Adriano Machado/CrusoéO edifício Máscara Negra, sede da PF: mudanças para reduzir a tensão política

Geladeira lotada na PF

A crescente interferência do governo na Polícia Federal tirou da linha de frente delegados experimentados com atuação de destaque na Lava Jato e em outras rumorosas operações contra poderosos. Conheça a história de alguns deles
04.03.22

A crescente interferência do governo na Polícia Federal tirou da linha de frente – ou pôs na geladeira, para usar uma expressão comum na corporação – delegados que ficaram conhecidos nos últimos anos por sua atuação em investigações de fôlego que miraram poderosos de Brasília. Sem alarde, esses policiais foram removidos de funções de chefia relevantes ou por conta própria, sem espaço para apurações como as que conduziram no passado recente, pediram para deixar postos estratégicos que ocupavam em Brasília, a fim de voltar a seus estados de origem ou passar períodos sabáticos no exterior. O movimento é reflexo direto das seguidas mudanças que o presidente Jair Bolsonaro fez no comando da corporação, depois de anunciar, sem meias palavras, que gostaria de ver a PF mais alinhada aos seus interesses. “O combate à corrupção acabou. Não só na PF, mas no país como um todo. Voltamos vinte anos no tempo. Hoje, está pior do que em 2014”, lamenta um delegado que pediu para não ser identificado, obviamente por temer represálias.

Os afastamentos ganharam força durante a gestão de Paulo Maiurino, que na semana passada acabou demitido do cargo de diretor-geral para dar lugar a um delegado da estrita confiança do ministro da Justiça, Anderson Torres, um dos mais fiéis escudeiros do presidente e de seus filhos com assento na Esplanada. Substituto de Maiurino, o delegado Márcio Nunes, que era o número dois de Torres, é o quarto chefe da PF no governo Bolsonaro. A tendência, avaliam experientes integrantes da instituição, é que a troca mantenha a prática de limitar a liberdade de ação de policiais considerados excessivamente independentes e capazes de, com suas investigações, criar embaraços políticos para o governo. Entre os afastados, estão policiais que tiveram papel destacado na Lava Jato e em outras operações de grande repercussão e que deram dor de cabeça para figurões da República, seja na linha de frente das investigações, seja em posições de chefia — por exemplo, na poderosa Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, a Dicor, encarregada de tocar casos que envolvem corrupção e lavagem de dinheiro. É debaixo dessa diretoria que está o Sinq, o Serviço de Inquéritos Especiais, onde correm os inquéritos que miram políticos e outras autoridades detentoras de foro privilegiado. Crusoé lista, a seguir, alguns dos delegados submetidos à geladeira.

Reprodução Youtube

O investigador de Bolsonaro

Felipe Leal chegou a ser alçado ao comando do Sinq em novembro de 2020. Como integrante do grupo, ele atuou nas operações que miraram o ex-governador do Rio Wilson Witzel, por suspeitas de desvios de recursos da área de saúde. Também foi quem assinou o relatório com a perícia que não confirmou a autenticidade e a integridade dos diálogos hackeados dos celulares dos procuradores da Lava Jato em Curitiba. Com base no laudo, concluiu que o conteúdo não poderia ser utilizado nos processos, por se tratar de prova ilícita. Dias depois, Leal foi dispensado. A troca também afagou o ministro Gilmar Mendes, do STF. Há cinco anos, Leal havia proposto a abertura de uma investigação para apurar se a JBS tentou se aproximar indevidamente de um juiz federal de Brasília que tocava processos envolvendo a companhia. A abordagem ao magistrado aconteceu dentro do IDP, a faculdade do ministro. A medida irritou Gilmar, porque a ideia era que também fosse investigada a relação de uma auxiliar do ministro com o episódio. A saída de Felipe Leal fez com que outros cinco delegados pedissem para deixar o Sinq. Mesmo fora do setor, Leal seguiu à frente do inquérito que apurava a acusação feita pelo ex-juiz Sergio Moro de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir na PF, do qual também acabaria afastado tempos depois. Em meados do ano passado, o delegado foi lotado no irrelevante Serviço de Pesquisa e Publicações da Academia Nacional de Polícia, em Brasília. Descontente, pediu para voltar para a Paraíba, onde já tinha trabalhado no início da carreira.

