Cris Faga/FolhapressCartaz erguido em protesto feito em São Paulo contra a invasão da Ucrânia: Putin pode detonar um conflito global

O risco é real

Vladimir Putin ameaça usar armas atômicas para continuar a esmagar a Ucrânia e o mundo se vê diante do perigo de uma guerra nuclear
04.03.22

Ao invadir a Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin iniciou uma guerra que ninguém sabe como irá acabar. Um recuo de tropas agora é improvável, pois significaria uma derrota amarga para o russo, que já enfrenta a população descontente com a crise econômica. A vitória também parece cada vez mais longe para o Kremlin. Mesmo que a Rússia consiga instalar um interventor em Kiev, a população já mostrou que está disposta a resistir, com armas de outros países. À medida que os dias passam, a chance de que outras nações se embrenhem no conflito bélico aumenta, seja para revidar ataques ou para proteger civis. E Putin já disse, desde o início, que não toleraria qualquer intromissão, o que pode escalar a guerra para um conflito nuclear de alcance global. O que era impensável até havia pouco, especialmente neste momento em que o mundo ainda tenta se livrar de uma pandemia que deixou milhões de mortos, tornou-se um risco real. Não é um exagero que a humanidade vive um dos momentos mais perigosos da sua história.

Nos primeiros dias de guerra, a Rússia declarou que buscava destruir sobretudo alvos militares e de infraestrutura para “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia. As três frentes de invasão, contudo, não progrediram como esperado. Imagens de tanques e veículos abandonados e destruídos começaram a se multiplicar nas redes sociais. Uma das explicações é que, ao acompanhar o movimento das tropas russas durante meses, as forças armadas ucranianas e resistentes civis se prepararam para reagir. Quando chegou a hora, elas atacaram os comboios com drones turcos e mísseis antitanque doados pelos britânicos. Cenas de ucranianos pegando em armas ou se colocando no meio de rodovias para bloquear comboios militares também foram gravadas pelos telefones celulares e distribuídas mundo afora.

Diz-se que a primeira vítima de uma guerra é a verdade. De fato, ao justificar sua ofensiva, Putin afirmou que era preciso deter um genocídio da população ucraniana que estava sendo cometido por milícias nazistas apoiadas pelo governo do presidente Volodymyr Zelensky. Putin também argumentou que russos e ucranianos seriam “um só povo”, e que deveriam ser unificados. Sua narrativa caiu completamente por terra. Com exceção daqueles completamente cegos pela ideologia ou sem acesso à realidade por causa da censura do Kremlin, ninguém acredita mais nessa cantilena. Os ucranianos se ergueram em massa contra a Rússia. Enquanto mulheres e crianças fugiram para países vizinhos carregando bandeiras azuis e amarelas da Ucrânia, milhares de homens se dispuseram a lutar voluntariamente contra os invasores. E muitos ucranianos que viviam fora do país estão voltando para combater os russos.

A resistência ferrenha e os problemas de logística, que deixaram tanques parados sem combustível na estrada para Kiev, atrasaram o avanço das tropas de Vladimir Putin. Oito dias após o início da invasão, a Rússia só tinha tomado uma grande cidade, Kherson, ao sul. Putin, então, foi para a televisão para dizer que tudo estava “indo como o planejado. Com o intuito de causar comoção dentro da Rússia, o governo ucraniano passou a divulgar diariamente o número de soldados russos mortos. Os óbitos numa guerra de escolha são um fator que pode muito facilmente retirar o apoio ao autocrata. Na quinta, 3, a conta ucraniana de soldados russos mortos já chegava a 6 mil. Protestos pedindo o fim do conflito ocorreram em, ao menos 58 cidades, da Rússia. A polícia passou a deter todas as pessoas que se manifestavam contra a guerra, ainda que apenas exibindo modestos cartazes pedindo paz na janela ou segurando balões com as cores da bandeira da Ucrânia.

