente comediante! (Senso de humor é sinal de inteligência). Mas, infelizmente, depois de um Lula tenho que aguentar um Bolsonaro, em quem votei por falta de opção. A minha escolha de segundo turno já está definida , se for entre esses dois, votarei NULO!

  7. Por ser mais comediante do q político, o presidente da Ucrânia prova q a política só serve pra uma coisa: massacrar o povo, qquer q seja ele.

  8. Whataboutism aqui em casa acontece tb. Eu digo: não interessa, estou falando do fato atual. No caso: sofro pelos refugiados levando suas malas, como deixar pra trás objetos, porta retratos, coisas com valores sentimentais, enfim, quanta dor!

  9. De fato, o comediante e seu povo cometeram um erro grave, mesmo no seu direito de buscar a sua democracia, acabaram pagando para ver e infelizmente é sabido o que acontece com quem cutuca o capeta com vara curta, principalmente quando se é vizinho de porta do capeta. A conquista da democracia seguidamente é marcada por guerras, esse é mais um caso que repete a historia da humanidade.

    1. Democracia começa pelo respeito ao nosso direito de estarmos seguros em nossas casas cuidando de viver nossa vida vida em paz. Quem dirá, nossa cidade (escola, hospitais, etc) Parabéns pra quem está inconformado com a invasão russa e brigando pela liberdade!

  10. Pobre bananal depende do mundo para sobreviver, ainda tem pandemia e ela nem acabou vem a guerra, fazer o que? Nunca resolvemos de verdade nossos problemas, nem sequer encaminhamos a solução, basta ver quantos anos passamos em recessão nesses séculos mais recentes. Agora quanto a eleição está fácil, se esses dois projetos chegarem ao segundo turno, já decidi, nem comparecerei as urnas, a multa é baixa e o esforço não valerá a pena. Quem vencer se juntará ao centrão e não governará, fácil de sabe

  11. Pô, Ruy, gostaria muito de uma imagem desse Cavalo sobre um quadrúpede para imprimir. A "legenda" seria o parágrafo inicial da coluna. ... Daria todo o devido crédito. ... [email protected] ... Deletem, por favor.

    1. É a imagem que aparece no thumbnail n'O Antagonista. ... O Freitas, que é o faz tudo, quem fecha a revista, talvez poderia me dar tal presente. Alô, Freitas !!!

  12. Meu caro Goyaba, se burrice doesse, não haveria SUS no mundo que desse jeito de atender os casos crônicos (que não tem cura), importante frisar.

  13. Populacho tupiniquim tá nem aí pra guerra. Mesmo q haja possível extinção da espécie. Ouvem " en passant" s/ o assunto , no caminho p/ o trabalho ou no Jornal Nacional. Só desocupados (eu inclusa) , o PT, os minions ou a imprensa é q têm opinião s/ tdo. A maioria só quer mesmo saber como vai pagar s/ contas ; e qdo, onde e se vai haver carnaval. Ainda bem! O q os olhos não veem o coração não sente! O populacho já tem sua guerra individual e diária pra se ocupar. É isso! Nada pessoal!

  14. O "prêmio" semanal é perfeito. O fim completo da educação neste país está criando especialistas semi analfabetos em todas as áreas. Todos se formam em algum curso superior e um dia se tornam "professores", porque vagas para isso não faltam, e logo passam a ostentar esse título distribuindo por aí opiniões que uma criança europeia de 10 anos, com o que aprendeu no ensino básico (de lá!), seria capaz de refutar.

  15. Os tais vladiminios (na verdade, para mim uma enorme parcela da rede social é minion dependente) não merecem a sua indignação. São minions.

  16. Coaduno de sua opinião sobre os "professores de relações internacionais". Cheguei a pensar que eu era uma ingênua ao me opor aos seus comentários desses acadêmicos. Deploráveis posicionamentos.

  17. Pandemia e em seguida uma guerra. Um desfile interminável de teorias absurdas, caráter flexível e muita patifaria. Pelo menos não veremos mais ninguém clamando por um meteoro.

