Carlos Fernandodos santos lima

Uma guerra injusta

04.03.22

“Se a Rússia recuar agora, acabaria a guerra. Se a Ucrânia recuar agora, acabaria a Ucrânia”. Essa foi a frase mais significativa que li até agora nessa absurda e imoral agressão da Rússia, uma ditadura, contra a Ucrânia, um país soberano e democrático. E essa verdade não veio de nenhum especialista ou articulista de política internacional, mas escrita em um cartaz nas mãos de uma manifestante ucraniana, ilustrando perfeitamente a atual situação do conflito no leste europeu ao mostrar a diferença entre uma guerra injusta, motivada por interesses geopolíticos e imperialistas da Rússia, da guerra justa de autodefesa, motivada pela necessidade de sobrevivência da nação e do povo ucraniano.

Certo é que sob nenhuma hipótese a agressão contra a Ucrânia pode ser justificada e, de acordo com o direito internacional, mas principalmente com a nossa própria Constituição, o Brasil não pode ficar neutro diante do que acontece. É importante lembrar que nossa Lei Maior estabelece como princípios básicos de nossas relações internacionais justamente a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a igualdade entre os estados, defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade — princípios válidos para todos os povos e pisoteados pelas tropas de um autocrata que sonha ainda com a volta do modelo falido da antiga União Soviética.

Trata-se, portanto, de fazer valer os princípios maiores que sustentam a nossa própria soberania, como a de todos os outros países. Além disso, aceitar o que a Rússia atualmente propõe como nova ordem mundial baseada na força militar e na ameaça de guerra nuclear é simplesmente jogar por terra todo o doloroso aprendizado dos dois últimos séculos, cheios de conflitos e mortandade. Não há glória em uma guerra suja em que jovens são sacrificados por interesses geopolíticos do século XVIII e XIX, mas impensáveis em pleno século XXI. Não há mais espaço para discursos que propõe união forçada entre nações diversas. A argumentação de Putin a respeito da unidade entre Ucrânia e Rússia não faz sentido algum, visto que o passado comum entre ambos remonta há mais de mil anos. Seria como propor reviver a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra só por terem tido séculos atrás disputas hereditárias entre seus monarcas.

Agora Putin, emparedado por ineficiências crônicas da economia russa, bem como por uma cada vez maior insatisfação de sua população, resolve usar de uma distração externa para criar uma união dos russos em torno de sua desgastada ditadura. Entretanto, todas as suas tentativas de criar versões que sustentassem minimamente seus desejos belicosos caíram por terra e a reação do povo russo contrária à guerra tem sido exemplar, apesar da forte repressão interna. A adesão à OTAN dos países que compunham a Cortina de Ferro se dá por decisão soberana desses mesmos países, a maior parte democracias que temem – justificadamente como se vê – o imperialismo russo. Para a Polônia, países bálticos, Ucrânia e Hungria, dentre outros, a lembrança do controle soviético e o autoritarismo de Putin são os grandes motores da adesão à aliança militar ocidental. Tivesse a Rússia ingressado na modernidade, como fizeram Alemanha e França, inimigos de inúmeras guerras nos séculos XIX e XX, e criado laços econômicos, culturais e de boa vontade com os países do leste europeu, não seria necessário ou convidativo a estes ingressarem em uma aliança defensiva como a OTAN.

O certo é que a Rússia atual comandada por Putin é um estado desonesto e autocrático, que há muito viola direitos humanos de seus cidadãos e persegue jornalistas e opositores políticos, quando não os tenta assassinar, como no caso do ex-espião russo Sergei Skripal e a filha dele, Yulia, envenenados na Inglaterra em 2018 – o pai não sobreviveu – ou o opositor Alexei Navalni em 2020 – Navalni se recuperou do envenenamento e se encontra atualmente preso pelo regime de Putin. Agora, crente que poderia exercer pressão sobre alguns dos países que compõem a União Europeia, especialmente a Alemanha, que caiu no erro de substituir sua matriz energética por gás russo, e considerando frágil o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ex-ator e comediante, o autocrata e gangster Vladimir Putin deu um passo em falso, atacando um país democrático sem qualquer provocação. Zelensky, como foi Churchill, pode ter sido um governante medíocre na paz, mas demonstrou nessa situação de guerra a coragem pessoal e controle na narrativa capaz de encorajar o povo ucraniano à resistência. Perto dele, Vladimir Putin é um pigmeu moral.