Os contratempos iniciais, contudo, não demoveram Putin a seguir com a sua insanidade. Sem conseguir uma vitória rápida, como pretendia, o autocrata russo passou a atacar alvos civis e seguiu avançando com suas forças armadas em território ucraniano. Nesta quinta, um comboio que chegou a ter 65 quilômetros de extensão aguardava o momento de entrar na capital Kiev, com tanques, lançadores de foguetes, caminhões e blindados. “Seu único instinto é dobrar a aposta e tentar ‘Grosnificar’ a cidade de Kiev, se você entende o que eu digo”, disse o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

Mitya Aleshkovsky/TASS/KremlinMitya Aleshkovsky/TASS/KremlinSergey Lavrov disse que guerra nuclear poderia ser resposta a sanções
O premiê britânico fazia referência ao ataque russo à cidade de Grozny, na Chechênia, em 1999. Naquela ocasião, os russos enfrentaram a resistência dos rebeldes e não obtiveram uma vitória rápida. Multidões de civis impediram o avanço de comboios militares. Putin, então, mudou de tática. Em vez de buscar eliminar cirurgicamente a resistência, ele arrasou totalmente a cidade, causando a morte de dezenas de milhares de civis. “Tudo sinaliza para que tenhamos uma repetição do que aconteceu em Grozny”, diz Brian Petit, coronel americano aposentado que treinou resistências armadas e lutou contra elas. “A Rússia consolidou o poder de combate em todos os três corredores de invasão, norte, leste e sul, e seus comandantes militares claramente têm ordens para tomar ou destruir cidades, portos, aeroportos e infraestrutura crítica. Putin também está disposto a aceitar baixas entre as forças russas para alcançar seu objetivo.”

Com o comboio russo se aproximando de Kiev, o presidente Volodymyr Zelensky, que com um bom uso das redes sociais e vivendo em um bunker tornou-se o herói da resistência ucraniana, deu uma entrevista comovente para a televisão. “Tenho medo de a Ucrânia não existir mais. Nosso povo é muito especial. Não quero vê-lo destruído. Quero ver os ucranianos sobreviverem na História”, disse. Ele agradeceu o envio de armamentos. Porém, para que muitas desses equipamentos sejam usados, seria preciso transportá-los e distribuí-los dentro da Ucrânia, sob fogo cruzado, e ainda ensinar os ucranianos a usá-los. O tempo e as condições para isso são escassos. “Preciso agradecer os países que estão nos fornecendo armamentos, nós temos gratidão. Mas já é tarde demais. Nós demos a janela de oportunidade para esses países, e essa janela causou a perda de milhares de vidas ucranianas”, disse Zelensky, referindo-se à inação do Ocidente antes da invasão iminente.

Na tentativa de evitar uma catástrofe humanitária, o presidente da França, Emmanuel Macron, tem buscado alguma mediação. Na segunda, 28, ele ligou para Putin, por solicitação do ucraniano Zelensky. Macron pediu que o russo parasse com ataques a civis, casas, estradas e infraestrutura civil. No mesmo dia, a Human Rights Watch e a Anistia Internacional denunciaram o uso de bombas de fragmentação perto de dois alvos civis, um jardim de infância e um hospital. Essas bombas, ao chegar perto do alvo, se dividem em múltiplos explosivos. Cerca de 40% delas não explodem na hora e ficam escondidas, até que alguém as descubra. Crianças estão entre suas principais vítimas. Apesar de terem sido banidas por um tratado internacional, a Rússia não assinou o acordo. No hospital, quatro civis morreram e dez ficaram feridos. No jardim de infância, três adultos e uma criança morreram.

Nesta quinta, 3 de março, Macron voltou a falar com Putin. “Eu falei com Putin esta manhã. Ele se recusa a parar com os ataques na Ucrânia neste momento”. Uma fonte do Palácio do Eliseu, sede do Executivo francês, disse que o presidente acredita que “o pior ainda está por vir” – uma previsão no mínimo sombria. Para o governo francês, Putin vai conduzir a guerra até o fim e seu objetivo é tomar o controle de toda a Ucrânia. No dia anterior, Macron deu uma declaração dizendo que “a guerra na Europa já não pertence aos nossos livros escolares, está lá, diante dos nossos olhos. A democracia já não é considerada um regime indiscutível, é posta em dúvida. Pela nossa liberdade e a dos nossos filhos, responderemos com decisões históricas”.

O avanço da guerra também gera um risco adicional, o de que outros países sejam sugados para o caos. Na quarta, 2, dois caças Sukhoi russos sobrevoaram o espaço aéreo sueco. Trata-se de uma ameaça, uma vez que a Suécia e a Finlândia, ao acompanharem os ataques à Ucrânia, estão mais inclinadas a integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. No dia seguinte, 3, um navio da Estônia, que estava no porto ucraniano de Odessa, afundou após ser atingido por artilharia russa. Os seis membros da tripulação foram resgatados. No mesmo dia, os Estados Unidos e a Rússia concordaram em estabelecer uma linha de comunicação para “prevenir erros de cálculo, acidentes militares e a escalada do conflito”.

