MarioSabino

Giulia

11.03.22

Não sei se um dia voltarei a publicar um livro que não seja outra coletânea de artigos, mas, se o fizer, tentarei estar à altura de uma linda e triste história: a do grande amor da vida do meu avô materno, Trento. O nome dela era Giulia. Giulia Innocenti. Descobri o grande amor da vida de Trento há exatos 20 anos, ao abrir uma maleta que lhe pertencia e que jazia no fundo do armário da minha mãe. Minha mãe morreu em março de 2002, e eu fiquei com a maleta. Foi toda a minha herança.

Dentro da maleta, havia fotos de uma moça, datadas da década de 1920, sem identificação. Magra, sorridente, chapéu sino, feições delicadas, embora não exatamente bonita. Misturado às fotos, havia um pequeno recorte de jornal, informando que o corpo de Giulia Innocenti havia chegado a Cuneo, cidade próxima a Torino, proveniente de Paris. Supus que a moça era Giulia. Ela havia morrido com 30 anos, em 1930, quando o meu avô já estava no Brasil, para onde fugira, perseguido por Benito Mussolini. Um ano depois da morte de Giulia, o meu avô recebeu de um amigo a notícia de que o túmulo que havia mandado fazer para ela estava pronto. Havia duas fotos: a da primeira tumba, modesta, e a do sepulcro erigido pelo artista contratado por Trento, que trazia — traz — uma inscrição que fala do amor santificado pela morte.

Desde então, a memória de Giulia habita um pequeno canto da minha existência vilificada pelo jornalismo. Em 2008, fui a Cuneo, para visitá-la no seu túmulo. Trouxe uma lasca que estava no chão. A intenção era enterrá-la ao lado da tumba modesta do meu avô, em São Paulo, mas eu a guardei numa caixinha que fica ao lado do meu computador. Agora, em Paris, fui conhecer o endereço onde ela morava: 60, rue La Fayette. É um prédio típico do século XIX, hoje habitação popular, com apartamentos que pertencem ao estado francês e que são alugados por baixo preço. Talvez já fosse habitação popular em 1930. Também fui até o prédio, igualmente do século XIX, onde ela morreu: 57, Boulevard de Montmorency. Lá ficava o hospital italiano de Paris.

Descobri que a data precisa da morte de Giulia é 27 de abril de 1930. Tanto quando fui conhecer o endereço do prédio onde ela morava, como quando estive no prédio do antigo hospital, ocorreram coincidências bastante literárias. Volto para o Brasil daqui a dois dias. Não sei se ainda publicarei um livro que não seja outra coletânea de artigos, mas decidi finalmente enterrar a lasca do túmulo de Giulia ao lado da tumba modesta de Trento. Para tão curta vida, tão longo amor.

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