Adriano Machado/Crusoé

O ‘pai’ da Lava Jato

Márcio Adriano Anselmo foi o delegado que deu o pontapé inicial nas investigações da Operação Lava Jato, no Paraná. Foi ele quem descobriu que o dinheiro sujo operado pelo doleiro Alberto Youssef havia comprado uma Range Rover para Paulo Roberto Costa, um dos mais poderosos diretores da Petrobras. Era a ponta que levaria, na sequência, à descoberta do bilionário esquema de corrupção na estatal e de suas ligações com a nata da política nacional. Considerado um dos maiores especialistas em crimes financeiros da PF, depois de passar três anos no núcleo duro da Lava Jato, em Curitiba, o delegado foi convidado para ocupar o prestigioso cargo de coordenador-geral de repressão à corrupção e lavagem de dinheiro, em Brasília. Ficou no posto até junho de 2020. Quando a maré na PF começou a mudar, ainda no primeiro semestre daquele ano, acabou escanteado. Sem espaço na corporação, Márcio Anselmo foi autorizado a cursar um mestrado em Washington, a capital dos Estados Unidos, onde permanece até hoje.

Divulgação

O homem de Moro

Outro delegado famoso por ter chefiado a equipe de policiais federais da Lava Jato em Curitiba, Igor Romário de Paula esteve à frente de praticamente todas as principais fases da operação. Em 2019, com o ex-juiz Sergio Moro no Ministério da Justiça e Maurício Valeixo, ex-superintendente em Curitiba, na direção-geral da PF, ele assumiu uma das posições mais importantes na hierarquia nacional da corporação. O plano era implementar em outras operações realizadas pelo país afora a mesma tecnologia de apuração usada pela Lava Jato. Não deu muito certo. Tempos depois da queda de Moro e Valeixo, Igor Romário acabou exonerado. Ele seguiu em Brasília até junho do ano passado, aguardando o cumprimento da promessa de que seria nomeado como adido no Canadá. A promessa nunca foi cumprida. Igor Romário acabou retornando para Curitiba, onde passou a ser apenas mais um delegado, sem qualquer cargo de destaque e longe de investigações relevantes.

MP/RS

Desafeto de Toffoli

O currículo do delegado Thiago Delabary coleciona investigações de pesos-pesados da política. Entre eles, Michel Temer e o ex-ministro Eliseu Padilha, ambos do MDB, indiciados por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em um inquérito que tramitou no Supremo Tribunal Federal. O delegado apurou suposto pagamento de propina de 14 milhões reais da Odebrecht ao grupo do ex-presidente. Também tocou investigações envolvendo a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o senador Antônio Anastasia, do PSD. Antes de se mudar para Brasília, Delabary foi chefe do setor de inteligência da PF no Rio Grande do Sul. A atuação na Lava Jato o levou a assumir o cargo de coordenador nacional de combate à corrupção e lavagem de dinheiro da PF, em Brasília, em junho de 2020. No inquérito de Michel Temer, o delegado chegou aos arquivos de uma transportadora de valores usada pela Odebrecht para fazer entregas de propina, uma das provas mais robustas do esquema da construtora. Também foi sob a coordenação de Delabary que a PF solicitou ao STF a abertura de um inquérito para investigar o suposto pagamento de propina ao ministro Dias Toffoli, relatado no acordo de delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. O pedido foi negado pela corte e Delabary não durou muito no cargo. Foi dispensado da função em abril de 2021, por ordem de Paulo Maiurino. Sem ambiente em Brasília, o delegado retornou a Porto Alegre, onde sofreu novo revés. Sua nomeação para a chefia da Delegacia Regional de Combate ao Crime Organizado foi barrada pela cúpula da PF.

O delegado do dinheiro na cueca

Foi o faro do delegado Wedson Cajé que o levou a estranhar o pedido do senador Chico Rodrigues, do DEM, para ir ao banheiro durante uma busca e apreensão da Polícia Federal em outubro de 2020. A desconfiança aumentou ao ver um “grande volume” em “formato retangular” na região das nádegas do congressista que, à época, era vice-líder do governo no Senado. Assustado com a chegada dos policiais, o senador escondeu 33 mil reais em dinheiro vivo dentre da cueca — parte do dinheiro, como mostrou Crusoé na ocasião, estava acomodada entre as nádegas do parlamentar, investigado por suspeita de envolvimento no desvio de verbas federais destinadas ao combate à pandemia. Cajé estava no Sinq, onde também atuou no inquérito aberto com base nas acusações de Sergio Moro contra Bolsonaro. Com a crescente pressão sobre os integrantes do núcleo, mudou de setor. Em julho do ano passado, o delegado se transferiu para o Pará. Neste ano, retornou para Brasília, mas para uma posição bem menos relevante do que as que havia ocupado anteriormente.

Com reportagem de Fabio Leite

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