AlexandreSoares Silva

O alienado

04.03.22

Secretamente (ninguém descobrirá, nunca falarei isso em público) estou tão interessado na Ucrânia quanto todo mundo, leio continuamente sobre o assunto e tudo mais; mas preferia que mesmo durante uma crise as pessoas se dessem permissão para falar de outras coisas. Ou que cada crise aparecesse só a cada vinte anos, para dar tempo de as pessoas falarem sobre romances policiais, comida, design de carros, bonsais. Quando uma crise chega, só se pode falar sobre a crise, sob o risco de ser tirado da frente com a impaciência com que se espanta um mosquito. E ou sempre estamos em crise, ou ninguém avisa quando não estamos em crise. Os jornais nunca vão anunciar: “Mundo sai oficialmente de crise; nada grave acontece há oito dias; população liberada para falar de bonsais e salsaparrilha, tap dancing e quadrinhos.” Sinto saudade até de três semanas atrás, quando ainda era possível falar de frivolidades como crianças transsexuais ou do racismo intrínseco da matemática.

Em toda conversa agora me sinto como o ex-jogador e atual técnico do Chelsea, Thomas Tuchel, que, ao ser perguntado esta semana sobre a guerra durante uma estrevista coletiva, explodiu deste jeito:

“Escuta aqui, escuta aqui. Vocês têm que parar com essas perguntas. Eu não sou um político. Vocês têm que parar. Eu só posso ficar repetindo (que acho a guerra horrível). E me sinto mal de repetir, porque nunca passei por essa experiência. (…) Eu faço o melhor que eu posso… Mas vocês têm que parar de me fazer essas perguntas, eu não tenho respostas para vocês…”

Para falar a verdade, até uma hora atrás eu nem tinha ouvido falar de Tuchel, como também, vou confessar, não tinha ouvido nem falar de Swift e não seria capaz de apontar Kiev (ou Kyiv, sou de repente obrigado a falar) num mapa da Ucrânia.

Sempre fui um defensor até razoavelmente agressivo do alienamento, um apolítico empedernido. Detesto citar a mim mesmo (não é verdade, gosto muito), mas vinte anos atrás, quando todo mundo estava falando sobre algum furacão que havia acontecido, escrevi isto:

“Num livro que li muito tempo atrás, suponho que de Aldous Huxley, existe a história de um parisiense real que viveu durante a época da Revolução Francesa. Ele tinha um diário no qual escrevia com frequência, e em todas as centenas de páginas do diário ele nunca faz nenhuma menção à Revolução Francesa. Fala dos insetos do jardim dele, ou das estrelas (não lembro se era entomologista ou astrônomo), ou de ir ao açougue comprar carne. Esqueci o nome dele e em que livro ele aparece – mas é o meu herói.

Meu sonho, meu sonho mesmo, era encontrar alguém que tivesse sobrevivido a um furacão e não dissesse uma palavra sobre o furacão no diário. Voando pela sala, estendendo os braços para pegar o diário flutuante, o telhado subindo em espiral ao céu, ele escreveria: ‘Me sentindo meio deprimido hoje. Vou jogar pif-paf’.”

Mas não sou tão heroico quanto essa criatura hipotética, infelizmente, e vou comentar uma coisa sobre a guerra. Sigo faz algum tempo dois russos que têm um perfil no twitter e um podcast, Russians with Attitude. Até pouco tempo atrás eles eram, digamos, excêntricos, mas com a invasão da Ucrânia viraram quase completamente um perfil oficial de propaganda militar russa. Quando leio o perfil deles, a guerra praticamente já acabou, “os militares ucranianos se desmantelaram ao primeiro contato”, os russos venceram claramente, e assim por diante. Eles mesmos dizem que têm um viés nisso, mas suas mensagens têm um gosto de propaganda oficial que é difícil não perceber.

Já nos outros perfis a Rússia é que está se desmantelando, Putin está escondido debaixo da sua cada vez mais longa mesa, tremendo e tomando drogas, vai ser encontrado na próxima segunda barbudo e escondido em um buraco como Saddam Hussein, onde estará maratonando Friends e chorando, etc etc.