A resposta do Ocidente foi dura e uníssona na condenação da Rússia, e as sanções aplicadas pelas democracias ocidentais e Japão tornarão a economia russa em um completo caos. A Ucrânia ainda não fazia ainda parte da OTAN, pois se fizesse estaríamos diante da 3ª Guerra Mundial, uma vez que um ataque a um país membro da aliança ocidental deve ser respondido por todos. Por isso, e felizmente para o restante do mundo, a reação se deu apenas no campo das sanções e na promessa de apoio com dinheiro e armas para a resistência das forças ucranianas. A aposta das nações ocidentais é de que a guerra que mal começou vai drenar as forças da Rússia, mesmo porque uma ocupação é tão ou mais custosa que a guerra em si, gerando possível instabilidade do regime russo. Certamente Putin hoje está cercado de pessoas descontentes com o que está acontecendo, especialmente com o congelamento de recursos das oligarquias apoiadoras do regime até mesmo na outrora neutra Suíça. Isso tudo, aliado à inflação, desabastecimento, juros altíssimos e insatisfação popular é mais que suficiente para Putin estar hoje arrependido.

Entretanto, os ratos reagem quando não se lhes permite uma saída, e Putin já joga com ameaças do armagedon nuclear. A única e real aliada que lhe resta é a China, que equivocadamente tenta traduzir sua potência econômica em uma influência militar, apostando em conflitos territoriais com Índia, Japão e Taiwan. Mas a ninguém, nem sequer aos ratos acuados, interessaria a destruição mundial, e por isso a própria China vai acabar exercendo uma pressão moderadora sobre Putin. As cartas estão lançadas e nunca estivemos diante de uma situação tão grave desde a crise dos mísseis em Cuba. Resta acreditar que a racionalidade vai prevalecer e que a Rússia, sob Putin ou sem ele, vai acabar saindo da Ucrânia.

E quanto a nós, Brasil, fica a certeza de que tanto Jair Bolsonaro quanto Lula, na sua admiração pelo autocrata Putin, representam justamente a mesma visão ultrapassada da geopolítica mundial. Estar contra as nações ocidentais neste caso não significa em nenhum momento apoiar erros do passado cometidos pelos Estados Unidos, como a invasão do Iraque. A argumentação de Lula ao criticar a OTAN e os Estados Unidos é admitir que a Rússia está certa em invadir um país soberano e democrático. A adesão à OTAN acabou por se demonstrar realmente necessária à Ucrânia, pois o perigo de agressão imperialista vem justamente daquele autocrata que confirmou a intenção de submissão política dos países do leste europeu à “Mãe Rússia”, como na época soviética.

Já Bolsonaro equivoca-se novamente em apostar em suas simpatias pessoais à projetos totalitários como o de Vladimir Putin. Seja porque gostaria de transformar seu governo em uma versão “putiniana” de falsa democracia, seja porque Trump, seu paradigma ideológico, está fora do governo dos Estados Unidos, Bolsonaro desenvolve novamente sua própria política de internet, como fez no caso das vacinas, em contrariedade aos órgãos de governo, neste caso o Itamaraty, transformando o Brasil em um país esquizofrênico aos olhares do mundo. Apesar de pouco relevante para o desfecho dessa crise, mas importante no concerto das nações democráticas, a dubiedade do posicionamento brasileiro só nos prejudica. Certo é também que o final do mandato de Bolsonaro será duramente afetado pelas consequências dessa guerra, pois não há como impedir a transferência dos custos do aumento do barril de petróleo para a população via inflação dos combustíveis. Isso, além de dificuldades com setores exportadores e importadores, seria suficiente para qualquer governante desejar o fim dessa agressão da Rússia contra a Ucrânia. Entretanto, não existe bom senso nos julgamentos de Bolsonaro e vamos, mais uma vez, sofrer mais que o necessário em decorrência de seu desequilíbrio e ignorância.

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