  18. Olhe, veja bem... Acho que Zog não deveria ter dado uma "tacapeada" na cabeça de Zug, da caverna vizinha, mas Zug também não deveria ter se aproximado da tribo de Agh pra se proteger de Zog...

    1. Pronto, já falei dos outros malvados, agora posso falar do Putin?

  19. Sobre esse texto impecável a respeito dos vladminions, sugiro a leitura do abjeto artigo de Juca Kfouri na Folha de ontem “O último majestoso?”, em que ele se refere a Zelenski como “tresloucado abjeto humorista” e com “ gosto por sangue”, equiparando-o a Putin.

    1. Graças a Deus, cancelei a Folha a tempo. Não teria estômago para ler mais essa. Obrigada por avisar. Os bons comentários sempre me alertam.

    2. Vladiminions sempre existiram, antes mesmo que o termo tivesse sido inventado.

  20. São odiosos os que defendem ditadores e ditaduras, principalmente diante da covardia dessa guerra. Minha única ressalva é quanto ao argumento tosco da OTAN, sque é sem dúvida tosco como justificativa para a guerra, mas não como medida diplomática para evitar o conflito. Talvez bastasse retirar o convite. Mas parece que para os EUA e seu presidente mal das pernas era interessante que essa guerra acontecesse. Faltou um líder sem medo de parecer fraco ao se esforçar por evita-la.

    1. Então, você acha que é correto deixar que a Rússia decida se a Ucrânia pode ou não entrar na EU ou na OTAN? Quem deu a Putin o direito de se meter nas decisões de países alheios? Ele que aprenda a respeitar seus vizinhos, isso sim!

  21. Ruy, é preciso não ter o mínimo de conhecimento da história, para não conseguir ver as claras semelhanças entre o que o "complexo" psicopata Hitler fez para dar início a II Guerra e o que o atual psicopata está fazendo ao massacrar a Ucrânia. O discurso que iguala os "complexos" personagens, são a mentira, a violência e a mais pura maldade.

    1. Antônio, será 'apenas' maldade ou interesses escusos de todas as partes envolvidas nessa guerra ? No mundo dos interesses do dinheiro não existem ingênuos nem inocentes.

    1. 🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣 é por essas que eu leio os comentários 🤣🤣🤣🤣

    1. Não sei, mas espero que ninguém mais queira ouvir as opiniões desse palhaço de chapéu e estilo de intelectual.

  22. Mais um post maravilhoso Ruygerio! O Reinaldo Azevedo está na 2a categoria certo? Vladiminion enrustido(ou nem tanto) ao criticar a "expansão da Otan" e o "discurso que não quer a paz"(???) de Zelensky. RA gostaria que Zelensky se ajoelhasse e pedisse perdão ao ditador russo por ter seu país destruido, inclusive com 2 usinas nucleares seriamente ameaçadas Glory to Zelensky! Glory to Ruygerio Ortegaba! Fuck Putin! Fuck Reinaldo Azevedo!

    1. Não consigo ouvir a voz de Reinaldo Azevedo. Sujeito patético.

  23. Meu troféu Goiabice vai para um amigo que me disse que não está tendo guerra nenhuma. As imagens são fake , são de 5 anos atrás e isso foi “ comprovado”. Sugeri um psiquiatra

    1. O que???? Guerra fake? Tem razão. Essa goiabice foi pior.

    1. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

  24. Goiaba, concordo com tudo que você colocou. Na frase do WhatsApp, eu coloquei a bandeira da Ucrânia, e bolsonaristas wladiminions vieram atazanar. Porém, nada foi tão perfeito quanto a goiabice da semana, com seus analistas, professores de relações internacionais e professores de história. Foi patético, foi ridículo! Obrigada, Goiaba.

    1. Que notícia "relevante" você me deu ao "revelar" que Goiaba leu o Guzo na revista Oeste semana passada!!!!!!

    2. Goiba leu o Guzo da Oeste, semana passada.

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