O que, aliás, me fez pensar uma coisa. Se a natureza da propaganda de guerra é exagerar a fraqueza do inimigo e a força do próprio lado, e levando em conta que a pandemia pela qual passamos foi tratada muitas vezes como uma guerra, por que tudo que os jornais nos comunicavam, todos os dias, durante um bom período, era algo da natureza de “Vamos todos morreeeeeeeer!!!…”? Era como se estivéssemos lendo press releases mandados pelo próprio vírus. Nunca vou entender isso.

Mas enfim. Detestaria que a Terceira Guerra Mundial acontecesse, porque ninguém ia querer mais falar de nenhum outro assunto. Qualquer romance policial do século XIX sobre o qual eu quisesse escrever, ninguém clicaria no maldito link. Eu ficaria reduzido a comentar os efeitos da radioatividade na minha vida, com certeza. Coisas do tipo: “Hoje meu olho caiu na sopa”, ou “Até que o pôr de sol está bonito – vamos sentir falta desses crepúsculos radioativos!”, ou ainda “Um dia triste… com o fim da comida na despensa, tivemos que comer nosso cachorro, mas infelizmente pusemos pouco sal e o jantar foi bastante sem graça”, e outras coisas enfadonhas típicas do fim do mundo.

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  1. Ironia e humor são complementares e indispensáveis para a manutenção da saúde mental em todos os tempos. Pena que muita gente nem entende! Ótimo texto.

  2. Perfeita a comparação entre a propaganda de guerra e a "guerra" da pandemia com a mídia derrotista sempre torcendo pelo vírus. Meu entendimento primário é que o terrorismo instalado era, ao mesmo tempo, político e dirigido para "vender jornal" como se dizia no tempo dos jornais impressos.

  3. 🤣🤣🤣 Adorei!! Só lamento não estarmos todos comentando a ultima do Gilmar… Ou a do prefeito do RJ, sr Eduardo Paes… a boiada passa e ninguém nota.

  4. Se o pano-de-fundo fosse "As Malvinas são Argentinas", e os ingleses estivessem rumando para a retomada das Falklands, e, ainda por cima, navegando em águas territoriais brasileiras, eu também desdenharia de atribuir tanta importância para um epílogo tão previsível. Contudo, poucos assuntos podem, hoje, além das impostergáveis necessidades fisiológicas, distrair-me do atual cenário apocalíptico. Quisera eu poder dizer "a vida é bela". Mas nem as crianças estão mais acreditando.

    1. Concordo! Não consigo viver nesse melhor dos mundos possíveis.

  5. Vdd, tudo que é demais cansa, aborrece, entristece ( ah, a hipocrisia!) Fico pensando qta coisa está passando batida, de bom e de mau, sem que a gente tome conhecimento, pq agora as mídias só se ocupam dessa malfadada guerra. Eu preferia nem saber que o fim do mundo se avizinha. Não por pânico, pq talvez já fosse hora mesmo de dar um fim nesta bagaça (des) humana. Mas pela chateação dos inefaveis discursos de empatia tardios. Como dizia minha mãe: " Quel qui non pensa, dopo sospira!".

  6. Meu olho quase caiu no café de tanto chorar de rir... Quanta depressão no meio do humor, quanto humor no meio da tristeza!

  7. Excelentíssima digressão!!! Fiquei feliz também de saber que até esse excelente articulista, assim como eu, não saber onde fica Kiev, o que é Swift, etc; meus parabéns entusiásticos!

  8. Que cacetada. Eu acho que assisti algo parecido com o sobrevivente de um acidente aéreo. Ele não era parisiense nem personagem de livro.

    1. Bem apropriado! É pois é o mundo não tá legal nesta aldeia global e o isolamento parece ser uma opção agradável! Sabe lembrei da época em que podia fazer retiro espiritual … Parece que seria uma prática saudável agora ! Um isolamento sem rede, rádio , ligação com o mundo! Só a natureza e livros de preferência de poesia, filosofia ou psicanálise 🤪

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