Andrei Mishchenko/LaPresse/DiaEsportivo/FolhapressAndrei Mishchenko/LaPresse/DiaEsportivo/FolhapressCrianças se refugiam em bunker em Kiev, que pode ser “Grosnificada”
Caso um erro de cálculo ou um massacre de civis leve outro país ou a Otan a entrar no conflito, o resultado pode ser catastrófico. Desde as explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945, armas nucleares nunca mais foram usadas em guerras, mas como instrumentos de dissuasão. A Rússia, contudo, atualizou sua doutrina nuclear nos últimos anos. Agora, considera que, caso tenha sua existência ameaçada em um conflito tradicional, o país pode fazer uso de armas nucleares táticas, que são de baixa potência e destinadas a alvos limitados. Se forem usadas pela primeira vez, as potências ocidentais não poderiam ficar inertes. Para completar o cenário de pavor, tropas russas atacaram na noite da quinta, 3, a usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior desse tipo em toda a Europa. Os prédios administrativos da usina pegaram fogo, mas o incêndio acabou controlado. Se tivesse atingido o reator, poderia causar um acidente de proporção dez vezes maior do que a de Chernobyl. Os russos tomaram a usina. O presidente Volodymyr Zelensky disse que “pela primeira vez na história um estado terrorista recorreu ao terrorismo nuclear”. Ele também conversou por telefone com o presidente americano Joe Biden, que disse que convocaria uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU. O ataque, que causou pânico na Ucrânia, aumentou ainda mais o medo de um conflito nuclear nos países da Europa que pertencem à Otan. Na Bélgica, por exemplo, desde o início da guerra, vem aumentando exponencialmente a procura por comprimidos de iodo de potássio, substância usada no primeiro combate aos efeitos da radioatividade no organismo.

Assim que mandou seus soldados invadirem a Ucrânia, Putin afirmou que qualquer intervenção no conflito levaria a “consequências nunca vistas na história”. No domingo, 27, ele ordenou pela televisão que seu arsenal atômico, o maior do mundo, fosse colocado em estado de alerta. A porta-voz da Casa Branca respondeu dizendo que uma “retórica provocativa como essa sobre armas nucleares é perigosa, aumenta o risco de erro de cálculo, deve ser evitada e não vamos ceder a isso”. Na quarta, 2, o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, voltou a fazer uma ameaça nuclear, mas disse que o emprego dessas armas poderia ocorrer por outro motivo: as sanções econômicas. “Biden tem experiência e sabe que não há alternativa às sanções, senão a guerra mundial. A terceira guerra mundial seria uma guerra nuclear devastadora”, disse Lavrov.

A preocupação russa com sanções já resvala no desespero. Nessa guerra que está sendo frequentemente definida em termos históricos, o pacote de medidas anunciado pelos países do Ocidente não tem paralelo. As reservas do Banco Central russo no exterior foram congeladas. Sete instituições foram retiradas do sistema de transferência bancária internacional Swift, o que dificulta para a Rússia receber pagamentos por suas exportações. A União Europeia, os Estados Unidos e mais 30 países fecharam o espaço aéreo para companhias russas. Para não terem seus iates confiscados, oligarcas russos navegaram às pressas para as Ilhas Maldivas, na Ásia.

As sanções fizeram o rublo desvalorizar 30%. Russos correram para os caixas automáticos para sacar dinheiro. O momento lembra o da Argentina em 2001, quando a população correu para os bancos para tentar tirar suas poupanças, com medo de um confisco ou da desvalorização (na Argentina, o presidente Fernando de La Rua precisou fugir de helicóptero da Casa Rosada). Para conter a sangria, o Banco Central russo dobrou a taxa de juros para 20%. A previsão é que o PIB russo este ano caia 5%. “Essas sanções foram o tiro de misericórdia. São de arrasar quarteirão. Sem poder usar suas reservas no exterior, o Banco Central Russo pode ficar sem liquidez”, diz o economista Simão Silber, professor da USP e pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a Fipe.

Uma das histórias conhecidas de Putin conta que, quando jovem, ele se divertia perseguindo ratos com paus, no conjunto de apartamentos em que vivia, em Leningrado, atual São Petersburgo. Um dia, ele cercou um rato grande em um canto. Sem saída, o bicho pulou sobre sua cabeça, na tentativa de escapar. Do episódio, Putin tirou uma lição, que ele mesmo tratou de contar tempos depois: nunca se deve encurralar alguém. É justamente daí que vem a maior das preocupações neste momento — o que poderá acontecer ao mundo se o grande rato autocrata russo se sentir, ele próprio, encurralado.

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