DiogoMainardina ilha do desespero

O herói judeu

04.03.22

É isso mesmo, Jair Bolsonaro: o presidente ucraniano é um comediante. E é assim que ele está salvando seus compatriotas: com um fabuloso talento para a comédia.

Sei que esse fato pode embananar sua cabecinha. Sei também que o impulso que o levou a Moscou, com o único propósito de lamber gulosamente as botas de Vladimir Putin, reflete sua precariedade de raciocínio e de caráter. Mas posso usar uma ou duas imagens para tentar explicar-lhe o que estou dizendo.

Pegue a cena em que Zelensky assinou o pedido de adesão à União Europeia:

Isso é cinema mudo da melhor qualidade. Evoca algumas das passagens mais célebres do slapstick chapliniano, em que o mendigo franzino consegue escapar espertamente do gigante barbudo, interpretado por Eric Campbell:

No caso de Zelensky, o gigante barbudo é seu aliado: o presidente do parlamento ucraniano. Mas o que importa na cena é o contraste burlesco entre o gigante barbudo e o homenzinho que se agiganta com sua astúcia.

Nesta semana, Zelensky disse para a Reuters:

“Não estamos num filme.”

No dia seguinte, no entanto, ele acrescentou que o mundo inteiro admirava o povo ucraniano, até mesmo “as estrelas de Hollywood”.

Uma coisa não invalida a outra, claro. Putin é real. O bombardeio é real. O sangue é real. Mas a plateia planetária – inclusive as estrelas de Hollywood – só pararam para olhar essa realidade tenebrosa porque Zelensky soube interpretá-la, usando os instrumentos picarescos de que dispunha. Em particular, a extraordinária capacidade de desarmar seus interlocutores com pedidos impertinentes.

Seu desempenho reverberou também no campo de batalha. Putin tem um Exército incomensuravelmente mais poderoso – e letal – do que o seu. Mas Zelensky venceu a guerra psicológica contra o assassino russo – e venceu de forma avassaladora. Ele conseguiu encorajar todos os ucranianos, civis e militares, que há mais de uma semana resistem heroicamente aos invasores, enfrentando os tanques inimigos com o próprio corpo. Ao mesmo tempo, ele persuadiu as democracias ocidentais a entregar-lhe milhares de javelins e stingers, a fim de defender o país das tropas russas.

A comédia sempre teve um poder subversivo. Basta pensar em Aristófanes, Boccaccio, Rabelais ou Jonathan Swift. De fato, como é que Putin está sendo castigado? Com o bloqueio do SWIFT. Zelensky encarna igualmente o melhor da Commedia dell’Arte: o arlequim insolente que, com sua esperteza mirabolante, engana o déspota ganancioso e toma todo o dinheiro roubado por ele.

Outro comediante, Sacha Baron Cohen, que debochou da barbárie soviética em Borat, compartilhou um artigo da revista The Atlantic, intitulado: “Como Zelensky deu ao mundo um herói judeu”. O artigo diz que Zelensky foi eleito com mais de 70% dos votos justamente por representar a figura do judeu, com a qual os ucranianos se identificaram: o oprimido que lutava com todas as armas disponíveis para manter a própria identidade. O ucraniano é o homenzinho franzino que derrota o gigante russo. Com quais armas? A comicidade, em primeiro lugar.

Neste momento, Zelensky está sendo aplaudido por onde quer que passe. Ele merece mais do que isso. Além de lutar pela liberdade e pela democracia, ele resgatou também o que a humanidade fez de melhor.

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